Já faz um ano. Mas aquela noite no Parque Nacional do Jamanxim continua viva na memória de Diego Rodrigues. Acampamento montado, ele preparava o jantar quando o primeiro disparo rompeu o silêncio da floresta. Logo veio outro. E mais um. Os policiais militares responderam, e a troca de tiros começou sob a copa das árvores. “Ficamos até 3 horas da manhã deitados no chão da mata, enquanto o tiro comia solto”, conta ele, com um carregado sotaque cearense.
Diego tem 29 anos de idade. Três de Amazônia. Com formação de técnico agrícola, desde 2014 ele trocou o semiárido nordestino pela quente e úmida Itaituba, no interior do Pará. Chegou acompanhado de outras 35 pessoas aprovadas num concurso feito especialmente para a região. “Eu tinha algum conhecimento dos conflitos daqui, mas não sabia que as disputas por terra eram tão acirradas”, afirma Diego. “Foi um impacto”.
A nova turma iniciava sua saga no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente e responsável por fazer a gestão das unidades de conservação federais. O Parque Nacional do Jamanxim, onde Diego se viu em meio a um tiroteio, fica na beira da BR-163, rodovia que começa em Cuiabá, no Mato Grosso, e termina em Santarém, depois de cruzar boa parte do território paraense.
A região concentra as maiores taxas de desmatamento do Brasil, e a enxurrada de crimes ambientais tem sido um entrave direto na implementação das unidades. Por ali, a atuação do ICMBio é quase um estado de exceção dentro do órgão: um decreto de janeiro de 2017 transformou a sede de Itaituba na primeira Unidade Especial Avançada (UNA) do instituto.
Com a medida, a figura dos chefes de unidades de conservação foi extinta: os servidores deixaram de trabalhar para unidades específicas e passaram a se dedicar em conjunto a um imenso mosaico de 12 UCs, que totalizam 9,2 milhões de hectares. A área é duas vezes o estado do Rio de Janeiro. “Mais de 60% do desmatamento da Amazônia hoje acontece ali”, resume André Alamino, que coordena de Brasília as ações de fiscalização do ICMBio no país inteiro. “A região da BR-163 é prioritária”.
Não à toa, metade da enxuta equipe de Itaituba é absolutamente sugada pelas ações de fiscalização, comandadas localmente por Diego Rodrigues. Além deles, dezenas de servidores do país todo são permanentemente recrutados para ajudar nas atividades. E para fechar o time, o Batalhão de Polícia Ambiental do Pará acompanha as incursões dos fiscais nas áreas protegidas.
A Operação Nacional da BR-163 roda quase o ano inteiro. Não existe fim de semana ou feriado. A cada 21 dias, equipes se revezam para passar cerca de 12 horas diárias sacolejando em estradas irregulares atrás de infratores. As distâncias são tão longas que volta e meia é preciso acampar na mata para alcançar o destino no dia seguinte. O único período de pausa das atividades é entre dezembro e março, quando a estação da chuva deixa as vias intransitáveis e as nuvens cegam os satélites que denunciam os desmatamentos. Para cada etapa de 21 dias, cerca de R$ 300 mil são desembolsados na logística.
Escudo perfurado
Construída durante a ditadura militar, até os anos 2000 a BR-163 permanecia relativamente adormecida. A gigante acordou de susto em 2003, quando o então presidente Lula anunciou seu asfaltamento. Promessa feita, terminais portuários se multiplicaram, e a estrada se tornou o principal corredor para exportação de commodities como soja, milho e algodão produzidos em larga escala no Mato Grosso.
A corrida para a região explodiu, e com ela a derrubada da floresta. Enquanto os índices de devastação caíam na Amazônia inteira, por ali continuavam nas alturas. Estradas sempre foram porta de entrada para o desmatamento. Na época do anúncio, Lula sabia disso: ao mesmo tempo em que oferecia uma nova rota de escoamento para os produtores, montou o Plano BR-163 Sustentável para não sair mal na foto com os ambientalistas.
