Em muitos rincões do Brasil e do mundo, não só o gato preto é considerado portador de má sorte. Em pleno ano de 2018, muitas culturas ainda mantém o hábito de matar ou agredir animais pelo simples fato de acreditar que trazem azar. Uma das vítimas dessa superstição é o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), que está na categoria “Vulnerável” (VU) na Lista Nacional das Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção.
As maiores causas do declínio das populações de tamanduás-bandeira são a perda e fragmentação de hábitat, as queimadas e a caça. Entretanto, outros fatores que influenciam significativamente são os atropelamentos rodoviários e a perseguição humana, ainda bastante mal compreendidos. Intrigada com os diversos relatos de moradores de áreas rurais de que o tamanduá-bandeira seria fonte de má sorte, ouvidos ao longo de seus nove anos de pesquisas, a bióloga Mariana Catapani resolveu estudar o tema.
“No Brasil, em algumas localidades existe uma visão negativa da espécie, estimulada pela existência de superstições em que o animal é considerado como símbolo de mau-agouro. Na Bolívia e Colômbia é ainda mais forte essa crença supersticiosa e na Costa Rica há quem especule que seu desaparecimento em certas regiões esteja relacionado a retaliações por motivos de crenças folclóricas, que consideram que o animal é sinônimo de má sorte e bruxaria”, esclareceu ela. “Acreditamos que parte dos atropelamentos envolvendo a espécie possam ser intencionais, sendo motivados pela crença regional de que se o animal atravessar na frente do carro, o condutor terá má sorte, o que levaria alguns condutores de veículos de maior porte a atropelarem esse animal de propósito”, acrescentou.
Mariana vem desenvolvendo sua pesquisa de doutorado intitulada “Da superstição à perseguição: os motivadores dos conflitos humano-fauna motivados por crenças de mau-agouro” pela Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação de Carla Morsello. “Pouco se sabe sobre os efeitos das crenças supersticiosas no comportamento de perseguição às espécies e isso acontece com outros animais além do tamanduá-bandeira, como as corujas, répteis como as serpentes ou com as hienas na África”. Segundo ela, particularmente intrigante é o caso do aye-aye (Daubentonia madagascariensis), um primata endêmico da ilha de Madagascar, tradicionalmente associado ao prenúncio de doença e morte. A principal ameaça à espécie, categorizada como “Ameaçada” (EN) pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) é a retaliação dos humanos, que matam o animal e chegam a abandonar todo um vilarejo após sua aparição, motivados pela crença de que a espécie traz mau agouro ao lugar. “Assim, meu estudo visa investigar os fatores psicológicos e socioculturais associados à assimilação e persistência dessas crenças e como isso se desenvolve no comportamento de perseguir e matar um animal. A ideia é que a compreensão desses fatores possa nos auxiliar na sugestão de intervenções apropriadas mais eficazes para a conservação desta e de outras espécies envolvidas nesse tipo de conflito”, explicou ela.
Até o momento, Mariana conduziu 68 entrevistas com moradores rurais no Cerrado e Pantanal do Mato Grosso do Sul e 82 entrevistas com caminhoneiros no Estado, das 300 entrevistas que pretende realizar até o final do estudo. Ela obteve diversos relatos de pessoas que acreditam que o tamanduá-bandeira traz má sorte. “Trabalhadores rurais disseram que se encontrarem no trajeto percorrido para irem pescar um tamanduá-bandeira, em geral voltam para casa convencidos de que não pegarão nenhum peixe. Da mesma forma, que se algum tamanduá-bandeira cruzar em sua direção quanto estiver em seu caminho para algum lugar, o melhor é voltar para casa, pois algo ruim pode lhe acontecer. E infelizmente muitas pessoas acreditam que a única maneira de ‘tirar o azar de você’ nesse caso é matar o animal ou bater com uma vara no focinho dele”, revelou ela. “Essa perseguição humana à espécie não chega a ser considerada uma das principais ameaças a este animal no Brasil, mas como já é uma espécie ameaçada de extinção, com baixo crescimento populacional, essa perseguição acaba contribuindo para a retirada de ainda mais indivíduos da natureza”, concluiu.
Atropelados intencionalmente
Essa pesquisa faz parte de um projeto maior do qual Mariana é integrante, intitulado Bandeiras & Rodovias, financiado principalmente pela Fundação Segré, e visa investigar o impacto das estradas nas populações de tamanduá-bandeira e os efeitos sobre o comportamento, a estrutura e saúde populacional, avaliando se e de que forma as estradas no Cerrado estão afetando a persistência das populações. Segundo o coordenador do projeto, Arnaud Desbiez, particularmente no Mato Grosso do Sul os tamanduás-bandeira estão entre as espécies com maior incidência de atropelamentos nas rodovias: “Em um estudo prévio realizado entre 2013 e 2014, o tamanduá-bandeira foi a terceira espécie mais atropelada, depois do cachorro-do-mato e do tatu-peba, com 135 carcaças encontradas. Nosso projeto vem sendo realizado principalmente para suprir a falta de estudos que objetivem entender detalhadamente como e onde os animais estão morrendo nessas rodovias”, explicou ele.
O Projeto Bandeiras & Rodovias conta com diversos profissionais dentre pesquisadores, médicos veterinários e biólogos. Vem sendo implementado através do Instituto de Conservação de Animais Silvestres – ICAS, tem duração de 4 anos (janeiro de 2017 a dezembro de 2020), é sediado em Campo Grande-MS e possui três fases. Na primeira fase, o objetivo é quantificar os atropelamentos e entender melhor os impactos que as rodovias causam nas populações de tamanduás; na segunda fase, entender melhor a saúde e a densidade populacional da espécie no entorno das rodovias; e na terceira fase, definir estratégias de mitigação de atropelamentos a serem utilizadas na implementação de novas rodovias ou em outros com o mesmo tipo de impacto. O projeto possui diversas fontes de financiamento, mas recebe doações de quaisquer pessoas ou entidades que desejem contribuir com os estudos.
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