Diante de um cenário global de perda de biodiversidade marinha, torna-se vital pensar em soluções que ajudem a remediar o estrago que a mão humana causou. Nada mais justo do que utilizar a mesma mão humana responsável pelo dano para criar uma alternativa. É neste espírito que surgiu o Programa de Recuperação da Biodiversidade Marinha (REBIMAR) baseado na instalação de recifes artificiais. A iniciativa, realizada pela Associação MarBrasil, usa blocos de concreto especialmente desenvolvidos para que simulem o ambiente de costões rochosos e sirvam de abrigo aos seres marinhos. O programa já instalou 3.500 blocos, todos eles na costa paranaense, onde formam um corredor ecológico próximo ao Parque Nacional Marinho das Ilhas dos Currais (PR).
De acordo com o coordenador do programa Rebimar, Robin Hilbert, além de criar um ambiente de refúgio, os recifes artificiais também funcionam para impedir a pesca de arrasto industrial, extremamente predatória. “Os recifes servem como área de refúgio, reprodução e alimentação de dezenas de espécies. Hoje, os recifes instalados no litoral do Paraná se tornaram um ambiente complexo de rica biodiversidade. Nós temos imagens e dados que comprovam isso.
Além disso, algumas espécies de peixes de valor comercial, que favorecem os pescadores artesanais, voltaram a aparecer, como por exemplo o linguado”, acrescenta Robin.
Em entrevista ao ((o)) eco, o coordenador explica melhor como funcionam os recifes artificiais e como o projeto tem colaborado tanto para vida marinha quanto para vida dos pescadores artesanais da região. Leia:
((o)) eco: O que são recifes artificiais e qual o objetivo da instalação deles?
Robin Hilbert: Os recifes artificiais possuem diversas funções, mas as duas principais são: criar um impedimento à pesca predatória de arrasto industrial, que causa muito impacto e perda da diversidade marinha; e criar um sistema, um complexo de biodiversidade marinha semelhante aos costões rochosos, que seja habitat e refúgio para dezenas de espécies, assim como um local para reprodução e alimentação para eles.
O Projeto REBIMAR, como o nome já diz, é voltado para recuperação da biodiversidade marinha. Ele nasceu como a continuação do projeto Recifes Artificiais Marinhos (RAM), que surgiu em 1997, durante o qual foram instaladas mais de 2 mil estruturas de concreto entre duas ilhas no litoral do Paraná, uma delas inclusive que hoje é o Parque Nacional Marinho das Ilhas dos Currais [criado em junho de 2013], o terceiro e mais recente parque nacional marinho do país. O REBIMAR veio na continuação desta ideia, mas com uma proposta diferente. A começar pelo formato dos blocos, que são um pouco menores, que nós que chamamos de Recifes de Recrutamento Larval. Eles têm como objetivo recrutar larvas de peixes, são áreas em que você encontra espécies mais juvenis e que se tornaram local de reprodução de dezenas de peixes no litoral no Paraná.
Como foi o processo de desenvolvimento dos blocos para torná-los semelhantes a um ambiente de costão rochoso real e saudável?
Até hoje nós somos o único projeto com a licença ambiental do IBAMA [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] para instalação de recifes artificiais. Os blocos são feitos com cimento com o pH corrigido. Não é o mesmo concreto de construção civil. Nós temos todo um cuidado e os recifes do projeto REBIMAR seguem um padrão. Todos eles possuem de 40 a 50 centímetros e pesam 120 quilos cada um. Além disso, eles têm o desenho interno de um trevo, o que é proposital. Esse projeto foi criado no Japão, durante um programa de pós-doutorado de um dos fundadores da MarBrasil. E o desenho de um trevo foi escolhido porque permite que você tenha uma superfície maior de incrustação. Tanto externa quanto interna. É um desenho exclusivo da REBIMAR e que possui uma eficiência comprovada na agregação e incrustação de seres marinhos, por isso se tornou um padrão nos nossos blocos. Nós desenvolvemos também um sistema próprio de balsas que transportaram 120 blocos cada uma durante a instalação dos recifes. Hoje nós temos 3.500 blocos instalados, num processo que durou de 2010 até 2013.
