Reportagens

Porto Central: projeto de R$ 5 bilhões ainda não tem orçamento de compensação para a pesca

Licenciamento avança no Ibama sem garantir compensações para perda de territórios, nem a segurança das mulheres mediante a chegada de milhares de trabalhadores para as obras

Fernanda Couzemenco ·
1 de agosto de 2023

Um projeto de mega condomínio portuário, orçado em R$ 5 bilhões, obtém Licença de Instalação – LI nº número 1436/2023 para iniciar suas obras em um território tradicional de pesca artesanal e o documento não apresenta qualquer condicionante de compensação para a atividade, que envolve diretamente pelo menos 400 famílias de trabalhadores do mar e de localidades ribeirinhas. Esse é um recorte chocante do longo e polêmico processo de tramitação do licenciamento ambiental do Porto Central, previsto para ocupar uma área de 2 mil hectares na foz do rio Itabapoana, no município de Presidente Kennedy, divisa do Espírito Santo com o Rio de Janeiro. 

A LI para a fase 1 do grande empreendimento foi expedida pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no último dia 11 de maio, doze anos após o protocolo do projeto que, em seus primórdios, tinha 30% do capital proveniente do porto estatal de Roterdã, na Holanda, e os demais 70%, da empresa brasileira TPK Logística, criada no mesmo ano do projeto, em 2011. Hoje, a TPK assume sozinha a empreitada, tendo como principal acionista o Grupo Polimix. 

Há mais de uma década, o projeto se reinventa seguidamente para provar sua viabilidade socioambiental, tendo tido licenças negadas mais de uma vez e mais de 40 indicações técnicas de inconsistências em relação às salvaguardas necessárias. A LI de maio traz uma nova estratégia, que é a de fatiar as licenças de instalação em cinco fases. Nesta primeira, o documento autoriza a construção de estruturas como quebra-mar; canal de acesso nearshore e offshore; píer com 1 jetty e 4 berços de atracação; retroárea com infraestrutura de acessos (principal e de serviço), estacionamentos, canteiro de obras, áreas de apoio, centro administrativo e centro de defesa ambiental. A supressão de 70 hectares de vegetação nativa, sublinha o documento, ainda necessita de autorizações específicas.

Quanto ao volume de dragagem a ser extraído, somente nesta primeira fase, é de 64,4 milhões de metros cúbicos de sedimentos, cerca de uma vez e meia o que vazou da barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP, provocando o maior crime ambiental do país e um dos maiores do mundo, em novembro de 2015. Desse total, “2,9 milhões serão reutilizados na construção do tômbolo de areia do quebra-mar sul”, explica a LI. O restante, será levado até “uma Área de Disposição Oceânica (ADO)”, o que os pescadores impactados por portos conhecem por “bota-fora”, áreas mortificadas para a pesca, muitas vezes estabelecidas em pesqueiros importantes. 

No tocante à pesca, no entanto, a única menção que a LI traz é a exigência de executar o Programa de Monitoramento do Desembarque Pesqueiro, um dos quase 40 programas que devem ser cumpridos para que se avance para a Fase 2. A maioria desses programas refere-se ao gerenciamento de impactos ambientais, como ruídos, efluentes e poluição atmosférica, e ao monitoramento de questões como linha de costa, taxa de sedimentação, pluma de turbidez e de supressão vegetal, além de um grande número de programas voltados ao monitoramento da fauna terrestre, fluvial e marinha. 

Relacionados ao meio antrópico, constam, além do desembarque pesqueiro, os programas de Comunicação Social, Educação Ambiental, Capacitação Profissional, Monitoramento socioeconômico, Mobilização e Desmobilização de Mão de Obra e Apoio ao Desenvolvimento Regional (PADR). 

Rima é de 2013

A reorganização da implementação do empreendimento, agora em cinco fases, foi autorizada atendendo a um pedido dos investidores que, diante da pandemia de Covid-19 e outras crises mundiais, precisaram procurar outros arranjos para garantir a viabilidade econômica do empreendimento. A saída do Porto de Roterdã foi uma das mudanças na configuração societária. 

