Nova York — O mundo acaba de adotar um novo conjunto de metas para substituir os desafios do milênio. Ao invés dos 8 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), agora o pacote terá 17 metas, os chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A componente ambiental que ficara de fora no ano 2000 – quando o Brasil e mais 188 países se comprometeram a realizar avanços para diminuir a pobreza e a desigualdade até 2015 – ganhou força nesta que está sendo chamada de a “Agenda 2030”.
Tudo começou na Rio+20, em 2012, quando na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável no Rio de Janeiro, os ODS já estavam indicados como um importante resultado do evento. O documento final de 53 páginas ditava o caminho para a cooperação internacional rumo à sustentabilidade no mundo. Naquela ocasião, governos, empresários e sociedade civil registraram mais de 700 compromissos com ações concretas para responder a inúmeras necessidades como economia verde e energia sustentável.
Foram precisos três anos e meio para elaborar o que é hoje o escopo dos 17 ODS e suas 169 metas específicas. A substituição das metas do milênio foi oficialmente anunciada durante a Cúpula sobre o Desenvolvimento Sustentável, na sede das Nações Unidas, em Nova York, entre os dias 25 e 27 de setembro.
De lá para cá, muita coisa mudou e a perspectiva ambiental ganhou força com o agravamento das mudanças climáticas, a escassez de água que enfrentam muitos países, a emissão de gases de efeito estufa e a degradação florestal.
Mais do mesmo?
Até pode parecer mais do mesmo, de ODM para ODS (apenas trocando a última letra de M de milênio para S de sustentável), mas uma grande mudança de percepção esteve em curso até agora, garante Kitty van der Heijden, do World Resources Institute (WRI).
“Muitos dizem que é mais do mesmo e só troca a palavra. Pode não soar como uma revolução, mas, de fato, o que podemos ver nos ODS é realmente transformador. O seu conteúdo tem o potencial de revolucionar nossas economias, nossa mente e a forma como lidamos com os ecossistemas no mundo em que vivemos”, disse a ((o))eco.
A própria expressão “desenvolvimento sustentável’ suscita muitas dúvidas e gera confusão. Mas, no fundo, explicita a necessidade de alcançar um equilíbrio entre três pilares da sociedade: o econômico, a igualdade social e a ecologia.
As oito metas do milênio buscavam erradicar a extrema pobreza e a fome, universalizar a educação primária, promover a igualdade de gênero, reduzir em dois terços a mortalidade infantil, melhorar a saúde materna, combater HIV/Aids e a malária, garantir a sustentabilidade ambiental e formar parcerias mundiais para o desenvolvimento.
A ONU considera que a maior parte das metas foi alcançada, mas ficaram muitas brechas e lacunas inconclusas – como a igualdade de gênero, saúde materna e reprodutiva.
Crescemos as nossas economias – o PIB (Produto Interno Bruto) global mais que triplicou desde 1990, quando era US$22,5, para US$ 73 trilhões em 2012 – às custas do meio ambiente.
“Quando olhamos para o aspecto ecológico, a notícia é muito ruim. Está inclusive piorando, pois temos observado a perda sucessiva de biodiversidade, acidificação dos oceanos, aquecimento global, degradação das florestas e escassez de água. É uma tendência negativa que só aumenta. Crescemos nossas economias, mas não conseguimos distribuir a riqueza equitativamente comprometendo nosso capital natural”, analisou.
Kitty esteve na Rio+20 integrando a delegação holandesa a participou ativamente das negociações para o documento final da conferência. Hoje, no terceiro setor, ela lembra o que representou aquele momento. “Ali houve um reconhecimento fundamental de que os desequilíbrios econômicos e os desafios de recursos naturais já corriam os riscos de reverter as conquistas sociais que fizemos nas últimas décadas. Precisamos erradicar a pobreza de forma irreversível, ter no ponto central da agenda de desenvolvimento a busca pela dignidade humana e o crescimento econômico sem erodir os recursos naturais”.
O mundo terá até 2030 o prazo para adotar esta nova agenda de 17 metas sustentáveis e concluir o que ficou inacabado sem deixar ninguém para trás, ou, em suas palavras: “finished the unfinishied business”.
Para se ter um exemplo da complexidade da agenda, quando se trata de combate à fome, o problema tem uma abordagem mais ampla envolvendo segurança alimentar, acesso à terra, preservação dos ecossistemas, água potável e clima. Um exemplo claro desta dinâmica ocorre nos países africanos em que o aquecimento global ameaça diretamente o cultivo de grãos e alimentos reduzindo sua produtividade entre 15 e 30% dependendo da região.
Natureza no centro do debate
Para Kitty, do WRI, o grande avanço agora é que os ODS colocam a sustentabilidade ambiental no centro do debate. “Há metas exclusivas para mudanças climáticas, ecossistemas terrestres, vida nos oceanos e biodiversidade. Além disso, teremos que integrar todas essas considerações ambientais nas outras metas”.
Todos os problemas estão interligados e os serviços ambientais devem ser incluídos na agenda de desenvolvimento para 2030, argumenta a especialista.
