Reportagens

Operações em paraísos fiscais engordam cofre de frigoríficos em R$ 49 bilhões

Valor foi rastreado em apenas três subsidiárias de Marfrig e Minerva. Mas indústria da carne, incluindo JBS, possui dezenas de empresas financeiras no exterior para reduzir custos com impostos

Pedro Papini · Fernanda Wenzel · Naira Hofmeister ·
13 de janeiro de 2021 · 4 anos atrás

Pelo menos R$ 49 bilhões entraram nos caixas de Marfrig e Minerva entre 2013 e 2020 a partir de operações feitas em paraísos fiscais. A quantia é relevante: equivale à receita de todo o ano de 2019 da Marfrig e é duas vezes e meia a registrada pela Minerva no mesmo período. Se fosse recurso público, poderia sustentar o pagamento do Bolsa Família durante um ano e meio para as milhares de famílias que dependem do maior programa social do país. Ou bancar o funcionamento do Ministério do Meio Ambiente por 17 anos, considerando o orçamento da pasta em 2021.

São valores, entretanto, faturados sem a incidência de impostos ou para os quais as taxas são muito baixas, de acordo com os regimes tributários dessas nações. Os R$ 49 bilhões de Marfrig e Minerva foram rastreados pela coalizão de ONGs Forests and Finance (FF) em operações financeiras de três subsidiárias localizadas em Ilhas Cayman, Holanda e Luxemburgo, – respectivamente o 2º, o 3º e o 7º “piores” paraísos fiscais do planeta, segundo a Oxfam, uma organização que milita pela igualdade social e econômica. “As grandes empresas estão fugindo de impostos em escala industrial, privando os governos de todo o mundo do dinheiro de que necessitam para combater a pobreza e investir nos cuidados de saúde, na educação e no emprego”, condena a instituição no relatório.

“É uma estratégia recorrente e em princípio não tem nada de ilegal. Estas empresas fazem toda uma ginástica para se valer dos benefícios legais que há nos vários países. Por exemplo: se as Ilhas Cayman oferecem isenção tributária por cinco anos, a empresa se instala lá para se aproveitar deste benefício”, explica Antônio Lacerda, presidente do Conselho Federal de Economia e especialista em multinacionais.

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Embora a Forests and Finance tenha encontrado transações financeiras em apenas três subsidiárias em paraísos fiscais, um levantamento exclusivo do ((o))eco, feito com base em declarações das empresas à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), revela que juntas, JBS, Marfrig e Minerva – três gigantes da indústria mundial da carne que operam na Amazônia e têm atividades altamente expostas ao desmatamento – controlam, direta ou indiretamente, pelo menos 14 empresas sediadas em países com regimes tributários muito brandos.

Há ainda outras subsidiárias localizadas em nações que não estão entre os paraísos fiscais mais conhecidos, mas que oferecem facilidades a empresas quase tão boas quanto os campeões da Oxfam. É o caso da Áustria, que segundo uma lista elaborada em 2013 pela Deutsche Welle, oferece sigilo a correntistas e prima pela falta de transparência sobre operações financeiras. Neste país, a JBS levantou R$ 16 bilhões entre 2013 e 2020 com operações financeiras realizadas por duas subsidiárias, a JBS Investments GmbH e a JBS Investments II GmbH.

Operações são feitas apenas no papel

As brechas para maximizar os lucros são variadas, e há empresas com equipes inteiras dedicadas exclusivamente a identificá-las. Em alguns casos, até as subsidiárias que parecem ter sido abertas para ajudar na operação em mercados externos são utilizadas para economizar no pagamento de taxas. As companhias podem fazer triangulações com seus produtos, vendendo do Brasil para uma filial estrangeira a preço de custo, e depois repassar a mercadoria ao destino final, auferindo o lucro nessa nação intermediária – que frequentemente é um paraíso fiscal ou uma localidade que oferece vantagens tributárias.

“Se uma empresa brasileira quer vender carne para os Estados Unidos, ela pode criar uma subsidiária de trading nas Bahamas, por exemplo. Na verdade, a carne nunca foi para as Bahamas – a transação é apenas no papel”, explica Jan Willem van Gelder, diretor da Profundo, ONG ambiental holandesa. Segundo Van Gelder, esta mesma estratégia pode ser usada não só para transação de produtos, como também de fluxos financeiros. “Você pode atrair o empréstimo de um banco internacional em um paraíso fiscal e daí emprestar o dinheiro para a matriz no Brasil. Esse tipo de comércio pode ser feito com todo o tipo de fluxos: financeiros, de dividendos, de juros… são todas formas de evitar a incidência de impostos”, complementa.

O diretor da Profundo acrescenta que a abertura de subsidiárias pode servir também para proteção de patrimônio em ações judiciais. “Os frigoríficos podem tentar manter seus ativos fora do alcance da Justiça do Brasil. Quanto maior a quantidade de dinheiro que elas têm fora do Brasil, maiores as chances de que irão sobreviver se elas forem processadas”.