Não houve, no entanto, atualização do Relatório de Impacto Ambiental (Rima), que continua sendo o mesmo de dez anos atrás. Nele, o tópico sobre “conflito com a atividade pesqueira” durante a fase de instalação do porto traz as seguintes ações a serem desenvolvidas como medidas de compensação: “melhorias ou construção de infraestrutura das sedes, auxílios na organização de programas de cadastramento, documentação e auxílio legal, entre outros; identificar e desenvolver, junto aos pescadores e suas famílias, alternativas vocacionais que lhes garantam trabalho e renda, com programas de auxílio e capacitação, como oficinas de artesanato para esposas de pescadores, programas de capacitação técnica para os filhos, cursos de beneficiamento de pescado; promover capacitação de pescadores e incentivar a aquicultura na região”.

Em outro momento do Rima, é mencionado o “Programa de Compensação da Atividade Pesqueira (PCAP)” a ser implementado, mas sem detalhar quais projetos. Com o fatiamento do licenciamento, no entanto, o PCAP ainda não consta na primeira LI. 

A denúncia da ausência de definição de um orçamento e de medidas concretas de compensação para a pesca na Licença de Instalação foi feita oralmente por pescadores e ambientalistas, durante a última da série de treze reuniões públicas conduzidas pelo Ibama neste mês de julho nas comunidades que compõem as Áreas de Influência Direta e Indireta (AID e AII) do empreendimento. 

Praia de Marobá, em Presidente Kennedy-ES. Foto: Antônio França/REDI

Compensação, só em 2029

“Sabemos que vamos ser impactados, que vamos perder nossa área marinha e ribeirinha, mas não sabemos quais serão as compensações”, afirma Carlos Belonia, presidente da Federação das Colônias e Associações de Pescadores do Espírito Santo (Fecopes). Em sua fala, ele citou o valor de R$ 25,98 milhões definido na LI como compensação ambiental a ser aplicado em unidades de conservação, e questionou quanto está definido para a pesca. A resposta do Ibama e dos empreendedores confirmou o entendimento que assombra a classe pesqueira: “não tem valor definido para ressarcir os impactos da pesca”. E mesmo o PCAP do velho Rima, pontua, refere-se apenas à parte marinha, não havendo qualquer menção à pesca ribeirinha. Na Colônia Z-14, de Presidente Kennedy, que ele também preside, são quatro comunidades no rio e alagados e uma no mar. 

Do público presente na reunião, calcula, 70% era de “lideranças de pescadores de Gargaú a Marataízes”, indicando o trecho litorâneo que compõe a AID. Já a AII inclui os municípios capixabas de Cachoeiro de Itapemirim e Itapemirim e o fluminense de Campos dos Goytacazes. “Saímos frustrados da audiência pública. A sociedade não tem as respostas que precisa, falta transparência”, avalia. 

Na mesma toada, o professor do Instituto Federal Fluminense (IFF) em Bom Jesus do Itabapoana e vice-coordenador da ONG Reflorestamento e Ecodesenvolvimento do Itabapoana (Redi), Carlos Freitas, disparou: “os investidores do Porto Central já sabem quanto vão ganhar. Mas os pescadores daqui não sabem quanto vão perder. Por que não se faz essa conta para o pescador, Ibama?”. 

Conhecedor da realidade da pesca artesanal na divisa entre os dois estados, o professor reforçou a indignação. “Sou contra dar a licença enquanto os pescadores não souberem o que eles vão efetivamente levar de prejuízo. Não pode ser dessa forma. As pessoas que estão aqui sofrem, vocês enchem o bolso e o prejuízo e o passivo ficam para nós. Aí é fácil instalar e ganhar dinheiro. Ibama, ouça as pessoas, vocês estão ouvindo só os empreendedores. O rapaz da empresa veio falar da pesca, mas não falou de uma forma completa e em linguagem que o pescador entende”. 