Mapa das Unidades de Conservação na região da BR-163. Clique nas áreas coloridas para ver o nome da UC.
Dentre as medidas do plano que ganhou vida em 2006, foi criado um imenso mosaico de áreas protegidas ao longo da rodovia. O Parque Nacional do Jamanxim, a Floresta Nacional do Jamanxim e a Reserva Biológica Nascentes da Serra do Cachimbo são algumas delas. A ideia era formar um escudo para a floresta.
Dez anos mais tarde, quem circula pela BR-163 facilmente ouve trocadilhos com os nomes das áreas protegidas criadas por ali. As alcunhas “Imobiliária Jamanxim” e “Complexo Agropecuário Nascentes da Serra do Cachimbo” sugerem que o tal do escudo florestal anda mal das pernas. E um dos motivos pode estar em outra sigla apelidada: o INCRA, que na boca do povo virou sigla para “Nada Conseguimos Resolver Ainda”.
“O Plano BR-163 Sustentável era um acordo interministerial. Vários órgãos deveriam ter vindo para garantir que a exploração sustentável funcionasse na região. Porém, só o ICMBio e o Ibama vieram. O resultado é que ninguém conseguiu se legalizar”, afirma Diego Rodrigues, dando uma dimensão de sua rotina: “Hoje, o que movimenta a economia dessas cidades são os crimes ambientais”.
(Des)ordenamento territorial
Nas incontáveis discussões governamentais que vieram com a proposta de ressuscitar a BR-163, o ordenamento territorial sempre foi item chave. Mas ficou na promessa. Os títulos de terra parecem lenda amazônica: todos falam, ninguém prova. “Uma vez apareceu um cara aqui com um título. A gente queria botar numa moldura. Não sabemos até hoje como ele conseguiu aquilo”, diz Rodrigo Cambará, com uma voz serena interrompida por um gole e outro de chimarrão.
Gaúcho de 45 anos, Cambará foi um dos mais velhos servidores a embarcar no ICMBio pelo concurso de 2014. Chegou em Itaituba carregando uma longa experiência acadêmica e prática em gestão de conflitos e unidades de conservação. Sua história parecia sob medida para o novo destino. O que não lhe impediu de sofrer ameaças de fazendeiros insatisfeitos com a atuação do órgão ambiental.
“O problema da conservação da Amazônia aqui é principalmente fundiário”, diz o gaúcho, que está à frente de uma equipe de cinco pessoas cuja principal tarefa é resolver os problemas territoriais dentro do mosaico de UCs da BR-163. Ele não passa um dia sem receber novas demandas.
Como o Estado nunca deu as caras, ao longo de toda a rodovia quem ditou o ordenamento territorial foi a própria população, além dos grileiros que continuam se apropriando de largas extensões de terras públicas. O processo de ocupação é velho conhecido na Amazônia: as madeiras de maior valor comercial são as primeiras que vão ao chão. Depois, o fogo dá conta do que restou. E por fim, vem a pata do boi para consolidar a área.
“Quando colocam o gado em cima é como se dissessem: ‘agora é uma terra produtiva’. E vão atrás de legalizá-la. Eles dizem que a primeira multa que recebem é o primeiro passo para regularizar a terra”, conta Diego Rodrigues.
Se vira nos 30
“Para fazer a gestão deste território de forma efetiva precisamos de mais gente, mais recursos e mais bases ao longo da região”, diz Rodrigo Cambará. “Mas tudo isso vai contra a tendência do governo federal, que é de não fazer concurso, diminuir orçamento e fechar escritórios”. Por diversas vezes o órgão já formalizou junto ao Ministério do Planejamento o pedido de novos concursos. Enquanto a resposta não vem, mil vagas permanecem ociosas por conta de aposentadorias ou abandonos de cargo.
