Reportagens

Lula muda regras para destinação de terras e aumenta proteção a florestas públicas

((o))eco ouviu especialista em regularização fundiária para entender os principais pontos alterados pelo governo federal em nova norma. Confira

Cristiane Prizibisczki ·
11 de setembro de 2023

O governo federal publicou, na última semana, uma nova norma sobre regularização fundiária, com mudanças consideráveis na forma como as terras públicas passarão a ser destinadas no país. Com uma área equivalente ao território da Espanha ainda sem destino, principalmente na Amazônia, o tema não poderia ser mais importante para o Brasil. Áreas não destinadas são o principal foco de grilagem e desmatamento atualmente.

Para entender as mudanças ocorridas na norma, ((o))eco conversou com um dos principais nomes no país sobre o tema: a pesquisadora associada do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Brenda Brito.

Quem destina?

Segundo a pesquisadora, o Decreto nº 11.688, de 5 de setembro de 2023, traz avanços importantes em relação à legislação até então em vigor. Um desses avanços é o aprimoramento da composição e funções da Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais, que ganhou novos integrantes e aprimorou seus procedimentos.

Formada por membros de diferentes ministérios e órgãos do governo, a Câmara é a responsável por analisar e definir a posse e o uso de áreas públicas ainda sem destino.

 Além dos membros previstos na norma anterior – Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Incra, Serviço Florestal Brasileiro, ICMbio e Funai –, agora também ganharam assento o Ministério da Gestão e da Inovação e Ministério dos Povos Indígenas, com direito a voto, e os Ministérios da Justiça e o da Igualdade Racial, com caráter consultivo.

“A Câmara Técnica tinha uma questão que era problemática, que era lógica da preferência ser a regularização fundiária [privatização de terras, em detrimento da criação de áreas protegidas]. Esse era sempre o ponto de partida, a não ser que algum órgão se manifestasse com outro interesse”, explica Brito.

Segundo ela, no entanto, essa manifestação de órgãos voltados para a criação de Unidades de Conservação, Terras Indígenas ou quilombolas não acontecia com muita frequência.

“Então eles acabavam destinando a maior parte das áreas, mesmo sendo de floresta pública, para regularização, justamente por essa ausência de manifestação dos outros”, diz.

Agora, além dos novos membros e no aprimoramento dos procedimentos para a deliberação da destinação, o decreto também deixa claro a política que o colegiado deve seguir, voltada para a priorização de criação de áreas protegidas, terras indígenas, territórios quilombolas, territórios de outros povos e comunidades tradicionais, reforma agrária, concessões florestais e políticas públicas de prevenção e controle do desmatamento.

Florestas Públicas

Outro ponto importante que a nova redação trouxe foi a menção explícita dos destinos possíveis que áreas de florestas públicas podem ter. Segundo o decreto nº 11.688, a destinação destas áreas florestais ficará restrita às seguintes políticas públicas:

  • Criação e regularização fundiária de unidades de conservação da natureza;
  • Demarcação e regularização fundiária de terras indígenas;
  • Demarcação e regularização fundiária de territórios quilombolas,
  • Demarcação e regularização fundiária de territórios de outros povos e comunidades tradicionais;
  • Concessões florestais;
  • Outras formas de destinação compatíveis com a gestão sustentável das florestas públicas.

A norma anterior não trazia essa restrição, o que abria possibilidade à privatização.

“Esse é o principal ponto do decreto, que é dizer: ‘se for floresta pública, só pode ser feito isso daqui’, e aí ele lista o que pode ser feito. Isso é importante porque as restrições já estavam previstas em lei, inclusive na Constituição, mas de forma dispersa. Faltava juntar esses fios soltos num só local”, explica a pesquisadora.

Em relação a estas áreas florestais, o decreto também avança na proteção, por definir que o conceito de floresta pública a ser usado é o que está previsto na lei que rege a gestão dessas áreas, a Lei Federal nº 11.284/2006.

“Antes, floresta pública, para a finalidade da Câmara Técnica, era só aquela em que o Serviço Florestal manifestava interesse. O novo decreto vem corrigir isso”.

Outros avanços

Além dos dois pontos principais citados acima, a pesquisadora do Imazon destaca outras inovações que aumentaram a proteção das áreas públicas.

Um deles é a menção explícita ao fato de que não será admitida a regularização fundiária em favor de requerente cujo Cadastro Ambiental Rural (CAR) não esteja ativo no sistema federal.

O outro ponto é a ampliação da necessidade de vistoria física de imóveis que tenham sido autuados por órgãos ambientais de qualquer esfera de poder – federal, estadual ou municipal. A redação anterior só falava de vistoria em caso de autuação pelo órgão federal.