Pela Redi, Carlos Freitas e seus colegas acompanham há muito o drama das comunidades ribeirinhas fluminenses desde a instalação de pequenas centrais hidrelétricas ao longo rio Itabapoana, bem como os impactos do petróleo sobre as comunidades pesqueiras do mar na região. No Porto Central, elas continuam negligenciadas, na sua avaliação. “Só agora o Porto Central está fazendo a caracterização das comunidades ribeirinhas, mas dizendo que a negociação das compensações ambientais só serão feitas em 2029!”, critica. 

Protesto contra a construção do Porto Central, em Vitória. Foto: Divulgação.

Outro questionamento que ele traz das experiências no litoral fluminense é em relação ao Porto do Açu, inaugurado em 2015, no município de São João da Barra, localizado no limite sul de São Francisco do Itabapoana e no limite leste de Campos dos Goytacazes, ambos integrantes da ADD do Porto Central. “Opera com menos de um terço de sua capacidade e está a apenas 150 km de Presidente Kennedy”, exclama. 

Outra ociosidade do Açu é o de terras desapropriadas para o empreendimento, conforme aponta a doutoranda em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e agente pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Campos, Priscila Viana Alves. “Os agricultores perderam suas terras para a especulação do Porto do Açu, porque ele desapropriou mais de 50% do município, e não usa toda essa terra. A maior parte delas está salinizada, sem usufruto dos agricultores. O que eles não perderam por desapropriação, não pode ser usada por salinização. Eles sabiam plantar na areia, plantavam alimentos. Hoje é uma terra arrasada”, descreve. 

No Porto Central, chama a sua atenção o nível de tensão e medo que vive a população, especialmente. “Ouvimos que o Porto e está intimidando as pessoas em Presidente Kennedy, há denúncias de ameaças, mas ninguém coloca a público, estão todos com medo”. Apesar das obras de infraestrutura feitas pelo município para receber o empreendimento e que trouxeram melhorias para a cidade em aspectos como saneamento básico e pavimentação, Priscila aponta o grande vazio de políticas públicas estruturantes que de fato garantam melhor qualidade de vida, especialmente para as futuras gerações. “O Ifes de Presidente Kennedy não tem praticamente ninguém da cidade estudando lá. A situação da juventude está deplorável, muita droga, pouco estudo e emprego”. 

Porto do Açu, Porto Central… o filme se repete, avalia a acadêmica e agente pastoral: “Só mais racismo ambiental, mais especulação, mais degradação ambiental e social. Tudo sustentado por relações históricas coronelistas, escravocratas, contra as populações tradicionais”. 

“Só tem bagre”

Uma das vozes a relatar esses sucessivos impactos que ainda pulsam no litoral do Rio de Janeiro, bem como o medo frente à chegada de um novo gigante, é a do pescador Aldenir Andrade Areias, morador das imediações da Lagoa Feia e um dos mais de 300 pescadores da Colônia Z-1, de São Francisco do Itabapoana. “O que vai acontecer é igualmente a hidrelétrica fez com nós. Colocou a forquilha no nosso pescoço e até hoje não tirou. Quando a hidrelétrica fechou lá em cima, aqui embaixo para nós acabou a água. Era um pantanal, agora está tudo seco, tem boi pastando dentro, carro andando dentro. Vai acontecer a mesma coisa. De primeiro ninguém tinha um poço para beber água, era do próprio rio. Hoje a água tá vindo suja por causa da hidrelétrica, a água tem pouca força. Boi que morre, capim morre e azeda, imagina se faltar mais água! Não vai sobrar praticamente quase nada”, avalia. 

