Aprovado pelas Nações Unidas no início de março, em Nova Iorque (Estados Unidos), o primeiro tratado para a preservação do alto-mar é mundialmente comemorado. Afinal, ele pode influenciar decisivamente o futuro de ambientes e da biodiversidade em águas que tomam ⅔ do planeta, fora dos domínios de cada país. Para tanto, é necessário acelerar a sua implantação global, que pede itens como critérios para a criação e a gestão de áreas marinhas protegidas, para assegurar a movimentação global de baleias e outras espécies migradoras, para o uso de recursos minerais e genéticos com valorização crescente nos mercados internacionais. Ao mesmo tempo, a poluição marinha por lixo segue “a ver navios”.
Para entender estes cenários, ((o))eco conversou com a servidora federal Ana Paula Prates. Ela é a primeira diretora do inédito Departamento de Oceano e Gestão Costeira, do remodelado Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Engenheira de Pesca e Doutora em Ecologia Marinha, a especialista é professora de mestrado e doutorado em Biodiversidade e Unidades de Conservação do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e integra a Liga das Mulheres pelo Oceano. Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
((o))eco – O acordo vale única e exclusivamente para águas internacionais, correto?
Ana Paula Prates – Isso. Tínhamos um oceano de todo mundo que, na prática, não era de ninguém. Essa era uma grande lacuna de conservação e de governança para ⅔ das águas salgadas mundiais, geralmente em grandes profundidades e sempre fora das Zonas Econômicas Exclusivas (ZEEs) de cada país. Por isso, o acordo é chamado justamente de Biodiversidade Além da Jurisdição Nacional [BBNJ, na sigla em Inglês], ou simplesmente Tratado ao Alto-Mar. As discussões sobre o texto se tornaram mais intensas desde a 8ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP-8), no Paraná, em 2006. Foram quase duas décadas de debates, mas o texto final está atualizado sobre necessidades conservacionistas, abarcando, por exemplo, as metas para proteger ao menos 30% dos ambientes costeiros e marinhos.
A conservação da biodiversidade oceânica em alto-mar não era amparada por nenhum instrumento antes disso?
Não exatamente. Antes tínhamos apenas ISBA [sigla em Inglês da Autoridade Internacional do Fundo Marinho], conectada a convenções das Nações Unidas e mais focada na agenda da mineração nesses ambientes. A organização é autônoma e recebe pedidos de países interessados em pesquisar áreas para futura exploração comercial.
Sobre isso, como o tratado aborda a possível mineração em águas profundas?
Até hoje, não há nenhuma licença para essa atividade, mas há inúmeras pesquisas ativas e demandadas, em todo o planeta. Grandes mineradoras colocaram na mesa que precisam extrair lítio e outros componentes, por exemplo usados em baterias de carros elétricos, para descarbonizar economias e ajudar o planeta a driblar a crise do clima. Por questões como essas, será necessário aprovar um protocolo para a mineração em águas internacionais junto à implantação do BBNJ. Isso pode qualificar as regras para licenciamento da atividade e delimitar zonas de exclusão, livres de mineração. Isso é fundamental, inclusive, porque determinados países usam essa lacuna jurídica para reservar áreas e, ao invés de pesquisar recursos minerais, na realidade estão avaliando recursos genéticos. Conhecemos muito pouco da biodiversidade em áreas profundas e, sem uma exploração equilibrada, arriscamos aniquilar recursos valiosos para a humanidade antes mesmo de descrevê-los. Logo, não podemos permitir nenhuma exploração invasiva até que estudos sérios e amplos sejam feitos. Até lá, precisamos de uma moratória internacional à mineração em alto-mar. O Brasil é favorável.
Foram longos e complexos os debates para aprovar um regime de uso e repartição de recursos genéticos oriundos da biodiversidade no Brasil. O quê podemos esperar para um processo similar com recursos marinhos?
