Reportagens

Mulheres na luta contra invisibilidade na pesca

A urgente necessidade de visibilidade das demandas da pesca artesanal e gênero nas discussões foi tema de diversos encontros paralelos ao palco principal da Conferência dos Oceanos

Paulina Chamorro ·
5 de julho de 2022 · 2 anos atrás

“São os Oceanos, o nosso meio de sustentabilidade, que estão sendo discutidos. São os nossos territórios que estão sendo discutidos, é onde nós produzimos. É a nossa empresa, o oceano é a nossa empresa, então nós que devemos estar nessa discussão”.  A resposta da pescadora Martilene Rodrigues, do Movimento de Pescadoras e pescadores artesanais, foi comum a todas as mulheres representantes de movimentos que estiveram na Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, realizada entre 27 de junho a 1º de julho, em Lisboa, Portugal.

Alguns assuntos preponderantes rondavam as mesas de discussões na Plenária principal sobre a saúde dos ecossistemas costeiros: poluição plástica, mineração em alto-mar, sobrepesca e pesca ilegal e, tranversal a tudo isso, a recuperação de ecossistemas marinhos. Mas, no ano internacional da Pesca e Aquicultura Artesanais, assim declarado pela Assembleia Geral da ONU com coordenação da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), as discussões com participação destes atores para a tomada de decisões ou elaboração de propostas, foram todas organizadas do lado de fora do palco principal da conferência, em eventos paralelos.

Durante a mesma semana em Lisboa foi lançado um novo relatório, da mesma FAO, com dados potentes sobre o consumo, produção e pesca (“The State of World Fisheries and Aquaculture 2022” – A Situação Mundial da Pesca e da Aquicultura – SOFIA, na sigla em inglês)

Para começar, a produção pesqueira e de aquicultura registrou um recorde histórico,  com 214 milhões de toneladas em 2020, sendo 178 milhões de toneladas de peixes e 36 milhões de toneladas de algas. Um recorde devido ao crescimento exponencial da aquicultura, em especial na Ásia.

De acordo com a FAO, o setor vai ter um papel cada vez mais importante na distribuição e fornecimento de alimentos, e para nutrição no mundo no futuro. Outro ponto destacado no SOFIA é para o grande potencial da aquicultura para alimentar as pessoas, desde que haja um crescimento sustentável.

O Brasil está fora dos dados e esse é um ponto que também se conecta com a invisibilidade e a necessidade de incluir os atores que estão à frente da pesca artesanal no país.

Para o diretor científico da Oceana no Brasil, Martin Dias, os dados do relatório e a ausência de informação do país “só reforça a importância de promover a gestão técnica dos estoques que vêm cada vez mais sofrendo com a sobrepesca.  O Brasil mais uma vez não repassou dados à Agência [FAO]. O que torna o setor pesqueiro artesanal do país ainda mais invisível e esse é um fator limitante para que o próprio setor artesanal consiga se envolver e expressar a sua importância em termos socioeconômicos para o nosso país”.

A falta de dados oficiais sobre o estado do setor pesqueiro no Brasil e a necessidade de um panorama mais concreto é um dos motivos da produção da Auditoria da Pesca, lançado pela Oceana em 2020. O relatório, produzido anualmente desde então, “avalia o desempenho da gestão da pesca marinha no país tomando como base dados, regulações e diferentes arranjos de governança vigentes”.

Leia mais: Mais um ano no escuro: Brasil segue sem saber o que pesca

A necessidade da informação e a importância da participação de pescadoras e pescadores artesanais e de pequena escala nos processos decisórios foi um apelo repetido à exaustão em diversos eventos “paralelos” (side events) durante a Conferência dos Oceanos.

No terceiro dia – e um dos mais importantes eventos destinados a este tema – o painel “Diálogos pela conservação marinha e pesca artesanal: a visão em pequena escala”, contou com a participação de países como Honduras, Panamá, Costa Rica, Indonésia e Senegal, e também apresentou falas de pescadores e pescadoras do Brasil e Chile.

Ormezita Barbosa, diretora-executiva do Conselho da Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), organização vinculada à igreja católica e que há 50 anos atua com pescadores e pescadoras artesanais, é uma das vozes que participou deste e de outros encontros de articulação em Portugal.

A crítica é aguda e traz o consenso de que as demandas e reivindicações são muito parecidas entre os pescadores em pequena escala pelo mundo.

“Esse modelo de discussão que não envolve e que não privilegia as populações mais importantes, que são as que garantem inclusive a preservação dos oceanos”, aponta a pescadora. A crítica ao modelo das discussões da Conferência também vem com a reflexão sobre a importância dos encontros e o intercâmbio de informações sobre as formas de luta e os caminhos encontrados em outros países.