Os três gigantes da carne no Brasil são respectivamente a 1ª, a 5ª e a 10ª companhias com maior chance de provocar derrubadas na Amazônia, segundo um estudo feito pelo Imazon. Ao longo de 2020, as empresas foram alvos de várias denúncias que revelaram que, apesar dos controles impostos, os frigoríficos seguem abatendo gado criado em fazendas desmatadas na região da maior floresta tropical do planeta.

A JBS disse que “o propósito e a localização das subsidiárias atende às necessidades operacionais da companhia, sempre de acordo com normas internacionais e com a legislação dos países em que opera”. A íntegra da resposta pode ser conferida aqui. A Minerva assegura que todas as informações sobre suas subsidiárias são públicas. “A operação de nossas subsidiárias segue a legislação vigente em cada país onde atuamos e, também, está em linha com os mais altos padrões de governança da B3”, informou a empresa através de sua assessoria de imprensa. Confira a íntegra da resposta aqui. A Marfrig não respondeu à reportagem.

Não é ilegal, mas abre espaço para ilegalidades

O uso de subsidiárias em paraísos fiscais para pagar menos impostos não é ilegal. Por outro lado, esta prática joga uma fatia enorme da estrutura – e dos lucros – destas empresas em um terreno nebuloso, com baixíssimos requisitos de transparência. Não à toa, os raros casos em que ocorrem vazamentos sobre as empresas com operações em paraísos fiscais tiveram enorme repercussão internacional.

Foi o caso do Panamá Papers, quando o vazamento de 11,5 milhões de documentos revelou quem estava por trás de mais de 214 mil empresas sediadas em paraísos fiscais. Durante as investigações, profissionais do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos descobriram que muitas destas organizações eram na verdade companhias de fachada, usadas para movimentar o lucro de atividades ilegais como corrupção, tráfico de drogas e evasão fiscal.

Para as equipes da Profundo, cuja principal atividade é rastrear os fluxos financeiros por trás de atividades nocivas ao meio ambiente, as subsidiárias espalhadas por paraísos fiscais são um verdadeiro ponto cego. “As subsidiárias não precisam submeter nenhum relatório sobre quanto dinheiro estão ganhando, de onde o dinheiro vem, para onde o dinheiro vai. Muitas vezes nem os proprietários são revelados. Isso torna difícil investigar o que exatamente as empresas estão fazendo, quais os fluxos financeiros com a matriz”, lamenta Jan Willem van Gelder.

Ilustração: Julia Lima

A legislação brasileira não é clara sobre quais informações as empresas devem prestar sobre suas subsidiárias no exterior. A Instrução 552, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), de 2014, diz que as empresas são obrigadas a informar apenas as “principais controladas e coligadas do emissor”. Mas não há um critério comum para definir isso, a decisão sobre quais subsidiárias são dignas de nota é da própria companhia: “As informações deverão ser prestadas de acordo com o que o emissor entenda como relevante para o desenvolvimento de suas atividades”, explicou a CVM através da assessoria de imprensa.

A mesma norma também diz, em outro trecho, que as emissoras precisam divulgar sua participação apenas em controladas diretas. Mas nos casos em que ((o))eco checou, dos três maiores frigoríficos nacionais, as informações divulgadas pelas empresas são conflitantes: algumas controladas diretas aparecem no Formulário de Referência, mas não são declaradas nas Demonstrações Financeiras Padronizadas. O contrário também acontece.

Há mais diferenças sobre as subsidiárias entre um documento e outro, inclusive dentro do mesmo Formulário de Referência: a JBS Leather International, por exemplo, aparece sediada na Holanda ou na Alemanha, dependendo do arquivo da CVM consultado. Já a localização da Masplen Ltd, da Marfrig, muda dos Estados Unidos para o Reino Unido entre um cadastro e outro. Outra dúvida recai sobre a empresa Minerva Europe Ltd, que aparece no Brasil e no Reino Unido simultaneamente. Como não há informações públicas detalhadas sobre cada uma dessas filiais internacionais dos frigoríficos, não é possível saber onde está o erro ou mesmo se podem haver empresas homônimas em diferentes partes do mundo.

Outro exemplo é a Minerva Overseas Ltd, uma subsidiária declarada pelo frigorífico brasileiro. Ela possui o mesmo nome de uma  offshore descoberta pelo Bahamas Leaks, outro esforço de investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos. Mas enquanto a firma mencionada no vazamento tem sede nas Bahamas, a que consta nos documentos da CVM é situada nas Ilhas Cayman (e tem uma irmã gêmea, a Minerva Overseas II Ltd). O frigorífico informou à reportagem que a empresa das Bahamas “não pertence à Minerva Foods”, mas não é possível checar a informação com as ferramentas públicas disponíveis atualmente.

