Reportagens

Extinção do Cristalino II pode levar à morte 12 mil macacos-aranha-de-cara-branca

Espécie, ainda pouco estudada, tem população em declínio e já é considerada Em Perigo de extinção. Unidade de conservação possui outras 11 espécies ameaçadas

Cristiane Prizibisczki ·
27 de maio de 2024

A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) identificou, em 2008, que a população de macacos-aranha-de-cara-branca, espécie endêmica da porção central da Amazônia, estava em preocupante declínio. O primata é considerado globalmente “Em Perigo” de extinção. A situação dele, no entanto, pode piorar ainda mais se as forças econômicas e políticas de Mato Grosso conseguirem, de fato, extinguir o Parque Estadual Cristalino II.

Alvo de grande pressão da agropecuária mato-grossense e de um imbróglio jurídico que dura mais de uma década, a unidade de conservação abriga grande parte da população de macacos-aranha-de-cara-branca da Amazônia. Se o parque for mesmo extinto e sucumbir a tais pressões (leia mais abaixo), a estimativa de pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) é que a perda para a espécie possa chegar a 12 mil indivíduos.

O macaco-aranha-da-cara-branca – ou coatá-da-testa-branca (Ateles marginatus) – ainda é pouco conhecido da Ciência. Não se sabe ao certo quantos animais existem na natureza, mas a avaliação feita pela IUCN indicou que sua população diminuiu 50% nos últimos 75 anos.

Tal declínio é atribuído à caça e, principalmente, à perda de habitat. A área de distribuição da espécie estende-se entre o Pará e o Mato Grosso, mas apenas entre o rio Tapajós e seu tributário, o rio Teles Pires, e o rio Xingu.

“Este primata ocorre em uma das porções amazônicas mais ameaçadas. Tem uma série de empreendimentos previstos e outros já implementados que colocam uma pressão enorme sobre essa espécie”, diz o professor do programa de Pós-Graduação em Zoologia da UFMT, Gustavo Canale.

Entre os empreendimentos citados pelo pesquisador estão as rodovias Transamazônica e a BR-163, além do complexo de usinas hidrelétricas do Tapajós e o projeto de ferrovia Ferrogrão, que impactam diretamente a área de ocorrência do primata.

Apesar de não haver ainda estimativa de população em toda sua área de ocorrência, sabe-se que dentro do Cristalino II há grande concentração da espécie, que faz parte do Plano de Ação Nacional para Conservação dos Primatas Amazônicos, coordenado pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação dos Primatas Brasileiros do ICMBio

Para chegar à estimativa de 12 mil indivíduos, Canale e outros pesquisadores consideraram o tamanho de cada grupo dos primatas lá existentes – cerca de 20 indivíduos –, a área de vida deles – 200 hectares –, e o tamanho total do parque, que tem 118 mil hectares.

“É uma extrapolação, mas isso equivaleria a perder duas vezes e meia a população inteira de micos-leão-dourados. Essa comparação ajuda a entender como a extinção do parque, apesar de parecer pequeno dentro da área de distribuição dessa espécie, traria um impacto enorme numa população”, diz o professor, que também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Primatologia e professor da pós-graduação em Ciências Ambientais da Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT).

Sem chance de adaptação

Segundo Canale, a perda de tantos indivíduos da espécie, neste local específico, coloca o primata em situação ainda mais vulnerável quando considerado o futuro de mudanças no clima

Isso porque a região do Cristalino II está inserida em uma área de transição entre floresta úmida e cerrado, fazendo com que as espécies que ali vivem estejam mais adaptadas a ambientes mais secos e com menos vegetação florestal. Em um cenário previsto de seca e savanização da Amazônia, saber viver em ambientes assim será vital.

Foto: Gustavo Canale

“A gente precisa proteger todo o pool genético dessa espécie, porque existe a possibilidade de as espécies mais ao sul, que estão em áreas mais secas, estarem melhor adaptadas às mudanças climáticas. Se eliminamos essas populações ao norte de Mato Grosso [onde o parque está inserido], a gente estará perdendo um pool genético que pode ser importante para o futuro”, diz o pesquisador.

