Reportagens

José Medeiros, o fotojornalista que vai documentar o Pantanal por uma década

Em entrevista a ((o))eco, fotojornalista mato-grossense fala da iniciativa de retratar bioma durante 10 anos, para acompanhar mudanças legadas pelos incêndios de 2020

Michael Esquer ·
12 de janeiro de 2023 · 1 anos atrás

“Eu nasci antes da divisão do estado, a gente tinha um Mato Grosso por inteiro, um Pantanal por inteiro”. É assim que explica José Medeiros, de 50 anos, sobre o porquê se considerar mato-grossense, mesmo tendo ele nascido em Campo Grande (MS), em Mato Grosso do Sul. Nesse Pantanal de meio século atrás, ainda não repartido, seja por limites estaduais ou pelo avanço de hidrelétricas, mineração ou da fronteira agrícola, ele é testemunha ocular de diversas mudanças. Há 30 anos, é da maior área alagável do mundo que o fotojornalista, que tem publicações na Folha de São Paulo, O Globo, UOL, Estadão, entre outros, tira grande parte das histórias que conta para todo o País.  

Radicado em Cuiabá há mais de 20 anos, Medeiros acompanhou e documentou as múltiplas nuances do bioma, assim como das pessoas que vivem nele. Fruto disso é o livro “O Pantanal de José Medeiros”, publicado em 2014, que retrata o homem pantaneiro e sua cultura singular, principalmente da região de Poconé (MT). “É o primeiro [livro] que retrata a figura do homem no Pantanal. Foi um trabalho de 10 anos que a gente estava fazendo […] sempre retratando o Pantanal, fotografando o Pantanal, essas transformações do bioma”, conta Medeiros.

Em 2020, ano de pandemia e dos incêndios que consumiram quase um terço do Pantanal, o fotojornalista estava no bioma para gravar um filme que contaria como pantaneiros estavam lidando com àquela que mais tarde se tornaria uma crise sanitária mundial. “Começo a ver os incêndios e de uma hora pra outra explode tudo, começa uma coisa descontrolada. Eu estava no olho do furacão. Começo, então, a retratar, documentar os incêndios. Eu fui um dos primeiros a acompanhar os incêndios”, conta Medeiros no dia do seu aniversário, comemorado na segunda-feira (9). 

Além de registrar a agonia da maior tragédia ambiental da história recente do bioma, o fotojornalista também ajudou jornalistas de todo o país que, naquele ano, viajavam para documentar aquele episódio sem precedentes para a região. “Ajudei muitos fotógrafos, indiquei muitas histórias, como chegar nos lugares, dei muita consultoria falando das regiões”, relembra. 

Nesse cenário, que se agrava em 2021 diante de uma seca extrema, surgiu diante dos olhos do fotojornalista a ideia de documentar o Pantanal durante uma década, de 2020 a 2030. O objetivo? Justamente legar para as futuras gerações um testemunho e um legado de como o bioma se comportou desde então. Se recuperou? Ou se transformou? “O trabalho é tentar trazer essas respostas”, responde ele. 

Em entrevista a ((o))eco, Medeiros, que despertou o olhar para a fotografia inicialmente revelando fotos no Correio do Estado, em Campo Grande (MS), fala dos desafios da cobertura ambiental e sobre o que já testemunhou no bioma. “O Pantanal não tem essa coisa do tempo, do horário, não existe um tempo. Você tem que ter essa paciência para descobrir as histórias. É como nos poemas de Manoel de Barros, que observa o tempo das coisas de forma lenta e nos faz prestar mais atenção”, completa.

José Medeiros começou a carreira de fotojornalista em Mato Grosso do Sul, no Correio do Estado, e depois se mudou para Cuiabá, onde deu continuidade à trajetória no Diário de Cuiabá. Foto: Michael Esquer

((o))eco: Quem é José Medeiros? Onde você nasceu? 

José Medeiros: Eu nasci em Campo Grande (MS), mas eu falo assim, eu sou um mato-grossense. Eu nasci antes da divisão do estado, a gente tinha um Mato Grosso por inteiro, um Pantanal por inteiro, um Cerrado por inteiro, uma história toda quando esse estado era um só.

Na carreira de fotojornalista a sua cobertura inclui outros biomas, que não só o Pantanal, grande parte dela dedicada à temática socioambiental e para diversos veículos. Quando a fotografia de fato atravessa o seu caminho?

Eu começo a minha história como fotógrafo em Campo Grande (MS). Eu trabalhei num jornal chamado Correio do Estado. Eu revelava fotos de outros fotógrafos. Eu comecei lá com uns 16 pra 17 anos, como revelador de fotografia. Pelo fato de trabalhar com um olhar de vários fotógrafos, eu comecei criando um próprio olhar na hora que eu revelava as minhas fotos. Por mais que eu fosse um cara que era só um laboratorista, ali eu comecei imaginando: “se eu tivesse nessa pauta como que eu fotografaria?”. Eu já comecei formatando um pouco essa questão do meu olhar para fotografia.