“O que a gente tem aqui para combater [os impactos dos grandes empreendimentos petroleiros sobre a pesca] é o filetamento de peixe do Pescarte, no Gargaú”, pontua, referindo-se ao projeto implementado pela Petrobras como compensação pela exploração de óleo e gás na Bacia de Campos, que prevê 14 unidades de produção e beneficiamento de pescado no litoral norte fluminense. Porque a pesca, mesmo, lamenta, praticamente acabou. “Só tem bagre. A gente cai nas águas afora aí, nas valas onde era pantanal, pega os bagres e vai passando. Vende o filé, enfileta. Tilápia vem de fora. Compra os caminhões lá fora e traz pra enfiletar a tilápia, cumbatã”, descreve. 

“Nós queria fazer reunião com o porto [central] para tomar mais conhecimento. O maior pesqueiro nosso, o verdadeiro mesmo, eles compraram tudo lá, na Lagoa de Monte Alegre, perto do Santuário das Neves. Queria que tivesse um pouco mais de tempo para assuntar mais e ver com entrar ali, mas sabendo que o pescador é sofredor também. Começou a conversar com a gente esse ano. Nos convidamos eles pra vir aqui. A menina da entrevista não deixa a gente falar tudo. Nós não temos condições de emprego lá, nós não temos estudo. Vai acabar com a nossa pesca e vão empurrar com a barriga para não ter remuneração nenhuma. A gente vai morrer à míngua? Não tem dinheiro que pague o que a gente tem para viver pra frente”. 

Além do ataque aos recursos hídricos, Sr. Aldenir prevê outros graves impactos do Porto Central. “A poluição do Porto Central vai ser mais ainda que do Porto do Açu, porque lá é gasoduto e aqui é minério. O vento nordeste vai soprar tudo para cá. Vai trazer muito estuprador, também, Deus me livre. Estamos pensando nos nossos anjos, nossos filhos, nossas netas”. 

Alagados do Itabapoana. Foto: Antônio França/REDI

“Pescador é calo no sapato dos grandes”

O fim iminente da pesca e os riscos à saúde e segurança das mulheres e meninas das comunidades atingidas estão na linha de frente das preocupações de outra liderança pesqueira ouvida pela reportagem. 

“O pescador não vai ter opção e ali é sobrevivência das pessoas, e a única coisa que sabem fazer é pescar. O que vai acontecer com as 400 famílias de pescadores que pescam no mar e no rio Itabapoana? Essas 400, você multiplica por quatro ou cinco, que são as pessoas que limpam o pecado, fazem as redes, vendem… A gente não sabe como vai ser o futuro das próximas gerações”, lamenta Manoel Bueno dos Santos, o Nego da Pesca, coordenador-geral do Movimentos dos Pescadores e Pescadoras (MPP) e presidente da Federação das Associações de Pescadores Profissionais e Aquicultores do Estado (Fapaes).

“Parece que o Ibama não aprende, não leva em consideração o que acontece em outros lugares. Os pescadores muito preocupados com contaminação e outros impactos no meio ambiente, porque vão mexer em coisa que está quietinha no subterrâneo, como o mercúrio, que pode subir quando jogarem todo aquele sedimento no mar, que é mais do que vazou de Mariana”, alerta. “A saúde, a educação, a segurança pública, não estão preparadas para isso que vem aí. Vai ser um crescimento desordenado. Chegam pessoas do bem para trabalhar, mas atrás delas vêm pessoas ruins, com tráfico de drogas, prostituição. Quando terminam as obras, as pessoas boas vão embora e as ruins ficam ali”, complementa. 

Trazendo ecos do Tribunal do Mar, que realizou um encontro internacional em novembro passado em Brasília, reunindo lideranças de quatro países da América Latina, Nego da Pesca contextualiza a problemática do Porto Central como mais um capítulo na antiga perseguição executada pelos grandes empreendimentos industriais e portuários contra a classe dos trabalhadores do mar. 

“Nós somos um calo no sapato deles. Quando o Ibama faz isso, de tirar nós da nossa área de pesca, é para deixar o território livre para os grandes empreendimentos. Quando acontece acidente com petróleo, essas coisas, o pescador é o primeiro a denunciar. Em São Mateus, quando a plataforma pegou fogo, quando o óleo que veio da Paraíba, nós pescadores artesanais fomos os primeiros a avisar”, descreve. 