“Ao mesmo tempo das atividades que a gente está construindo, também construímos uma narrativa de visibilidade da peça artesanal e da importância da pesca artesanal para produção de alimentos, mas também para conservação dos oceanos. Temos visto que talvez sejam as mesmas reivindicações”, afirma Ormezita.

A diretora do CPP destaca ainda a importância da troca com outros países em desenvolvimento. “Me marcou muito esse diálogo mais direto com os países do continente africano. A América Latina e África são os locais que são saqueados, as comunidades pesqueiras são saqueadas pelos países do Norte global. Então chegamos com os mesmos desafios, muitas similaridades nos problemas e na forma da gente se organizar”, diz.

 A questão territorial também é um assunto primordial para Martilene Rodrigues, do Movimento de Pescadoras e Pescadoras Artesanais. “Estão destruindo nossos territórios, nossa garantia de sobrevivência, nossos costumes e nossas tradições. Nós estamos sendo expulsos por causa desses grandes empreendimentos que estão chegando nas nossas comunidades, nos nossos mares”, conta enquanto saía de mais uma reunião entre movimentos que ocorreu em Lisboa ao longo da última semana.

Os encontros resultaram em um documento lançado durante a Conferência dos Oceanos, chamado Apelo à Ação, com pontos de reinvindicações comuns, ancorados na necessidade urgente de visibilidade destes atores nas discussões.

Temas como a defesa e proteção do território, o reconhecimento da produção pesqueira artesanal na produção de alimentos, participação da juventude na manutenção cultural da pesca artesanal e como componente importante na permanência das comunidades, e o seu papel na mitigação das mudanças climáticas.

O documento possui ainda um ponto específico sobre gênero: a necessidade do reconhecimento das mulheres pescadoras em todas as etapas da cadeia.

A equidade de gênero foi outro grande assunto fora da Plenária, mas presente em diversos eventos paralelos da Conferência. “Existimos porque quem sente na pele principalmente somos nós, mulheres, porque nós temos um papel importante na nossa comunidade, no nosso lar. Temos uma jornada de trabalho mais do que dupla. Então o nosso papel é de garantir que a gente permaneça no nosso território, lutando e representando a todos. É esse nosso papel. A nossa força está na união”, conta Martilene.

As mulheres têm tido um papel central na articulação, mobilização e denúncias dentro dos movimentos de pesca artesanal. E o reconhecimento e a visibilidade para estas vozes é uma luta global.

“Cansamos desse silenciamento. A gente veio para nos colocarmos no lugar de fala”, completa Ormezita Barbosa, que também contou que foi criado um grupo de discussões só de mulheres, resultante destes encontros em Lisboa.

Abertura da Conferência dos Oceanos 2022. A falta de participação de pescadoras e pescadores artesanais e de pequena escala nos processos decisórios foi um apelo repetido à exaustão durante os eventos paralelos. Foto: Carlos Costa / AFP

A chilena Yohana Coñuecar Llancapani, representante do povo mapuche, povo originário do sul do Chile, acrescentou ao debate a necessidade de ter as discussões e reinvindicações costeiras e marinhas trazidas pelos povos originários, assim como na tomada de decisões.

Para ela, os eventos paralelos foram importantes. “Temos um grito desesperado dos pescadores artesanais em serem ouvidos, em serem levados em conta. E no caso das mulheres, precisamos urgentemente estar envolvidas nos processos decisórios que dizem respeito aos nossos territórios. Para que mulheres pescadoras e indígenas tenham mais poder de decisão. 70% das ações que se praticam no mar são feitas por mulheres. E muitas vezes não podemos opinar sobre o uso dos territórios. Por isso, nestes espaços internacionais, onde se fala e se discute isso, é importante sermos ouvidas”, declara.

Yolanda explica que no Chile, um país costeiro, as comunidades indígenas tratam do costume e da cultura ligada ao oceano. E que a pesca é apenas mais um uso que as comunidades indígenas dão ao mar.

“Peixe não é dinheiro, peixe não é moeda”, ouvi destas representantes de movimentos que lutam contra a invisibilidade das vozes femininas pela pesca artesanal e por um oceano com saúde.  E as decisões passam e tem que passar por quem vive e garantem o equilíbrio de zonas costeiras e do mar.

*A cobertura de ((o))eco na Conferência dos Oceanos da ONU contou com apoio da ONG Oceana Brasil

  • Paulina Chamorro

    Jornalista com mais de duas décadas de atuação em temas socioambientais

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