Na madrugada do dia 15 de julho deste ano, parte do Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais (MHNJB/UFMG) foi consumido pelas chamas. Passados seis meses do incêndio, a instituição ainda contabiliza suas perdas. “Esse trabalho de levantamento de danos, por mais que provavelmente no ano que vem consigamos emitir algum relatório, ele nunca vai ser definitivo, porque a gente tem uma quantidade de acervo muito grande atingido”, diz o museólogo André Leandro Silva, responsável pelo setor de conservação da instituição.
O fogo, cuja origem ainda é desconhecida, se alastrou pelo telhado e por cinco salas onde ficava parte da reserva técnica da instituição, com as coleções da paleontologia, arqueologia, biologia, entomologia e zoologia. Para algumas dessas coleções, como a entomológica (insetos), a perda foi quase total.
Segundo André Silva, a área atingida não era negligenciada pelo Museu. Os últimos investimentos em reforma e adequação, realizados em 2015, foram feitos justamente naquele local. “Se a gente tivesse recurso para investir no acervo, não seria lá”, diz, ao rebater críticas feitas à época do incêndio de que houve descaso por parte da atual direção do MHNJB.
No entanto, o museólogo reconhece que as coleções biológicas brasileiras, de uma forma geral, sofrem com o descaso de governos e instituições. “Existe, sim, uma questão relevante que é a negligencia com os museus universitários, científicos e culturais no Brasil de uma maneira geral, que faz com que a gente tenha que trabalhar no limite. A gente não trabalha com margem de segurança e é não porque os trabalhadores não estão dando o máximo, é por falta de recurso mesmo”, diz.
O caso de Minas não é exceção. Segundo levantamento feito pelo pesquisador Francisco Luís Franco, do Instituto Butantan, nos últimos 10 anos foram contabilizados cerca de 30 incêndios, de diferentes proporções, em acervos científicos, bibliotecas, museus e universidades do Brasil. “No mundo, certamente esses registros ultrapassam a centena, mas as notícias que nos chegam são em número menor, tendo em vista que muitos deles não são divulgados na grande mídia, portanto, difíceis de serem apurados”, diz o pesquisador.
Franco começou a contabilizar esses números após ver a maior coleção científica herpetológica (serpentes) do mundo, da qual era curador, ser destruída pelas chamas, no incêndio que atingiu o Butantan, em 15 de maio de 2010. Foi-se, para sempre, cerca de 90% de uma coleção de 82 mil espécimes de serpentes e cerca de 450 mil aranhas e escorpiões reunidos por pesquisadores e colaboradores ao longo dos últimos 120 anos. Uma perda imensurável, cujos impactos ainda são sentidos, mesmo passada uma década do ocorrido.
Perdas sem limites
Como fontes de recursos genéticos, as coleções biológicas oferecem produtos e serviços qualificados para aplicações em pesquisa, desenvolvimento e inovação, o que inclui, por exemplo, a produção de insumos para diagnóstico, medicamentos e também para vacinas.
Ainda que uma possível vacina para a Covid-19 não tenha relação com as coleções biológicas de institutos brasileiros – a Coronavac, uma das mais promissoras, foi desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac, em parceria com o Butantan, a partir de material genético do próprio vírus – ela colocou as instituições de pesquisa científica no centro das atenções. Finalmente um pouco de reconhecimento ao desvalorizado setor.
Após o incêndio no Butantan, em 2010, as coleções científicas do Instituto foram alocadas em um prédio novo, com mobiliário e equipamentos adequados. Mas esta não é a realidade da maioria dos museus, centros de pesquisa e instituições mantenedoras de coleções biológicas no Brasil.
Instalações precárias, espaços inadequados, parcos recursos, falta de manutenção e, em última instância, falta de interesse dos governos e da sociedade em manter essas coleções, estão entre os motivos citados por Franco e outros pesquisadores sobre a situação das coleções biológicas no país.
“O [incêndio no] Butantan, quando aconteceu, foi uma tragédia mundial, mas as coisas não mudaram. […] Não é uma questão pontual. A sociedade chora, reclama, mas não introjeta bem a dimensão de nossas perdas, que são muito graves”, diz Francisco Franco.
Atitudes muito básicas, como seguir a legislação atualmente existente, já diminuiriam as chances de que novas tragédias aconteçam, defende o pesquisador. Segundo estimativas, cerca de 80% dos museus no país não possuem alvará de funcionamento dos Bombeiros, por exemplo.
Além disso, muitos dos acervos biológicos estão depositados em espaços improvisados, dentro dos próprios laboratórios de pesquisa, por exemplo. Uma melhor alocação dessas coleções e manutenções básicas já faria a diferença. “Falta manutenção no sentido mais banal, como trocar uma tampa que rachou, verificar o líquido conservante, se a concentração está adequada. Os acervos estão sendo queimados por pequenas velinhas, por milhares de pequenas velinhas, sem fazer barulho”, diz Franco. “Considerando o custo-benefício, os acervos são extremamente baratos, porque demandam coisas muitos simples e que duram muito”, complementa.
As próprias instituições depositárias, muitas vezes, não dão a devida importância a estas coleções, o que agrava a situação de descaso dos governantes em relação a esse tipo de acervo.
“O que falta para nós é uma política nacional para criação, manutenção e perpetuação de nossos acervos científicos. A Política Nacional de Museus não contempla, nem de perto, as necessidades dos acervos biológicos do país”, diz Franco.