“A lição que aprendemos dos ODM é que não podemos fazer mudanças sustentadas se trabalharmos em setores separados. É a interconexão entre os três pilares que expressa a grande transformação dos ODS”.
As projeções apontam que, em 2025, 2,5 bilhões de pessoas sofrerão com falta d’água. Se não há água suficiente, não se poderá administrar uma economia, os ecossistemas estarão degradados e a saúde humana estará em risco.
O Brasil tem 20% de água doce em seu território, mas tem apenas 5% da população global, enquanto há países como Índia, que concentra 20% da população mundial e apenas 5% dos mananciais de água disponíveis. O mundo terá que ser capaz de lidar com situações assim e traçar novas soluções.
Entre as 17 metas, há duas que expressam a questão da água, a meta de número 6 para assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e a de número 14 que versa sobre a conservação e uso sustentável dos recursos marinhos. No entanto, os recursos hídricos são transversais a quase todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
O mesmo ocorre com as florestas e áreas protegidas. Elas estão incluídas no pacote de metas no ODS 15: proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da Terra e frear a perda de biodiversidade. E dentro deste ODS, há 9 objetivos específicos relacionados ao manejo sustentável e restauração de terras.
“As florestas estão incluídas em toda a Agenda 2030. A preservação delas está relacionada ao bem-estar humano e à saúde, assim como ferramenta para erradicar a pobreza e garantir a segurança alimentar. Cerca de 1,6 bilhão pessoas mora nas florestas e depende diretamente dela para seu sustento”.
Segundo a ONU, 13 milhões de hectares de florestas são desmatados todos os anos. Em razão da seca e desertificação, outros 12 milhões de hectares de solos são perdidos anualmente – 23 hectares por minuto. Toda essa área seria suficiente para cultivar 20 milhões de toneladas de cereais.
Além de ser a casa para 70 milhões de indígenas no mundo, as florestas são lar de mais de 80% de todas as espécies de animais, plantas e insetos terrestres. Das 8.300 raças de animais conhecidas, 8% estão extintas e 22% estão sob risco de extinção.
Perguntada se esta meta sustentável seria suficiente para dar conta do desafio das áreas protegidas no mundo, Kitty não pensa duas vezes: “não é suficiente, é uma aspiração. Pelo menos os líderes mundiais reconhecem o quão importante são nossas florestas para a economia”.
O Brasil avançou nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio?
No relatório brasileiro de acompanhamento dos ODM, de maio de 2014, apontou que o Brasil atingiu o ODM 7 para garantir a sustentabilidade ambiental. Dentro deste ODM, havia duas metas relativas à proteção dos recursos ambientais e da biodiversidade e outras duas relacionadas ao acesso à água potável e ao saneamento básico, assim como a melhoria das condições de vida da população urbana em assentamentos precários.
Veja alguns dos resultados:
- Em relação ao desmatamento, relatório do governo brasileiro apontou que, desde o lançamento do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, em 2004, observou-se uma queda consistente nas taxas anuais de desmatamento, chegando a 4,57 mil km2 em 2012 – uma redução de 83,5% (no período 2004-2012).
- Já o alerta vai para o Cerrado que, entre 2002 e 2008, sofreu um desmatamento absoluto de 85.075 km2, uma taxa média anual de 14.179 km2. Em 2010, houve queda na taxa de desmatamento deste bioma chegando a 6.469 km2. Ainda assim, o Cerrado é o bioma com maiores taxas de desmatamento da atualidade, superando as observadas na Amazônia em períodos recentes.
- No que se refere às emissões de CO2 e de outros gases de efeito estufa (GEE) medidos em termos de sua equivalência ao CO2 (CO2eq) quanto ao potencial de sua contribuição para o aquecimento global (GWP), houve mudanças entre 2005 e 2010. Em 2005, o Brasil emitiu o equivalente a dois bilhões de toneladas de CO2eq, quantidade que caiu para 1,3 bilhão de tonelada de CO2eq cinco anos depois – uma redução de 38,7% no total de gases de efeito estufa emitidos no período.
- Houve também uma queda de 11 para 6,6 toneladas de CO2eq por habitante de 2005 a 2010. Para se ter uma ideia, as emissões médias em países desenvolvidos estão por volta de 11 toneladas por habitante ao ano, enquanto em países em desenvolvimento ficam em torno de três toneladas por habitante ao ano.
- No tocante à contribuição de cada setor econômico, em 2005 a principal fonte de emissões de GEE era pelo uso da terra e florestas – 58% do total –, principalmente devido aos desmatamentos na Amazônia e Cerrado. Em segundo lugar estava a agropecuária, responsável por 20% e, em seguida, o setor de energia, com 16% das emissões – resultante da queima de combustíveis fósseis e emissões fugitivas da indústria de petróleo, gás e carvão mineral.
- Em 2010 quando a agropecuária passou a responder por 35% do total de emissões; o setor de energia ocupou o segundo lugar, com 32%, seguido pelo uso da terra e florestas, com 22%. O aumento de combustíveis fósseis foi o que alavancou a subida de 21,4% no total de emissões entre 2005 e 2010.