A submissão dos órgãos públicos ao arrastão porto petroleiro, acrescenta, se dá também em âmbito estadual. A atual gestora socioambiental do Porto Central, Sueli Passoni Tonini, lembra, ocupou anteriormente o cargo de diretora-presidente do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), quando usou sua caneta para autorizar o porto da Ferrous, projeto anunciado para a mesma região do Porto Central, mas que foi engavetado. Também foi ela quem licenciou o Estaleiro Jurong, em Aracruz, norte do Espírito Santo, outro caso de atropelamento de comunidades pesqueiras e também indígenas no litoral capixaba. 

“Benefício nenhum para as comunidades”

Agente pastoral do Conselho Pastoral dos Pescadores no Espírito Santo (CPP/ES), Luzineide Rodrigues, a Zena, também conhece bem esse racismo ambiental que assola as comunidades pesqueiras que vivem em territórios cobiçados pela indústria porto-petroleira. Uma visita técnica recente que fez na região impactada pela Refinaria Duque de Caxias (Reduc), no litoral do Rio de Janeiro, junto à Campanha Nem Um Poço a Mais – conjunto de dezenas de organizações e entidades que defendem os direitos das comunidades e povos tradicionais afetados pela indústria petroleira em diversos estados do país – lhe atualizou o status de desolação dessas populações. 

“A instalação desse tipo de empreendimento não traz nenhum benefício para a comunidade. Em Campos Elíseos [distrito onde a Reduc funciona] não tem nenhuma pracinha, escola só tem uma, de ensino fundamental, muito simples. Tem muita prostituição, porque tem muito caminhoneiro que vai buscar combustível”, descreve. 

“Esses projetos quando vão para os territórios não levam benefício nenhum para a comunidade. O que a gente vê é uma grande região de pobreza e os jovens sem emprego, muita violência contra a mulher. Muitos navios jogando óleo na Baía de Guanabara. O ar pesado, muita poluição. Eles vêm para o território sem pensar em melhorias para a comunidade. Vem para destruir, sem nenhum respeito com os povos que ali vivem”, depõe. 

“A gente não quer que aconteça isso em Kennedy. Se o Porto Central se instalar lá, haverá várias mazelas. São 400 pescadores que vivem da pesca artesanal. Com o porto, eles não terão mais espaço para pescar, nem os do mar nem os ribeirinhos. E nem os agricultores familiares, porque muitos pescadores também praticam a agricultura familiar”, pondera. A Romaria das Neves vai acabar também”, acrescenta Zena, também fazendo referência ao patrimônio histórico, cultural e religioso capixaba que o pescador fluminense tem como referência de um de seus principais pesqueiros tradicionais. 

Santuário e romaria ameaçados

O Santuário das Neves foi criado sobre a igreja das Neves, construída no século XVII, e que atrai anualmente uma romaria com mais de 50 mil pessoas, a segunda maior festividade religiosa do estado, atrás apenas da Festa da Penha, em homenagem à Padroeira do Espírito Santo, Nossa Senhora da Penha, uma das maiores do país. 

O advogado José Irineu, membro da Comissão de Cultura e Patrimônio da Diocese de Cachoeiro de Itapemirim, onde presta auxílio jurídico voluntário, conta que o diálogo com o Porto Central não acontece desde 2022. “Há mais de um ano que a Diocese não é convidada para qualquer reunião”, afirma. E isso, sem qualquer definição das salvaguardas solicitadas. “O projeto de macrodrenagem não foi apresentado. Soubemos que será feito um aterro de cinco metros, o que vai deixar o Santuário dentro de um buraco!”, alerta. 

“A área em volta da Igreja das Neves tem 14 hectares, nos disseram que irão doar mais x hectares pra ser reflorestado, mas não temos esse projeto, não sabemos se o reflorestamento vai ser suficiente. Não queremos ser empecilho para o desenvolvimento, mas não podemos permitir que um patrimônio que a Igreja administra seja abandonado”. 