Os recifes artificiais foram instalados em 10 pontos, com 350 blocos em cada ponto, ou seja são 3.500 blocos apenas no projeto REBIMAR. Estas instalações têm o caráter perpétuo. Todos eles estão instalados ao longo da costa do Paraná, que é uma costa de pequena extensão, predominantemente de fundo arenoso, com poucos costões rochosos. Esta é uma área muito impactada pela pesca de arrasto de barcos pesqueiros industriais de São Paulo e Santa Catarina.
Quais são as principais diferenças de um recife artificial para um recife natural? E de que formas o artificial ajuda a ocupar o papel normalmente desempenhado por um recife natural?
A principal diferença está no tempo de colonização. Os costões rochosos existem há milhões de anos e os recifes artificiais levam alguns anos até se tornarem uma área de complexa biodiversidade marinha. Nós estudamos desde a Reserva Biológica Marinha do Arvoredo, no litoral catarinense, até o Refúgio de Vida Silvestre do Arquipélago de Alcatrazes, em São Paulo, e nós fazemos comparativos entre os costões rochosos e os recifes; e analisamos fatores como a conectividade de espécies marinhas que se movimentam entre essas regiões. Hoje nós podemos dizer, baseado nestes estudos, que os recifes artificiais são muito parecidos com os costões rochosos. Nós analisamos desde larvas de peixes e invertebrados até peixes e seres bentônicos, que são aqueles que ficam no fundo do mar. As mesmas espécies que habitam as rochas naturais também habitam os recifes artificiais. Isso aconteceu após alguns anos de colonização: da predominância dos seres incrustantes, que são os iniciais, até aparecerem espécies como moreias, estrelas-do-mar, ouriços e vários invertebrados.
Como foi a recuperação da fauna marinha nos locais onde os recifes artificiais foram instalados?
Os recifes servem como área de refúgio, reprodução e alimentação de dezenas de espécies. Hoje, os recifes instalados no litoral do Paraná se tornaram um ambiente complexo de rica biodiversidade. Nós temos imagens e dados que comprovam isso. Alguns locais foram inclusive batizados de parques dos meros (Epinephelus itajara). Esta espécie de peixe tem habitado preferencialmente os recifes artificiais em vez dos naturais, e esse é um comportamento observado nesta espécie ao longo de toda costa brasileira.
Além disso, algumas espécies de peixes de valor comercial, que favorecem os pescadores artesanais, voltaram a aparecer. Como por exemplo o linguado, que no litoral do Paraná estava bem impactado e com baixíssima ocorrência, e hoje já ocorre com maior frequência. Estudos que nós realizamos em parceria com o Instituto Oceanográfico da Universidade Federal de São Paulo (USP) mostraram que os recifes têm sido inclusive uma área de recrutamento de larvas para algumas espécies de camarões.
Como foi essa parceria e diálogo com os pescadores ao longo do projeto?
Para instalar estes recifes, o IBAMA fez uma série de exigências. Foram 4 anos de estudos ambientais e sociais, diversas consultas públicas e reuniões comunitárias com os moradores da região, principalmente com os pescadores artesanais. Foram eles próprios que definiram o local para instalação dos recifes, que é uma linha paralela à costa do município de Pontal do Paraná. É uma linha visual conhecida por eles como “Visada dos Três Morros” que faz com que eles tenham uma referência para saber onde estão localizados os recifes. E após a instalação, nós fizemos outras reuniões para criar o Plano de Uso dos recifes artificiais, no qual definimos uma faixa de proteção que eles devem respeitar, para que não coloquem redes em cima dos blocos. Eles pescam, portanto, somente no entorno, a uma distância de 200 metros dos blocos. Nestes 10 pontos onde foram instalados os recifes artificiais, espalhados por uma extensão de 20 quilômetros, nós podemos dizer que foi criado um corredor marinho de proteção.
Como foi a resposta dos pescadores locais ao constatarem o aumento do estoque pesqueiro através da criação de uma área de proteção?