E, por último, a possibilidade de a Câmara Técnica “reservar” terras, por meio de limitações administrativas provisórias. Por exemplo: se o ICMBio manifestar interesse em uma área, a Câmara “reserva” esta área para que nada possa ser feito com ela, até que os procedimentos de criação de unidade de conservação sejam finalizados.

“Esse decreto é um primeiro passo para operacionalizar a proteção [de terras públicas]. O segundo passo vai ser a internalização dos procedimentos, pelos diferentes órgãos. Por exemplo, o INCRA vai precisar pegar esses shapes [dados georreferenciados] das florestas públicas, integrar na plataforma deles e começar a negar o pedido de titulação que é feito em cima delas. Esse é um ponto que ainda vai precisar avançar”, finaliza Brito.

Segundo o decreto, a Câmara Técnica tem 90 dias para apresentar um Plano de Ação para destinação de terras públicas em áreas críticas e prioritárias da Amazônia Legal, a contar da designação de seus membros.

  • Cristiane Prizibisczki

    Cristiane Prizibisczki é Alumni do Wolfson College – Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellow...

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Comentários 3

  1. Pedro Bara diz:

    Excelente matéria, parabéns


  2. Milton Santos de Amorim diz:

    Dirijo-me a nobre pesquisadora BRENDA BRITO, do instituto IMAZON, no intuito de alcançar um melhor entendimento sobre os reais objetivos a serem alcançados pelo recente Dec 11.688, de 5/09/2023 cujo objetivo maior é o “aprimoramento da composição e funções da Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais … ”
    É que, infelizmente, ainda não entendi essa postura de se continuar deixando de considerar a importância das terras jurisdicionadas às UFs ao tratar da política pública da Regularização Fundiária no seu sentido mais amplo. O quantitativo, em hectares de terras devolutas estaduais passível de RF em todo o Brasil (em especial na Amazônia) é muito maior que o quantitatibo federal. A continuidade de uma atuação integrada (federal/estadual) é imprescindível para a Nação Brasileira no contexto da Governança Territorial Rural, isso especialmente na Amazônia onde a grilagem de terras anda a galope. Em decorrência de financiamentos de organismos internacionais, em épocas pretéritas foram desenvolvidos lmportantíssimos projetos de RF em quase todas as UFs financiados por Organismos Internacionais FAO, BID, BIRD, etc. E no presente momento, ao lado dos mecionados bancos internacionais está aí o BANCO DO BRICS (tendo como gerente maior a nossa ex-Presidenta Dilma Roussef) inteiramente aberto para tais financiamentos e com dinheiro de montão disponível. Volto a registrar um fraseado de minha autoria: “O BRASIL DAS TERRAS DEVOLUTAS É ESSENCIALMENTE ESTADUAL”. Adicionalmente, é bom frisar que toda a legislação agrária de regência, editada pelo governo federal até hoje deixa muito claro o incentivo em pról dessa atuação integrada com as UFs.
    Atenciosamente.
    Milton Amorim – Eng Agrônomo/Incra


  3. Milton Santos de Amorim diz:

    Dirijo-me a nobre pesquisadora BRENDA BRITO, do instituto IMAZON, no intuito de alcançar um melhor entendimento sobre os reais objetivos a serem alcançados pelo recente Dec 11.688, de 5/09/2023 cujo objetivo maior é o “aprimoramento da composição e funções da Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais … ”
    É que, infelizmente, ainda não entendi essa postura de se continuar deixando de considerar a importância das terras jurisdicionadas às UFs ao tratar da política pública da Regularização Fundiária no seu sentido mais amplo. O quantitativo, em hectares de terras devolutas ESTADUAIS passível de RF em todo o Brasil (em especial na Amazônia) é MUITO MAIOR que o quantitatibo FEDERAL. A continuidade de uma atuação integrada (federal/estadual) é imprescindível para a Nação Brasileira no contexto da Governança Territorial Rural, isso especialmente na Amazônia onde a grilagem de terras anda a galope. Em decorrência de financiamentos de organismos internacionais, em épocas pretéritas foramdesenvolvidos lmportantíssimos projetos federativos de RF em pról de quase todas as UFs, financiados pelos Organismos Internacionais FAO, BID, BIRD, etc. E no presente momento, ao lado dos mecionados bancos internacionais está aí o BANCO DO BRICS (tendo como gerente maior a nossa ex-Presidenta Dilma Roussef) inteiramente aberto para tais financiamentos e com dinheiro de montão disponível. Volto a registrar um fraseado de minha autoria: “O BRASIL DAS TERRAS DEVOLUTAS É ESSENCIALMENTE ESTADUAL”. Adicionalmente, é bom frisarr que toda a legislação agrária de regência, editada pelo governo federal até hoje, deixa muito claro o incentivo em pról dessa atuação integrada com as UFs.
    Atenciosamente.
    Milton Amorim – Eng Agrônomo/Incra