Política Nacional
A Política Nacional de Coleções Biológicas a que Franco se refere, de fato, começou a ser discutida no nível Federal, mas acabou abandonada. Em 2005, representantes da Sociedade Brasileira de Zoologia, Sociedade Brasileira de Microbiologia e Sociedade Botânica do Brasil se juntaram para criar um planejamento para as coleções biológicas brasileiras. Na época, foi formada uma câmara de discussão sobre o assunto dentro da Comissão Nacional de Biodiversidade (Conabio).
“Enquanto existia essa Câmara, nós estudamos juntos e rascunhamos o que seria ideal para a Política Nacional de Coleções Biológicas. Porém, por várias questões políticas, esse rascunho não foi para frente. Em 2018, a resolução que determinava a existência da Câmara no Conabio foi revogada, então, ela não existe mais”, explica a professora da Universidade Federal do Paraná Luciane Marinoni, coordenadora da Rede Paranaense de Coleções Biológicas (Rede Taxonline) e presidente da Sociedade Brasileira de Zoologia.
Com a professora Luciane à frente da Rede Taxonline, o Paraná – estado que conta com 15 diferentes instituições, nos níveis municipal, estadual e federal, detentoras de coleções científicas – levou para frente a discussão de uma política própria para seus acervos biológicos. Atualmente, o Estado é o único no Brasil a ter uma Política Estadual para Coleções Biológicas, aprovada em 2017 dentro da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, à época.
A partir da aprovação da Lei Estadual e do reconhecimento da Rede Taxonline, Luciane conta que foi possível a criação, pela Fundação Araucária – agência de fomento à pesquisa no Estado – de um Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação (Napi), que permitiu a integração de instituições de nível superior paranaenses e Institutos de Pesquisa, com objetivo de ampliar a identificação, reconhecimento e certificação de material científico do Paraná.
Em julho passado, o Napi-Taxonline conseguiu recurso de cerca de R$ 2 milhões, que serão usados na adequação e modernização das coleções biológicas do Estado. “Para mostrar como, quando você coloca dentro do governo, dentro do Estado, um planejamento, as coleções se tornam visíveis e você começa a mostrar a importância e necessidade de se manter esses acervos”, diz.
Segundo Luciane, a discussão sobre uma Política Nacional para Coleções Biológicas seria retomada em simpósio programado para este ano. O evento teve de ser adiado por conta da pandemia.
Tragédias anunciadas
Quando o fogo atingiu o Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais, o ex-diretor da instituição, professor Antônio Gilberto Costa, desabafou: “Não foi por falta de aviso”, disse ele em entrevista a um jornal mineiro.
O apelo do professor Costa não é uma situação isolada. Pesquisadores ao redor do Brasil vêm denunciando as más condições de nossos acervos biológicos.
Em publicação em uma rede social, a professora da Universidade Federal da Bahia Rejane Lira, coordenadora do Núcleo de Ofiologia e Animais Peçonhentos da Bahia (NOA/UFBA) e curadora da Coleção Herpetológica do Museu de História Natural da Bahia (MHNBA/UFBA), denunciou os perigos a que estão expostas as coleções de zoologia deste museu baiano.
“Essa sala deveria ser interditada, porque todas as coleções do Setor de Zoologia do MHNBA estão sob risco, inclusive as sob nossa responsabilidade: Aracnológica e Herpetológica. Não há extintor de incêndio nessa sala, que tem uma parede à direita com risco de cair. Para piorar, há ar-condicionados velhos instalados, fora de uso e tomadas com fios expostos […] Na sala de preparação do material, as pias estão interditadas, sem funcionar e não há exaustores […]. É preciso URGENTE que sejam tomadas medidas emergenciais para evitar que o pior aconteça com as nossas coleções”, disse a pesquisadora.
A ((o))eco, a coordenadora do MHNBA, Priscila Camelier, explicou que não era possível dar uma resposta oficial sobre os problemas apontados por Lira, pois, até o momento, o museu não havia recebido uma denúncia oficial. No entanto, ela disse que, apesar de a coleção de Zoologia estar armazenada em um espaço considerado “temporário”, o museu tentou ao máximo propiciar as condições de segurança necessárias, dentro das possibilidades orçamentárias, com reformas pontuais, compra de novos extintores e ar-condicionados.
“Nosso espaço ainda não é o espaço que planejamos para o Museu. […] Nós temos problemas estruturais, mas de forma nenhuma é de negligencia dos curadores, da direção, da coordenação do museu. São problemas que estão fora de nosso alcance resolver”, diz.
Apesar de haver diferentes entendimentos sobre os riscos que correm as coleções biológicas de diferentes instituições, como foram os casos dos Museus da Bahia e de Minas Gerais, há o consenso de que, apesar de sua enorme importância, elas são “invisíveis” aos olhos da sociedade e dos governos. E o futuro não é promissor.
Ao comentar a tragédia no Museu mineiro, o museólogo André Leandro Silva sentenciou:
“Fatalidades como essa, que demonstram a fragilidade da estrutura de preservação do patrimônio cultural e científico brasileiro, mostram que cada vez mais é necessário ter um planejamento adequado, ter o poder público atuando de forma coerente e consistente. Infelizmente a gente está num cenário, num governo, e que isso não tem a mínima chance de acontecer”, diz.
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