Reportagens

O tráfico chegou antes da ciência: nova aranha já era explorada ilegalmente

O animal é uma das raras caranguejeiras especializadas para viver em árvores e precisa de urgente proteção internacional

Aldem Bourscheit ·
21 de julho de 2025

Uma espécie recém-descrita já era traficada e vendida globalmente. O caso não é isolado, expõe a fragilidade da legislação e reforça a urgência por ações eficazes contra um crime que ameaça da biodiversidade à saúde pública.

A caranguejeira Typhochlaena chapadensis foi identificada na Chapada Diamantina, na Bahia. Ao contrário das grandes caranguejeiras, que caçam presas maiores e habitam troncos e tocas no chão, ela e outras quatro espécies próximas – todas exclusivas do Brasil – comem sobretudo insetos e vivem em árvores. 

Isso aumenta os riscos do desmate para esses animais, explica Rogério Bertani, doutor em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Instituto Butantan e um dos autores do artigo registrando a nova caranguejeira, publicado na revista Zootaxa.

“A primeira coisa que vai pro chão são as árvores, e espécies como essas estão entre as primeiras atingidas”, alertou. “São aranhas muito especializadas e vulneráveis”.

Apesar disso, as ameaças a esses animais são maiores e ganharam escala mundial. As cinco espécies arborícolas são traficadas no Brasil e no exterior, onde são reproduzidas e vendidas como pets.

A região da Chapada Diamantina é um celeiro de espécies raras ou ameaçadas de extinção. Foto: Kennedy Silva / Creative Commons

Na prática, os crimes ganharam força desde quando as caranguejeiras começaram a ser descritas pela ciência, em 2012. “Quando surge uma espécie nova, correm atrás para vender mais caro. O que já é comum fica barato”, explicou Bertani.

A caça e comércio ilícitos são facilitados porque elas medem geralmente menos de 2 cm, são silenciosas e dóceis – raramente picam as pessoas, mas sem risco. O tráfico ocorre por Correio ou em bagagens aéreas, com foco nas fêmeas, de cores mais vivas. 

De acordo com o pesquisador do Butantan, os maiores destinos dos animais roubados da natureza são os Estados Unidos, a Ásia e a Europa. “Há clubes de criadores e colecionadores em vários países”, apontou.

Pesquisadores e entidades civis identificaram dezenas de sites e anúncios em Redes Sociais com as aranhas brasileiras. Elas são vendidas como Brazilian jewel (Jóia brasileira) e spider fox (aranha raposa).

“Espécies novas ou ainda não descritas despertam muito interesse e têm alto valor”, reforçou Dener Giovanini, coordenador-geral da ong Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (RENCTAS). “Elas se tornam ouro na mão dos traficantes”.

As cores e o formato da fêmea da nova espécie são ainda mais atrativos no comércio criminoso. Foto: Anúncio em Rede Social

Crimes fora da teia

O tráfico de espécies descritas pela ciência têm crescido, afirmam as fontes ouvidas por ((o))eco. Publicações em revistas especializadas e notícias podem ser usadas como um mapa de animais e plantas inéditos, raros ou ameaçados. 

No Brasil, onde milhões de espécimes são retirados todo ano da natureza, a lista inclui peixes-das-nuvens da Caatinga, lagartos do Cerrado, anfíbios da Mata Atlântica e pequenos répteis que só vivem em ilhas ou cavernas.

Giovanini (RENCTAS) lembra de escorpiões, aranhas e sapinhos amazônicos entre os traficados antes da listagem científica. “Casos assim seguirão acontecendo”, projetou.

O mesmo acontece com espécies internacionais. A rã colombiana Oophaga solanensis foi apreendida no mercado ilegal europeu poucos meses após sua descrição. Assim ocorreu com a lagartixa vietnamita Gekko takouensis e com pangolins asiáticos, como o Manis mysteria.

Afinal, mesmo que estudos evitem divulgar a localização precisa de animais como esses, o tráfico segue intenso e bem articulado. Além disso, fiscalização e punições ainda são fracas, evidenciando a necessidade de maior proteção da biodiversidade.

Apesar de ser crime no Brasil, a falta de controle em outros países permite uma venda quase livre de animais daqui, especialmente quando não citados em acordos como a CITES, sigla em Inglês da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção.

Fora da Convenção, animais têm maior risco de serem comercializados sem controle alfandegário ou sanitário – isso depende também das legislações nacionais. Além disso, muitas vezes são anunciados como “criados em cativeiro”, o que dificulta a fiscalização. Essas brechas só favorecem o tráfico.

Apesar de leis e normas ambientais que protegem a vida selvagem brasileira, apenas duas das cinco espécies de pequenas caranguejeiras descritas estão na lista vermelha nacional, que direciona ações para proteger a fauna e a flora.

Diante disso, Giovanini apontou que falta uma política nacional integrada para proteger a biodiversidade. Segundo ele, a desarticulação entre autorizações e medidas protetivas federais, estaduais e municipais favorece o tráfico. “Cada um legisla como quer”, afirmou.

Conforme o especialista, a participação de comunidades locais nesses crimes também precisa ser enfrentada. Ele descreveu que traficantes encomendam e pagam pela caça de caranguejeiras e outros animais. “Sempre pode aparecer algo ainda não descrito pela ciência”, ressaltou.

Contudo, Bertani avaliou que, no geral, há pouca ação contra esses riscos. “Espécies entram e saem do Brasil sem controle real”, alertou. “Proteger as menos conhecidas é tão urgente quanto preservar a fauna e flora mais populares”.

A rã colombiana Oophaga solanensis foi apreendida com traficantes poucos meses após sua descrição científica, em 2018. Foto: Nicolás Baresch Uribe / Creative Commons

Ciência preventiva

O comércio indiscriminado de espécies silvestres alimenta o lucro de traficantes e criadores, ao mesmo tempo em que ameaça reduzir populações de animais, disseminar doenças e introduzir espécies exóticas. 

Dener Giovanini (RENCTAS) alertou que animais como escorpiões da Amazônia são vendidos até em São Paulo (SP), com risco de se adaptarem às cidades e causarem impactos graves. “Ninguém sabe quais espécies estão sendo disseminadas”, alertou.

Diante disso, Rogério Bertani (Instituto Butantan) defendeu ampliar o conhecimento sobre a biodiversidade. “Obter mais informações sobre distribuição e hábitos das espécies ajuda a proteger suas populações e também as pessoas”, destacou.

Contudo, Giovanini avaliou que a ciência no Brasil enfrenta escassez de recursos, de pesquisadores e de apoio governamental. Para ele, a burocracia excessiva e a demora nas autorizações de coleta dificultam a pesquisa, enquanto o tráfico avança sem grandes barreiras. “É um grande descompasso”, afirmou.

Logo, sem apoio à ciência e articulação entre conservação e fiscalização, essas espécies seguirão mais valorizadas no tráfico do que nas políticas públicas. Combater esse desequilíbrio é vital para a biodiversidade e a saúde humana.

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

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