Vida que segue. A equipe diminuta vai se virando como pode. O esvaziamento de recursos humanos é coisa comum por ali. De 35 novos servidores que entraram no concurso de 2014, dez já abandonaram o barco.Quando essa turma chegou, restava apenas um dos 35 que entraram em 2009. Era Assor Fucks, um gaúcho de 56 anos que trabalhava como gerente de uma empresa da área madeireira em Sinop, no Mato Grosso. Uma operação da Polícia Federal interditou as serrarias da cidade e deu um golpe no setor. Assor acabou demitido. Foi atrás de concursos públicos e passou no do ICMBio. “Eu sabia identificar espécies, conhecia o modus operandi dos madeireiros”, conta. “Aproveitei tudo para usar no ICMBio”.
Foi ele quem coordenou uma operação de fiscalização que ((o)) eco acompanhou na Flona Jamanxim, a unidade de conservação que lidera os índices de desmatamento no Brasil. Quando a equipe voltava de uma fazenda embargada, Assor avistou um rastro de trator no chão de terra. Seguiu a pista e o instinto. Minutos depois, as viaturas davam de cara com imensas toras de madeira nobre derrubadas no chão. Os infratores fugiram, mas o trator foi destruído na hora.
O caso foi desvio de rota, pois um flagrante não se ignora. Mas os fiscais do ICMBio já saem do escritório com os alvos pré-determinados. São prioridade os alertas de desmatamento em tempo real (Deter), emitidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com base na análise de imagens de satélite. “Por semana, a gente recebe de 15 a 30 alertas”, afirma Diego. As investidas em campo também incluem denúncias, demandas do Ministério Público e vistorias em áreas embargadas – para garantir que o dano ambiental foi, de fato, contido.
Jeitinho
“Hoje passei o dia inteiro olhando para áreas embargadas”, diz Bruno Kuhn Neto, enquanto devora uma pizza em Novo Progresso, a 400 km de Itaituba, num dos poucos momentos de descanso. O ICMBio tem um escritório de apoio na cidade, para facilitar as operações nas unidades que ficam mais ao sul do Pará, como a Flona Jamanxim e a Rebio Nascentes da Serra do Cachimbo. O baiano de 35 anos é um dos ‘ponto geo’, como são chamados os servidores que se debruçam sobre a tela do computador para levantar o máximo de informações sobre os infratores. “A gente fica no escritório sistematizando esses dados, para que a equipe chegue em campo sabendo tudo sobre o alvo”.
Kuhn consegue desfiar de cabeça vários casos que acompanha. Como o do prefeito de Novo Progresso, Ubiraci Soares Silva, que tem uma fazenda dentro da Flona Jamanxim. Só este ano, ele já recebeu mais de R$ 1 milhão em multas do ICMBio e do Ibama, fruto de seis autuações por desmatamento e descumprimento de embargo.
O prefeito nega, e diz que tudo não passa de perseguição. “Me autuaram numa área que não é minha, é do vizinho. Mas qual o nome que ia dar mais ibope? O do prefeito”, diz Ubiraci. Por ali, ele é o sexto gestor municipal a ser autuado por crimes ambientais.
Na região, tão comum quanto ver boi no pasto é encontrar fazendeiros em altos cargos públicos. Assim como o prefeito, seu vice Gelson Dill também é proprietário de “duas fazendinhas”, uma delas fica dentro do Parque Nacional do Jamanxim, aquele do tiroteio.
Dill é outro que reclama das ações dos órgãos ambientais. Conta que depois da criação do parque, a venda do gado que cria lá dentro ficou ainda mais difícil desde 2009. Naquele ano, os frigoríficos da região se comprometeram com o Ministério Público a não comprar mais boi criado em unidades de conservação.