É uma agenda de grande interesse da indústria bioquímica, cosmética e farmacêutica. Há uma tendência de que o tema seja manejado sobretudo por esses grandes grupos econômicos, inclusive porque a prospecção, pesquisa e elaboração dos produtos são muito dispendiosos. O tema foi um dos que teve mais divergências nos debates até a aprovação do tratado. Daí a importância de que um arranjo muito criterioso seja definido para uso desses recursos, sejam diretamente físicos ou por meio de seu sequenciamento digital. Determinados organismos de águas profundas serviram até à produção de vacinas contra a COVID-19. Assim como ocorreu com a legislação brasileira, terá que haver um amplo registro desses recursos, transparência e compensações por seus usos comerciais, por exemplo à conservação marinha. Afinal, são patrimônios de toda a humanidade.
Quais são as pedras no caminho da definição de áreas protegidas em águas internacionais?
Apenas 1% da superfície do alto-mar é hoje protegida. Além de resguardar a biodiversidade, essas áreas são igualmente importantes para o enfrentamento da crise climática. Desde a Revolução Industrial, os oceanos absorveram grande parte do calor adicionado à atmosfera pela humanidade. Criar áreas marinhas protegidas é uma ação mitigadora do aquecimento global. Baleias a outras espécies, muitas ameaçadas de extinção, também usam essas águas para suas migrações entre locais de reprodução e alimentação. A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) já tem um mapeamento prévio [veja abaixo] de áreas marinhas importantes em termos biológicos e ecológicos. Assim, esse debate não começa do zero na implantação do BBNJ, que agora tem mandato para proteger esses espaços. Mas para isso será imprescindível definir questões como a gestão compartilhada dessas áreas, recursos para sua implantação, sua gestão e fiscalização. São previstas áreas de proteção integral e também de usos múltiplos, onde por exemplo a pesca poderia ocorrer, sob regras rígidas. Avalio que uma solução possível seria o estabelecimento de uma agência multilateral que responda por essas áreas, com participação dos países que ratificarem o tratado [BBNJ]. Desta maneira, poderão ser encaminhadas soluções para pontos como fontes e aplicação de recursos, monitoramento e fiscalização, que podem ocorrer com satélites, cartas náuticas e assim por diante.
O tratado pode ajudar a controlar a pesca excessiva ou ilegal em águas internacionais? O predomínio britânico em ilhas do Atlântico, por exemplo, já barrou avanços em agendas similares.
Essa questão envolve a soberania dos países, claro, mas também o necessário controle da pesca, atividade que vem reduzindo estoques no mundo todo. A implantação do tratado, assim como para a questão da mineração e acesso a recursos genéticos, poderá limitar ou bloquear essa atividade em zonas mais importantes para a vida marinha. Isso é estratégico, inclusive, para a renovação e manutenção de estoques pesqueiros e outros recursos com valor econômico direto. Há grande quantidade de pesca ilegal ou excessiva em águas mais rasas, e muito pouco na costa brasileira quando comparado a outros países, inclusive da América do Sul. Todavia, essas embarcações inevitavelmente cruzam águas internacionais até chegar aos pontos de pesca. Assim, nações pescadoras e baleeiras pressionaram por regras menos rígidas nesse sentido.
E quanto à quantidade astronômica de lixo marinho? Algo pode ser feito no escopo do tratado?
Essa enormidade de plásticos e outros resíduos vem de incontáveis pontos do planeta. Parece que ainda não encontramos meios para frear sua chegada nos oceanos, onde provocam sérios prejuízos à biodiversidade e, em cascata, às pessoas. Há pouco tempo, encontraram rochas plásticas na ilha de Trindade, a milhares de quilômetros da costa brasileira, e microplásticos até no leite materno. Todavia, o tratado BBNJ não aborda esse problema diretamente.
E agora, quais os passos para entrada em vigor do tratado e sua internalização pelos países?
A situação dos oceanos é alarmante e precisamos pôr o acordo em prática o mais rapidamente possível. O BBNJ passará a vigorar 2 meses após ser ratificado por ao menos 60 países. Isso pode ocorrer em no máximo um ano. Depois, os países o deverão internalizar em suas legislações. No Brasil, o texto tem apoio do Executivo Federal e passará por debates sobretudo no Congresso Nacional, mas não há margem para alterações no conteúdo internacionalmente aprovado.
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