Como o meio ambiente surge dentro dessa trajetória?

Eu sempre tive essa coisa. Tem uma frase de Dom Pedro Casaldáliga, bispo do  Araguaia (MT) defensor da minoria, em que ele falava assim: “Na dúvida, fique do lado dos mais pobres”. Essa ideia da gente estar sempre questionando assuntos de pessoas que não tem essa chance, é muito difícil você dar voz. Eu fui por aí. A questão indígena, por exemplo, esse trabalho eu faço também há mais de 20 e poucos anos, retratando a cultura indígena no Mato Grosso. E estando na Amazônia, fazendo pautas de desmatamento, a gente sempre está em contato com garimpos ilegais e denúncias de irregularidades.

Você sempre retratou o Pantanal na sua cobertura como fotojornalista? Que desafios tem essa cobertura?

Eu sempre retratei o Pantanal. Eu tenho vários amigos, grandes fotógrafos que fotografam muito bem o Pantanal, fotógrafos renomados. Mas poucas pessoas prestam atenção na figura do homem que habita o Pantanal. Sempre é o jacaré, onça e tuiuiú. É aquela coisa, as belezas do pôr do sol, animais e natureza. 

O livro “O Pantanal de José Medeiros” é o primeiro [livro] que retrata a figura do homem no Pantanal, um livro dedicado ao homem no Pantanal. O livro foi lançado na Copa de 2014. Foi um trabalho de 10 anos que a gente estava fazendo. Eu sempre estou retratando o Pantanal, fotografando o Pantanal, essas transformações do bioma. No Pantanal não tem essa coisa do tempo, do horário, não existe um tempo. Você tem que ter essa paciência para descobrir as histórias.

É como nos poemas de Manoel de Barros, que observa o tempo das coisas de forma lenta e nos faz prestar mais atenção. Por exemplo, por que está faltando água? Porque aquele sitiante tinha um sítio aqui. Mas um cara abriu um garimpo. Esse garimpo, o cara começou a cavar. Daí, tinha uma grotinha de água. Essa grotinha de água o cara fez um buracão, que começou a brotar uma água. Como esse buraco é maior, ele começa a puxar todas as vertentes para isso aqui. Começa, então, a faltar água do sitiante.

José Medeiros folheia o livro “O Pantanal de José Medeiros”. Publicado em 2014, a obra é resultado de 10 anos de trabalho fotografando o Pantanal e o homem pantaneiro. Foto: Michael Esquer

Na pandemia, mesmo ano dos incêndios que destruíram quase um terço do Pantanal, você estava onde? 

Eu estava na Amazônia, fazendo um trabalho. Chego da Amazônia, todo mundo naquele começo da pandemia, meio sem saber o que fazer, todo mundo comprando coisa, não tendo máscara, não tendo álcool em gel, não tinha nada, aquela coisa, não sabia se saía, ninguém na cidade, na rua. Eu chego, fico 40 e poucos dias em casa e começo a pensar “bom, o que que eu vou fazer? Gente, eu não posso ficar aqui. Já que eu estou isolado aqui, eu vou fazer um filme, vou para o Pantanal ficar isolado”. 

Eu queria saber o que o pantaneiro que já vive isolado lá no meio de um Pantanal profundo, quando recebe essa notícia da pandemia, o que passa pela cabeça desse cara, como que ele está vendo essa coisa chegar, como ele está vendo essas pessoas morrerem. Faço todos os exames, pego e vou para o Pantanal. Fico no Pantanal por 60 dias. 

E quando começam os incêndios? 

Eu começo a ver os incêndios e de uma hora pra outra explode tudo, começa uma coisa descontrolada. Eu estava no olho do furacão. Começo, então, a retratar, documentar os incêndios. Eu fui um dos primeiros a acompanhar os incêndios. Falei “bom, isso aqui eu vou documentar”. Mas é aquela história, fazendo matéria e vai, vai, vai, o fogo não para, ninguém consegue controlar, vira ano e o fogo pegando, e não chove, o povo desesperado, pegou todo mundo de surpresa. 

Eu documentei ali da Serra do Amolar, que ninguém acessava. A transpantaneira estava muito bem atendida, mas tinha um Pantanal que ninguém tinha acesso. Estava uma coisa insana, sabe o que é insano? Você não conseguir dormir. Eu não só fotografei, eu apagava fogo, eu estava no meio. Ajudei muitos fotógrafos, indiquei muitas histórias, como chegar nos lugares, dei muita consultoria falando das regiões.

A ideia de fotografar o Pantanal por uma década surge como? Foi ainda em 2020?