“Quem está impondo essa ilegalidade é o Ministério Público, porque aquela carne não poderia ser ilegal de forma alguma”, diz. E dá seu jeito para que o rebanho não fique estagnado: com naturalidade, ele explica como dribla o monitoramento dos frigoríficos. “Ou eu vendo os bezerros para outros produtores ou tiro o boi de dentro do parque e trago para minha outra propriedade que está do lado de fora”. A prática é caracterizada como lavagem de gado, conforme ((o)) eco já noticiou.
Os donos do poder
O vice-prefeito aproveita seu cargo no executivo para levar as demandas dos produtores a outras esferas. Dias antes de receber ((o)) eco em Novo Progresso, Dill estava em Brasília, onde se reuniu com deputados e senadores para criticar a atuação dos órgãos ambientais no município. Voltou satisfeito. “Os parlamentares são muito sensíveis à nossa causa”, diz.
Dill é apenas um entre vários outros representantes do agronegócio local que costumam viajar a Brasília para reivindicar mudanças na legislação em favor do setor. Das demandas que levam ao Congresso Nacional, a redução de unidades de conservação quase sempre está em pauta.
“Aqui na região, o poder econômico e o poder político estão completamente interligados. E não tem como separar isso dos danos ambientais dentro das UCs”, diz Diego Rodrigues, do ICMBio. “Então é bem difícil, pois em vez de ter parceiros nos órgãos públicos, a gente tem ali pessoas que que precisam ser monitoradas”.
O prefeito critica o jogo duro: “Se o governo não olhar com bons olhos para nós, essa região toda vai quebrar. Hoje, quase todas as fazendas do município estão embargadas”, diz Ubiraci. Sua preocupação, porém, parece exagerada diante do cotidiano de impunidade dos crimes ambientais. “As sanções que aplicamos são ignoradas por mais de 90% dos infratores. Eles não pagam as multas e mesmo com as áreas embargadas não cessam o dano ambiental”, diz Diego.
Dois anos atrás, a equipe do ICMBio fazia uma incursão na Rebio Nascentes da Serra do Cachimbo quando se deparou com várias pessoas armadas retirando um caminhão entupido de madeira ilegal. O veículo foi apreendido, e todos encaminhados à polícia. No caminho da delegacia, um dos detidos dava risada. Era riso de impunidade: “Amanhã mesmo o delegado vai estar num churrasquinho lá em casa”.
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Esta reportagem faz parte do projeto que busca melhorar a eficiência dos acordos da carne e da soja, realizado em parceria com o Imazon e apoio da Gordon and Betty Moore Foundation
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Apoio total a esta luta. te liga governo…
18 serrarias embargadas, divisa MT e RO, dezoito, crime e impunidade frouxo, frouxo.
E os bancos , diga-se BNDES patrocinando esta bandalheira, bandidagem.
O raça ruim, estes políticos.
“Aqui na região, o poder econômico e o poder político estão completamente interligados. E não tem como separar isso dos danos ambientais dentro das UCs” E ME DIGA, CARA-PÁLIDA, ONDE QUE NÃO? Talvez no Butão!!! Ambientalista adora fazer drama que o problema deles é sempre mais problemático que dos outros
Já participei de fiscalização nessa área e no meu é entendimento o ICMBIO enxuga gelo tem de fazer um levantamento para ver quem estava antes do decreto os após é pedir reintegração de posse que é feito pela PF o ICMBIO apenas acompanha a ação
Os caras se matando sem estrutura de trabalho, e nossos políticos roubando 24 hrs por dia. Parabéns pelo trabalho desses servidores, porém apenas enxugam gelo, torram o pouco dinheiro que o Órgão dispõe com pouquíssima eficiência e resultado prático insuficiente para reverter os crimes ambientais relacionados, qualquer levantamento histórico mais sério comprova. Enfim, a roda tem de girar, e o governo precisa levar sociedade e a opinião pública a acreditarem que combate algo (lá fora não acreditam mais), porém é só questão de tempo…