- Em termos de áreas protegidas, os dados do Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC), no intervalo 2000 a 2013, indicaram aumento no número e na na área abrangida pelas UCs. Nesse período, o número de UCs dobrou de 916 para 1.783 e a área cresceu mais de 110% (de 0,7 milhão para 1,5 milhão de km2).
- De todas as UCs, 1.224 (1 milhão de km2) são de uso sustentável e 559 (520 mil km2) de proteção integral. A extensão territorial protegida por meio de UC nas três esferas da administração pública corresponde a aproximadamente 17% da área continental e a apenas 1,5% das áreas marinhas.
- A Amazônia é o bioma com maior cobertura de unidades de conservação, abrangendo 26,2% de sua área total – em que 16,5% são de uso sustentável e 9,4% de proteção integral. O segundo bioma com maior abrangência de UC em termos percentuais é a Mata Atlântica, seguida pelo Cerrado, Caatinga, Pantanal e Pampa.
- Sobre a preservação da biodiversidade, estima-se que existam no Brasil entre 1,4 milhão e 2,4 milhões de espécies, o que nos torna o país com maior biodiversidade no mundo. Desse total, entre 10% e 20% referem-se a espécies conhecidas e catalogadas. As listas de espécies brasileiras ameaçadas de extinção incluem 472 espécies da flora e 627 da fauna.
- Nos anos de 2011-2012, houve um aumento superior a 8% na proporção das espécies brasileiras ameaçadas de extinção com registro de ocorrência nas UC federais. Outro indicador de avanço na conservação da biodiversidade brasileira refere-se à proporção de espécies ameaçadas de extinção para as quais foram apresentados Planos de Ação para a Recuperação e a Conservação, os chamados Planos de Ação Nacionais (PAN). Entre 2008 e 2012, constatou-se que o número de espécies ameaçadas de extinção com PAN aumentou mais de 13 vezes alcançando em 2012 aproximadamente 49% das espécies.
Papel do Brasil
Ainda de acordo com Kitty, o Brasil está num ponto de inflexão – um “turning point”, em inglês. “O país tem um papel grande a desempenhar. O legado da Rio+20 estava nas mãos da delegação brasileira e tem tido um papel de liderança. Mas queremos que sua liderança no cenário internacional também se expresse internamente”.
Para a especialista, há algumas questões que estão em jogo: desde o uso de energias renováveis mais limpas e de menos emissão de gases de efeito estufa, além de um uso da terra que libere menos carbono na atmosfera.
“Se não houver essa mudança, será muito difícil implementar os ODS no Brasil e alcançar os resultados em termos de progresso social, combate à pobreza, crescimento econômico com geração de emprego e serviços ambientais”.
Na ONU, a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, mostrou muito otimismo ao comentar a trajetória da Rio+20 até a definição e lançamento do pacote de 17 ODS que o mundo acabou de adotar. “Tivemos um papel estratégico nos ODS. Esse foi o principal resultado da Rio+20 exatamente pela percepção de que o desenvolvimento sustentável pudesse ser olhado globalmente, mas também considerando as diferenças nacionais e respeitando os desafios que cada país tem frente às suas ações de desenvolvimento”, disse a ((o))eco a ministra.
Apesar de divergentes os interesses mundiais, é possível conciliar as diferenças para um objetivo comum. Perguntada se houve resistência ou disputa na elaboração dos ODS, Teixeira se esquivou ao considerar este um processo natural.
“Não coloco como resistência, mas foi um desafio. Houve um processo de debate de natureza política, primeiro era para se ter uma compreensão do que significavam ODS e qual seria a formulação estratégica. Em seguida, tivemos o trabalho de dois anos para traduzir em indicadores, pois são 169 metas, é muita coisa que permitirá uma visão e inclusão de todos os países”, concluiu.
A partir de agora, todos os países vão ter que elaborar seus planos nacionais de ODS e, só a partir daí, será possível avaliar o grau de ambição dos governos e se o que foi dito nos inúmeros discursos na Assembleia Geral da ONU serão, de fato, traduzidos em ações locais.
“Como é um documento da ONU, não há realmente obrigação que os países adotem. Na ONU tudo é voluntário e por consenso”, lembrou Kitty.
Esta será uma tarefa que não envolverá apenas os países de renda baixa e média, as economias ocidentais do hemisfério norte também terão que apresentar mudanças locais.
Enquanto a agenda do milênio foi, em sua maioria, financiada por recursos de fundos internacionais e agências de desenvolvimento do Norte para o Sul, a dúvida agora fica sobre quem vai pagar a conta.
A Agenda 2030 parte da premissa que os negócios no mundo são transnacionais e multinacionais, e o mundo dos negócios também terá que levar em conta esse pacote de metas. Os orçamentos nacionais terão um papel mais importante que as agências internacionais. Muitos países vão fazer uso de seus recursos domésticos para implantar a agenda, prevê Kitty.
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