Além disso, a pressão não é somente sobre essa espécie de primata. Segundo levantamento de biodiversidade realizado no âmbito do Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), o Cristalino II possui outras 11 espécies de mamíferos de grande porte em perigo de extinção, entre eles o cuxiu-de-nariz-vermelho (Chiropotes albinasus), tatu-canastra (Priodontes maximus), bugio-de-mãos-ruivas (Alouatta belzebul) e onça pintada (Panthera onca).

Pressão crescente

Até julho de 2021, o Parque Estadual Cristalino II havia perdido cerca de 10 mil hectares de vegetação nativa. Após essa data e somente nos últimos anos, outros 13.840 hectares foram destruídos. 

Foi justamente no final de 2021 que a Justiça Estadual do Mato Grosso decidiu pela extinção do parque, com o consequente agravamento do cenário de ameaças à unidade de conservação.

Os números do desmatamento foram levantados pelo Observatório Socioambiental do Mato Grosso (Observa-MT) e instituições parceiras na defesa da unidade – Rede Nacional Pró-Unidade de Conservação (Rede Pró-UC), Instituto Centro de Vida (ICV), Fundação Ecológica Cristalino (FEC) e Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad-MT).

Além do desmatamento, as organizações identificaram um boom de requerimentos de mineração. Até 2018, foram registrados 16 pedidos. Em 2022, após a decisão da Justiça Mato-Grossense, outros 46 pedidos foram feitos. 

Mais recentemente, em 23 de abril de 2024, um recurso aberto pelo Ministério Público pedindo a revogação da decisão foi negado. Após a data, outro novo requerimento de mineração foi protocolado.

“Números de incêndios florestais, inclusive sobre áreas embargadas, e invasões, também passaram a se multiplicar”, diz o Observa-MT.

Entenda o caso

O pedido de extinção da unidade veio de uma empresa privada, a Sociedade Comercial e Agropecuária Triângulo LTDA, que está instalada dentro e no entorno do Parque. A ação foi movida em 2011, sob a alegação de que os ritos processuais de criação do Cristalino II não haviam sido seguidos.

Ao longo da última década, o pedido da Triângulo foi negado em 1ª e 2ª instâncias. A empresa então recorreu ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e a ação voltou a tramitar no Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJMT).

Floresta protegida pelo Parque Estadual Cristalino II, no Mato Grosso. Foto: Greenpeace/ Daniel Beltrá

Em agosto de 2022, o TJMT decidiu, por 3 votos a 2, pela anulação do decreto que criou o Parque Estadual do Cristalino II. Réu no processo, o governo de Mato Grosso não recorreu dentro do prazo legal e com isso a decisão transitou em julgado

Por uma falha processual, o Ministério Público de Mato Grosso (MPMT), que é parte da ação, não foi citado sobre a decisão e sobre os prazos de recurso. Com isso, o processo foi reaberto e o MPMT pôde tentar reverter a decisão ao apresentar um recurso de Embargo de Declaração. O recurso foi negado no dia 24 de abril pelo TJMT e o decreto de criação da unidade tornou-se novamente nulo.

Na última semana, a União entrou na ação, pedindo a revogação das decisões judiciais anteriores, sob a alegação de que os títulos de posse da Triângulo eram nulos e, portanto, a empresa não tem direito de requerer nada. O embargo da Advocacia Geral da União (AGU) ainda será sendo analisado.

  • Cristiane Prizibisczki

    Cristiane Prizibisczki é Alumni do Wolfson College – Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellow...

Leia também

Reportagens
22 de maio de 2024

Grilagem de terras: União alega títulos nulos e age em defesa do Cristalino II

Advocacia Geral da União pede anulação do processo de extinção da unidade de conservação por fraude em documentos. Empresa envolvida nega irregularidades

Reportagens
13 de outubro de 2022

Parque loteado: grilagem de terras públicas já atinge 74% do Cristalino II

Reportagem especial de ((o))eco em parceria com CCCA revela como forças econômicas e políticas têm atuado para redução desta área protegida do MT. Ocupantes de terra negam irregularidades

Notícias
16 de agosto de 2022

Alvo de imbróglio jurídico, Parque Cristalino II perde quase 900 hectares em queimada ilegal

Ainda não é possível dizer se incêndio foi intencional, mas organizações alertam para “coincidência” entre fato e decisão da justiça pela extinção da unidade

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.