Evidência de água corrente em Marte: isso abre a possibilidade de vida, de maravilhas que mal podemos imaginar. Sua descoberta é uma conquista surpreendente. Enquanto isso, cientistas marcianos continuam buscando vida inteligente na Terra.
Podemos ser cativados pela ideia de organismos em outro planeta, mas parecemos ter perdido interesse no nosso próprio. O Dicionário Oxford Junior tem cortado marcos do mundo vivo. Serpentes, amoras, peixinhos, lontras, prímulas, tordos, doninhas e carriças são agora dispensáveis.
Nas últimas quatro décadas, o mundo perdeu 50% de sua fauna de vertebrados. Mas em toda a segunda metade deste período, tem havido um declínio acentuado na cobertura da mídia. Em 2014, de acordo com um estudo da Universidade de Cardiff, havia tantas notícias difundidas pela BBC e ITV sobre Madeleine McCann (que desapareceu em 2007) como havia sobre toda a gama de questões ambientais.
Pense o que mudaria se nós valorizássemos a água terrestre tanto quanto valorizamos a possibilidade de água em Marte. Apenas 3% da nossa água é doce, e dois terços estão congelados. Ainda assim, poluímos a porção acessível. Sessenta por cento da água utilizada na agricultura é perdida em irrigação descuidada. Rios, lagos e aquíferos são sugados até secar, e a água que resta é com frequência tão contaminada que ameaça a vida de quem a bebe. No Reino Unido, a demanda doméstica é tal que a extensão de muitos rios é limitada durante o verão. No entanto, ainda instalamos privadas e chuveiros que jorram como cachoeiras.
Quanto à água salgada, do tipo que tanto nos fascina quando, em Marte, parece ter sido detectada, na Terra demonstramos nosso apreço com um frenesi de destruição. Um novo relatório sugere que o número de peixes caiu pela metade desde 1970. O atum azul, que já habitou os mares em incontáveis milhões, foi reduzido a estimados 40.000 peixes, ainda perseguidos. Os recifes de coral estão sob tamanha pressão que a maioria pode acabar até 2050. Nas nossas próprias profundezas, o desejo por peixes exóticos rasga um mundo que conhecemos pouco melhor do que a superfície do planeta vermelho. Os barcos de arrastão agora pescam atingindo profundidades de 2.000 metros. Só nos resta adivinhar o que eles podem estar destruindo.
“Nas nossas próprias profundezas, o desejo por peixes exóticos rasga um mundo que conhecemos pouco melhor do que a superfície do planeta vermelho”
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Poucas horas antes do anúncio da descoberta em Marte, a Shell encerrou a prospecção de petróleo Ártico, no mar de Chukchi. Para os acionistas da empresa, é um pequeno desastre: a perda de 4 bilhões de dólares; para aqueles que amam o planeta e a vida que ele sustenta, é um golpe de sorte. Isso aconteceu somente porque a empresa não conseguiu encontrar reservas suficientes. Se a Shell tivesse tido sucesso, teria exposto um dos lugares mais vulneráveis da Terra a derrames de óleo, que são quase inevitáveis onde a contenção é perto do impossível. Será que vamos contar com a sorte nessas situações?
No início de setembro, duas semanas depois de ter concedido permissão a Shell prospectar no mar de Chukchi, Barack Obama viajou para o Alasca para alertar os americanos sobre os efeitos devastadores que a mudança climática causada pela queima de combustíveis fósseis poderia catalizar no Ártico. “Não é suficiente apenas falar por falar”, disse. “Nós temos que cumprir o que dizemos”. Devemos “usar a engenhosidade humana capaz de fazer algo sobre isso”. A engenhosidade humana está lá, abundante na Nasa, que divulgou aquelas imagens espantosas. Mas não quando se trata de políticas públicas.
Deixe o mercado decidir: esta é a maneira pela qual os governos abordam a destruição planetária. Deixe isso para a consciência dos consumidores, enquanto ela está emudecida e confundida por propaganda e mentiras corporativas. Em um quase vácuo de informação, estamos abandonados para decidir o que devemos tirar de outras espécies e de outras pessoas, o que devemos usar nós mesmos ou deixar para as gerações seguintes. Certamente existem recursos e lugares – como o Ártico e o mar profundo – cuja exploração devesse simplesmente parar?
Toda essa prospecção e escavação, pesca de arrastão, despejo de lixo e envenenamento – para o que é isso, afinal? Será que enriquece a experiência humana, ou a sufoca? Há duas semanas eu lancei a hashtag #extremecivilisation (civilização ao extremo), e pedi sugestões. Elas vieram como uma inundação. Aqui estão apenas alguns dos produtos que meus correspondentes encontraram. Até onde sei, todos são reais.
Uma bandeja de ovos para sua geladeira que sincroniza com o celular para que você saiba quantos ovos ainda tem. Um aparelho para fazer ovos mexidos dentro da própria casca. Perucas para bebês do sexo feminino, com pouco ou nenhum cabelo, terem a chance de ter um penteado bacana. O iPotty, que permite a crianças continuar jogando em seus iPads enquanto treinam a usar o vaso. Um barracão de 14 mil reais à prova de aranha. Um quarto de neve, à venda nos Emirados Árabes, no qual você pode criar um paraíso de inverno com o apertar de um botão. Uma caixa refrigerada com rodinhas para melancias: indispensáveis para piqueniques – ou talvez não, porque pesa mais do a fruta. Creme de branqueamento anal, usados… para ser honesto, não quero saber. Um “rotador automático de relógio ” que poupa o incômodo de dar corda no seu brinquedo luxuoso de pulso. Um smartphone para cães, com o qual podem tirar fotos de si mesmos. Bananas pré-descascadas, em bandejas de poliestireno cobertas de filme plástico; apenas rasgue a embalagem.
Todos os anos, concebem-se novas maneiras engenhosas de desperdiçar coisas, e todos os anos nos tornamos mais acostumados com o consumo inútil de recursos preciosos do mundo. Com cada intensificação sutil, a linha de base da normalidade se desloca. Não deveria ser surpreendente descobrir que quanto mais rico um país se torna, menos seus habitantes se preocupam com impactos sobre a vida no planeta.
Nossa alienação das maravilhas do mundo natural, das quais evoluímos, apenas se intensificou desde que David Bowie descreveu uma menina tropeçando através de um “sonho submerso”, no caminho para ficar “presa na tela prateada”, onde uma longa série de distrações a desvia das grandes questões da vida. A canção, é claro, era “Vida em Marte?”.
*Esse artigo é publicado em parceria com a Guardian Environment Network, da qual ((o))eco faz parte. A versão original (em inglês) foi publicada no site do Guardian. Tradução de Eduardo Pegurier
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nada tem a haver com nada
George Monbiot. Claro. Desprezamos o planeta Água e olhamos para o Marte, já seco, maravilhados com a descoberta de ter existido água por aquelas paragens. Francamente.