Às vésperas de completar 68 anos, o pesquisador Alvaro Aguirre embarcou numa jornada de quase três anos em campo – talvez mais apropriadamente chamada de aventura – em busca do muriqui. O ano era 1967 e, na época, pouco se sabia sobre o maior primata das Américas. A pé, de kombi, de trem, cavalo e lotação, o zoólogo lançou-se atrás das florestas que restavam nos estados de Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo e no sul da Bahia, para levantar informações do macaco que ele chamava – como era comum nesse tempo – de mono-carvoeiro. Ou simplesmente mono. Aguirre buscava conhecer a situação da espécie, sua distribuição geográfica, população e, principalmente e de forma pioneira, propor medidas de proteção para o muriqui.
A empreitada, organizada pela Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza, resultou no livro “O Mono – Brachyteles arachnoides”, publicado em 1971 por Aguirre. E por décadas, a obra foi não apenas referência no estudo sobre muriquis, mas também uma inspiração para os futuros pesquisadores. Isso porque, durante seu levantamento, Aguirre construiu uma rede colaborativa que contava com informações tanto de especialistas e colegas de diversas áreas, quanto do saber local de moradores e caçadores, com quem ele encontrava e conversava no campo.
“Ele criou um novo modo de fazer pesquisa, que serviu de base para os estudos que vieram depois dele, de sair para campo, entrevistar o local, depois checar e cruzar essas informações”, pontua Sérgio Lucena Mendes, diretor do Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA).
A publicação trouxe ainda um novo paradigma para ciência no país: o conhecimento a serviço da conservação das espécies. “A publicação do Aguirre em 1971 foi um marco para os estudos com conservação de primatas no Brasil e não simplesmente para o muriqui. Porque esse estudo foi inédito, pela forma que ele foi construído. Até a década de 70, basicamente você fazia a descrição, estudos taxonômicos e sistemáticos em que falava quais as espécies eram válidas, fazia revisão de nomes, a área de distribuição… E ninguém estava, até então, focado na questão da extinção”, destaca o diretor.
Um fã e leitor do livro de Aguirre ele próprio, Sérgio Lucena liderou os esforços para resgatar a obra, considerada por ele ainda tão necessária para inspirar as novas gerações de pesquisadores, e contou com o apoio fundamental da família de Alvaro Aguirre, que lhe cedeu suas antigas cadernetas de campo, com anotações das mais diversas sobre o que encontrava, o que o intrigava e o que observava durante sua viagem pela Mata Atlântica atrás do muriqui.
Assim nasceu – e, sob certo ponto de vista, renasceu – o livro “O Mono, de Alvaro Aguirre”, lançado em julho, na sede do Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA), em Santa Teresa, Espírito Santo, durante a realização do XX Congresso Brasileiro de Primatologia. A obra, que resgata o livro originalmente escrito por Aguirre na década de 70, foi organizada pelo próprio diretor do INMA junto com uma das netas do primatólogo, a editora Valeska de Aguirre.
A publicação traz ainda novos capítulos, sobre a história e trabalho de Aguirre, contextualizados sob a ótica do que a ciência sabe hoje sobre os muriquis. Para fazer isso, a obra conta com a contribuição de um time de autores, que incluiu outra das netas do zoólogo, a jornalista e cientista social Alexandra Aguirre, que escreve a família e o início da vida de seu avô; além de primatólogos, como Karen Strier, que há mais de 40 anos lidera um projeto de pesquisa com os muriquis-do-norte em Caratinga, Minas Gerais, e é uma das atuais referências nos estudos sobre a espécie.
Quando Aguirre foi a campo, foi responsável pelo primeiro levantamento abrangente e detalhado da distribuição do muriqui. Desde então, o conhecimento sobre a espécie evoluiu muito, com a própria constatação de que há duas espécies distintas de muriquis, os do-sul (Brachyteles arachnoides) e os do-norte (Brachyteles hypoxanthus), entre outros aprendizados sobre os padrões de comportamento e dispersão da espécie.
A própria Mata Atlântica, lar dos muriquis, mudou, assim como cidades e estados que Aguirre visitou, seus habitantes – e seus hábitos. “Por exemplo, a caça de muriqui pode ocorrer aqui e acolá ainda hoje, mas não é como era há 50 anos. Hoje é uma exceção. Hoje o problema demográfico das populações que ficaram isoladas, o problema genético, é um desafio até maior do que a caça”, explica Sérgio.
O desmatamento, que na década de 70 ainda avançava voraz na Mata Atlântica e que foi testemunhado por Aguirre no campo, também desacelerou consideravelmente, em especial na última década. Não que seja um problema resolvido, já que ainda são perdidos hectares insubstituíveis de floresta madura, mas a ameaça maior para os muriquis hoje é justamente o isolamento das matas que restaram.
“O desmatamento e a caça não são mais as grandes ameaças. As ameaças são as sequelas que esse processo do passado criou”, resume o diretor do INMA.
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Por isso, o trabalho hoje é em prol da criação de corredores ecológicos e restauração de habitat, para permitir que as populações se encontrem e mantenham a troca genética entre elas, um ponto fundamental para sua saúde e sobrevivência no longo prazo. Um Plano de Manejo Integrado para Conservação dos Muriquis, que garante um planejamento conjunto e coordenado entre as ações in situ (na natureza) e ex situ (em cativeiro) em prol da espécie, também está em fase final de elaboração.
De acordo com o diretor do INMA, uma das principais – e atemporais – lições que Aguirre deixa com sua obra é a importância da motivação. Já aposentado, com quase 70 anos, o zoólogo enfrentou situações muitas vezes precárias e desafiadoras. Em um dos trechos de suas cadernetas diárias, Aguirre conta que “depois de andar 4 horas subindo na mata, acampamos numa gruta não muito confortável. Não pude armar a rede. Dormimos no chão em cima de palhas”.
Ainda assim, não desistiu, nem reclamou. “Ele ficou quase três anos em campo, visitando as mais diversas localidades, sem apoio suficiente, sem um veículo próprio, andando das mais diversas formas, para atingir o objetivo que era fazer um trabalho que contribuísse para o futuro da conservação da espécie”, ressalta Sérgio.
Aguirre é um “herói não celebrado”, como adjetiva o primatólogo Russell Mittermeier, atual diretor de conservação da Re:wild e referência mundial na primatologia. “Espero que este livro contribua significativamente para mudar essa situação e que ele encontre seu devido lugar no panteão dos grandes pioneiros da conservação brasileira”, escreve Russ no prefácio do livro.
A obra pode ser baixada online gratuitamente na página de publicações do INMA.
“O Mono, de Alvaro Aguirre”
Organização: Sérgio Lucena Mendes e Valeska de Aguirre
Autores: Alcides Pissinatti, Alexandra Aguirre, Alyne dos Santos Gonçalves, Cecília Pessutti, Fabiano Rodrigues de Melo, Karen B. Strier, Leandro Jerusalinsky, Nancy Marya, Rodrigo Hidalgo Friciello Teixeira, Sérgio Lucena Mendes, Silvia Bahadian Moreira e Valeska de Aguirre.
Edição: Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA)
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Parabéns pela qualidade da reportagem, Duda!