Número de subsidiárias é maior que o informado

Em todo o caso, JBS, Marfrig e Minerva informaram respectivamente 32, 47 e 32 subsidiárias à CVM. O número real de subsidiárias, no entanto, tende a ser muito maior. A JBS informou ao ((o))eco que mantém mais de 100 empresas em todo o mundo – um dado que já havia aparecido em reportagem recente do Uol. A matéria trata justamente de uma estratégia de reconcentração dos ativos da companhia em uma subsidiária em Luxemburgo – um paraíso fiscal – como forma de pagar menos impostos e preparar a empresa para a abertura de capital na Bolsa de Nova Iorque.

Em 2016, a própria JBS S.A. apareceu em um plano da empresa como subsidiária da JBS Foods International Designated Activity Company, que por sua vez possuía 253 controladas em 30 países. As informações constam em um documento enviado pela gigante da carne brasileira à Securities Exchange Commission, dos Estados Unidos. Na época, a empresa trabalhava em projeto de reestruturação que levava a sede para a Irlanda (o sexto pior paraíso fiscal segundo a Oxfam), também com vistas à abertura de capital nos Estados Unidos.

Ilustração: Julia Lima

O Banco Central não detalhou como fiscaliza as remessas de recursos vindas do exterior através das subsidiárias, mas garantiu que seus métodos seguem normas internacionais e orientações da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, “formada por mais de 70 órgãos, dos três poderes da República, Ministérios Públicos e da sociedade civil”. A íntegra da resposta pode ser lida aqui.

O BC disse ainda que a tributação dessas transferências de recursos “é de competência exclusiva da Secretaria da Receita Federal do Brasil”, mas, procurada, a Receita informou que “não divulga suas metodologias, sistemas e regras de auditorias que são utilizados nos procedimentos de fiscalização”.

Nos últimos anos, a comunidade internacional tem tentado se articular para aumentar a transparência dos fluxos financeiros internacionais. Acordos de troca de informações são incentivados pelo G20 e pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Foi graças a um acordo deste tipo com a Suíça que as autoridades brasileiras conseguiram descobrir a maior parte dos crimes investigados na Operação Lava Jato.

Na visão de van Gelder, da Profundo, este tipo de iniciativa é positiva, mas seu efeito é limitado ao problema fiscal. “É uma questão de prioridades. Por exemplo, se as autoridades fiscais holandesas obtêm informações de uma subsidiária de uma indústria de carne nas Bahamas, eles só vão agir se acharem que a Holanda está perdendo dinheiro por causa disso, e não vão prestar atenção se essa subsidiária está relacionada ao desmatamento. A prioridade dessas autoridades é aumentar a arrecadação”.

Em direção ao desmatamento zero

Esta reportagem faz parte do projeto que busca melhorar a eficiência dos acordos da carne e da soja, realizado em parceria com o Imazon e apoio da Gordon and Betty Moore Foundation

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Comentários 4

  1. Martha Hirsch diz:

    “Muito engana-me, que eu compro”. E a Copa do Mundo no Brasil, hein? Em vez de se construir hospitais, construiu-se prédios inúteis.
    “Muito engana-me, que eu compro”
    E o PT®? Qual o poder constante de sua propaganda ininterrupta?
    Eis:
    Vive o PT© de clichês publicitários bem elaborados por marqueteiros. Estilo do brilhante e talentoso João o Milionário Santana. Nada espontâneo.
    Mas apenas um frio slogan (tal qual “Danoninho© Vale por Um Bifinho”/Ou: “Skol®: a Cerveja que desce Redondo”/Ainda: “Fiat® Touro: Brutalmente Lindo”). Não tem nada a ver com um projeto de Nação.


  2. Carlos diz:

    Esta matéria só revela, do começo ao fim, recalque e ódio conta empresas grandes e bem sucedidas. Artigo feito com o fígado, por quem tem raiva de empresas privadas e lucros.

    Não há nenhuma ilegalidade, ou irregularidade, citadas. Só fel ideológico. E ainda enalteceram as empresas, por sua proficiência, capacidade legal de reduzir impostos e taxas ao mínimo e maximização dos lucros.

    Triste.


    1. Milton diz:

      Exatamente. Infelizmente, as pessoas são bombardeadas o dia todo pra demonizar a palavra lucro, não sabem o que significa e acham que tem direito sobre o dinheiro dos outros. Outro detalhe, esses mesmos que reclamam do paraíso fiscal, incluindo esses jornalistas do Eco, são os mesmos que são a favor de aumentar a carga tributária. Não precisa ser um gênio pra saber que as empresas vão colocar sempre onde paga menos imposto. Mesma coisa com a ideia estúpida de taxar grandes fortunas, que é tirar mais dinheiro de quem já pagou imposto sobre ele, pra dar pros outros.


  3. Paulo diz:

    Reportagem muito boa.
    Quando os bancos dos governos e os políticos destes países (que desmatam) investem nestes"fundos", não precisa ser um gênio para entender porque o desmate continua forte, a ferro e fogo.
    Simples assim.
    Depois quando as chuvas não aparecerem como "devia", o choro será longo, mas sem volta.