Educação sexual

Outro ponto transversal à pesca também recorrentemente apontado pelos pescadores e ambientalistas é a segurança e a saúde das mulheres e meninas das comunidades e cidades impactadas pelo Porto Central, conforme relataram Zena e Alzenir. O assunto é abordado no Rima ao citar um Programa sobre Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), que consiste em “palestras [que] devem ser realizadas para jovens nas escolas e centros comunitários sobre problemas como prostituição e doenças relacionadas à presença de tripulantes no local”. 

A medida, explica o relatório, é uma resposta a impactos chamados de “Interferência no cotidiano da população” e “Agravamento de problemas sociais” e compõe um conjunto de “medidas mitigadoras” que incluem ainda ações afins. Entre elas: “estabelecer normas de conduta à mão de obra contratada no que se refere ao relacionamento com os moradores e seu comportamento em áreas públicas e estabelecimentos”; “fazer o acompanhamento de incômodos aos moradores decorrentes da presença de pessoas estranhas ao local”; e “incentivo aos trabalhadores desmobilizados, através de palestras, entrevistas e outros meios, a retornarem aos seus locais de origem”. 

São medidas muito aquém da gravidade do problema, avalia Carlos Freitas. Numa reunião em que participou no final de abril em São Francisco de Itabapoana – mesmo sem ter sido convidado, como de costume – ele abordou o assunto, mas a resposta foi ainda mais decepcionante, conforme noticiou o jornal Século Diário, na época. “Eu assisti à apresentação de um relatório de atividades, onde constavam muitas palestras sobre prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) para estudantes. Perguntei se além de palestras sobre o assunto, se haveria também investimento em política pública, para apoiar os municípios nesse trabalho, e responderam que não era responsabilidade deles. Como se fazer palestras fosse o suficiente para evitar essa tragédia, que já vimos acontecer em tantos lugares”.

Na LI de maio passado, no entanto, não constam nem as palestras sobre prevenção de DSTs. 

Picos de até 4,2 mil trabalhadores nas obras

Nessa primeira fase da implantação, a previsão é de um pico de 1,3 mil trabalhadores nas obras, previstas para se encerrarem em 2026. Na fase 2, são previstos até 450 trabalhadores, com inauguração das obras em 2027. Na fase 3, até 2,6 mil e conclusão em 2029. Na fase 4, o maior pico: 4,2 mil homens nos canteiros de obras e trabalho concluído em 2025. Na quinta e última fase, 3,6 mil trabalhadores e finalização em 2040. Ao final desta, terá sido concluído o Masterplan, ou seja, o projeto inteiro, cuja Licença Prévia foi emitida em 2014 e ainda está valendo (confira detalhes no quadro abaixo). 

FaseEstruturasInício da operaçãoTrabalhadores no pico das obras
1Terminal de líquidos 1Base de serviços e CDA20261.295
2Terminal de GNL2027450
3Terminal de minério de ferro 1Terminal de grãos 1Terminal de líquidos 2Base de serviços e CDA 220292.590
4Terminal de carga geral 1Terminal de contêineres 1Terminal de minério de ferro 2Terminal de grãos Base de apoio offshoreTerminal de carvãoCombustível20354.200
5Terminal Ro-RoEstaleiro Terminal de fertilizantesTerminal de cargas geral 2Área industrial e armazenagem20403.650

Os dados foram apresentados pelo engenheiro Fábio Cretton de Souza, gerente de projetos do Porto Central, durante o ciclo de reuniões neste mês de julho. Nos encontros, ele enfatizou a função estratégica que o projeto irá cumprir, com seus 25 metros de calado, junto aos “maiores navios do mundo”. No Porto de Vitória, por exemplo, com 16 metros de profundidade, tais embarcações não chegam. “São mais de 19 tipologias de serviço nesse condomínio portuário”, exultou. 