Hoje qualquer pessoa que conversar com os pescadores artesanais mais antigos da região vai perceber que eles são muito agradecidos ao projeto porque sentiram um bom aumento na renda deles. O peixe-porco (Balistes capriscus), por exemplo, que é explorado comercialmente e que antes era pouco frequente, agora é comum na região. Assim como o robalo-peva (Centropomus parallelus). A ocorrência destas espécies de peixe com bom valor comercial colaborou para o aumento da renda dos pescadores artesanais. Além disso, alguns deles passaram a ter uma outra fonte de renda: o turismo da pesca esportiva. E eles não apenas agradecem, mas também passaram a entender a importância de ter uma área protegida para garantir a manutenção da própria pesca.
E como é a relação de vocês com o Parque Nacional Marinho das Ilhas dos Currais?
Nós trabalhamos com pesquisas no Parque Nacional Marinho das Ilhas dos Currais desde a existência da Associação MarBrasil. Existem diversos projetos, não apenas o REBIMAR. Um deles é o projeto chamado Currais, no qual nós estudamos todas as formas de uso do parque, assim como o habitat de fundo marinho. Outro deles foi o BioGeo, que realizou o mapeamento de geodiversidade da unidade de conservação. Nós temos uma relação muito próxima com o parque e estamos sempre em parceria com o ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] nestes estudos.
Além disso, é importante analisar essa conectividade entre a zona de recifes e o parque nacional marinho, e também entre o parque e outras áreas do litoral de Santa Catarina à São Paulo que estão dentro do nosso escopo de pesquisas. É uma unidade de conservação importante, porém recente, criada há apenas 5 anos, e que ainda requer estudos de zoneamento, pesquisas sobre a biodiversidade, reuniões comunitárias e o levantamento de atores locais para formação do Conselho Consultivo.
Qual a importância de um projeto como o REBIMAR para minimizar possivelmente os impactos da poluição, pesca industrial e até mudanças climáticas, na biodiversidade marinha?
O fato de criar novas áreas para alimentação, refúgio e reprodução das espécies, e adicionar uma estrutura artificial, desde que seja feito com estudos e as devidas licenças ambientais, como nós fizemos, é algo positivo para vida marinha. Os maiores impactos que a gente observa são próximos às regiões portuárias. Nós estamos muito perto do porto de Paranaguá e nós notamos em coletas ambientais a qualidade da água e da saúde de algumas espécies que nós monitoramos. Nós temos observado em algumas tartarugas uma debilidade da saúde devido à poluição da água, por exemplo. Além de agravar a poluição da água, a circulação de navios têm trazido espécies exóticas, bioinvasoras, e ter mais áreas de reprodução marinha como os recifes artificiais vêm colaborando muito para minimizar esses impactos.
Como mergulhador envolvido no projeto desde o começo, qual o sentimento ao perceber a recuperação destes ambientes?
Eu sou mergulhador profissional e instrutor do projeto hoje e cada mergulho é sempre muito emocionante. Eu tenho centenas de mergulhos em todos estes pontos e cada um deles parece um novo mergulho. Eu já avistei raias em volta dos recifes, meros… cada vez é uma nova emoção que vem com a sensação de que nós conseguimos plantar uma sementinha para colaborar com a conservação dos oceanos. Eu tenho orgulho de ser parte disso. Se você fizer um comparativo das imagens que a gente coletou no início da instalação, quando os blocos ainda estavam virgens e com pouca vida, com o cenário atual, é muito lindo observar a rica biodiversidade que se desenvolveu ali.
Existem outras iniciativas como essa no Brasil e no mundo?
O REBIMAR é pioneiro no Brasil. Existem outros recifes artificiais no país, como balsas e navios. Nós mesmos, da MarBrasil, instalamos duas balsas de carga que são hoje recifes artificiais. Porém na técnica dos recifes de concreto nós somos pioneiros. Já apresentamos a iniciativa dezenas de vez em diferentes locais da costa brasileira, do sul ao norte do país. Há inclusive convites para replicar este projeto em outros estados e estão sendo feitos estudos em algumas regiões do país em prol disso. Existem projetos muito semelhantes no resto do mundo, como na costa do México e dos Estados Unidos. Mas não são iguais aos da REBIMAR, o nosso método é exclusivo no mundo.
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Vocês deveriam postar um guia detalhando os passos para implantação do projeto em outros litorais brasileiros! Qual o investimento necessário, licenças ambientais, registros legais, etc.
Excelente! Deveria ser copiado no RS onde a pesca de arrasto é uma chaga aberta!