Sim. Eu estava fazendo aquela coisa do filme, daí eu paro eu falo: “bom, eu vou fazer uma exposição fotográfica desse grande incêndio”. Era pra ser só uma exposição fotográfica dos incêndios, mas eu comecei a pensar “bom, eu não posso ficar quieto. Por ser um mato-grossense, por ser um pantaneiro, por estar aqui, eu não posso deixar isso, alguém tem que fazer alguma coisa”. Aí, eu começo a documentar o Pantanal, lanço o Pantanal+10, que é o projeto para documentar o bioma durante 10 anos. No próximo ano, em 2021, veio também uma grande seca, aquelas discussões climáticas, aquela coisa do Pantanal, e eu já estava acompanhando um pouco essas mudanças. 

“Céu e inferno em terras alagadas” dá início ao projeto Pantanal+10. Livro documenta resultados das queimadas e da ação do homem no bioma. Foto: Reprodução/Editora e Livraria Origem

O Pantanal sofre com diversas pressões, entre elas as do avanço de usinas, o próprio desmatamento, mineração, entre outras. Ao longo desses anos, acompanhando e documentando o bioma, que mudanças você pôde perceber nele?

Rios secando, as coisas começam a mudar e as pessoas começam a falar também. O pantaneiro presta muita atenção e você acaba aprendendo isso. Eles relatam que depois que implantaram a usina [de Manso] o Rio Cuiabá não enche como antes, as grandes fazendas começaram a fazer diques no Pantanal para não alargar, para ter uma área. São várias coisas que acontecem, que vão mudando. As fazendas que vão sendo abandonadas. Tem muita história de pantaneiros de como era esse Pantanal. As rezadeiras estão sentindo falta do passarinho que cantava e não canta mais. Por quê? Porque já não tem aquela fruta que ele comia.

Eu estava falando com um cara sobre uma pimenta que dá no mato. “Ah, você conhece aquela pimenta de macaco?”, “ah, pois hoje em dia a gente não consegue”, “porque?”, “porque os pássaros estão comendo elas antes de ficar madura no tempo”, “porque?”, “porque não tem o que comer mais”. Depois que você presta atenção, você começa a entender. “Ah, tá morrendo tucano no Pantanal”. Um monte de tucano. “Mas porque? O que está acontecendo?”. Eles começam a comer as mangas verdes, já não tem manga mais madura e parece que ficam engasgados, morrem entalados. O impacto disso tudo, dessa coisa, dessa questão climática, dessas questões, as ameaças, por exemplo, o papel nosso é documentar e trazer isso. 

Documentar um bioma como o Pantanal durante uma década é uma missão importante. Quando idealizou o projeto, qual o principal objetivo que pensou para ele? 

É ver como o Pantanal vai se comportar depois dos incêndios. Eu não sei se recupera, vão ter as transformações porque muitas coisas foram extintas com esse grande incêndio, mas como vai ser isso agora daqui pra frente? Que Pantanal a gente espera? O trabalho é tentar trazer essas respostas. 

Tendo como ponto de partida documental o ano de 2020, o projeto deve se encerrar em 2030. Um filme, um livro e uma exposição foram os seus primeiros produtos. Quais são os próximos?

Agora, vamos trabalhar “Águas do Pantanal”. Mas de dois em dois anos a gente vai lançar um livro, um filme e uma exposição. Como aconteceu em 2022, quando fizemos um filme, que é o “Fogo e Fé”, que fala um pouco dessas histórias, o livro, “Céu e Inferno em Terras Alagadas”, e uma exposição que o ano passado percorreu os principais festivais de fotografia. Fizemos exposições em vários lugares, palestras em vários lugares do Brasil, falando sobre essa história. Agora eu começo “Águas do Pantanal”, que vai falar da questão hídrica do Pantanal. Então, em 2024, a gente lança o livro, a exposição e mais um filme. 

E que mensagem o projeto quer deixar? 

Temos uma pergunta essencial para esse trabalho: que futuro queremos para o Pantanal? Eu escolhi contar histórias que poucas pessoas veem. Muitas pessoas vêm para fotografar onça no Jofre, mas está tendo impacto isso também? É importante conscientizar sobre os impactos negativos da ação do homem. O que podemos fazer? Minha proposta é fotografar o bioma, contar histórias e fazer com que as pessoas acreditem que é possível preservar o Pantanal. A nossa função, o trabalho do Pantanal+10 é retratar o Pantanal e deixar um documento, um testemunho.

Retrato de jovem pantaneiro, de apelido “Cutu”, na divisa entre Poconé (MT) e Corumbá (MS). Foto: José Medeiros
  • Michael Esquer

    Jornalista pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com passagem pela Universidade Distrital Francisco José de Caldas, na Colômbia, tem interesse na temática socioambiental e direitos humanos

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