O gerente também ressaltou a “premissa” assumida junto ao Ibama, em que o órgão irá autorizar o início dos trabalhos em terra no começo de setembro e, no mar, no final do mesmo mês. Com isso, em outubro terá início a supressão de vegetação, após um mês de trabalho de resgate prévio de fauna. Serão dois meses derrubando a restinga próximo à foz do Itabapoana para abrir espaço para a terraplanagem e a montagem do canteiro de obras para as primeiras estruturas do porto. A dragagem está prevista para começar entre dezembro e janeiro, sendo necessários três meses para finalizar o tômbolo de areia e, depois, fazer a parte rochosa da quebra-mar, seguida do jetty e dos berços do píer.

Sobre a fase 3, ressaltou que ela depende de uma situação externa para ser viabilizada, que é a construção de duas ferrovias, uma ligando o atual terminal da Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM) em Cariacica, na Grande Vitória, até o Porto de Ubu, da Samarco, em Anchieta, no sul do Estado; e outra ligando este ao Rio de Janeiro. O primeiro sinal positivo aconteceu há poucos dias, quando a Vale e o governo do Espírito Santo anunciaram um acordo em que a mineradora se comprometeu a doar o projeto básico do segundo trecho. “Precisamos da ferrovia completa até 2029. Se não fizer o [primeiro] trecho até Ubu, não adianta o trecho de cá, porque o minério vem de Minas Gerais”, disse o gerente de projetos na reunião. 

Outra especificidade da fase 3 é que ela irá retirar o tômbolo de areia feito na fase 1, por meio de engordamento de praia, e vai substituir essa estrutura provisória por uma mais firme, porém, mais cara e demorada para ser construída. “O solo nos primeiros 600 metros é muito mole e tem um custo maior para fazer o estaqueamento e a parte rochosa do quebra-mar. O engordamento faz em três meses e reduz o custo, viabilizando as fases 1 e 2. Na fase 3 o tômbolo de areia sai, recompõe o quebra-mar sul e constrói o quebra-mar norte”, explicou.  

Mapa do empreendimento. Arte: Gabriela Güllich

Incoerência climática

A exposição deixou clara o forte vínculo do projeto com a expansão do mercado petroleiro. “O plano de negócios da Petrobras prevê que a partir de 2025, o Brasil vai ter uma crescente relacionada à produção de petróleo”. Mas a transferência de óleo ship to ship, sublinhou, só acontecem hoje em três portos em todo o Atlântico Sul: Porto do Açu, em São João da Barra, município do norte fluminense vizinho a São Francisco do Itabapoana; o Porto de Santos, em São Paulo; e “um porto no Uruguai”, que ele não precisou o nome. “Então a fase 1 do Porto Central se tornou uma necessidade para o país, porque se não tiver mais portos para atender à transferência de óleo abrigado, ela vai acontecer em mar aberto, que é um risco muito maior”, salientou.

O ranço petroleiro da economia capixaba vem sendo seguidamente denunciado pela Campanha Nem Um Poço a Mais e, mais recentemente, em artigo publicado no portal do Sindicato dos Trabalhadores e Servidores Públicos do Espírito Santo (Sindipúblicos/ES). Nele, as entidades chamaram de “fetiche desenvolvimentista” o apoio constante dedicado pelo governador Renato Casagrande (PSB) ao Porto Central e argumentaram que somente esse fetiche explica como é possível que o estado vislumbre, “além dos 11 portos e terminais especializados já instalados, [a construção de] mais 22, nos 400 km de costa atlântica do Espírito Santo” – situação esdrúxula já destacada pela Campanha em artigo publicado há dois anos, no boletim de julho de 2021, sob o título “Espírito Santo: um porto a cada 15 km de litoral?”  

“Justificar a necessidade do Porto Central, para atender a cadeia de petróleo e gás, é também de profunda incoerência e irresponsabilidade diante da emergência climática causada pela queima dos combustíveis fósseis e os acordos climáticos de redução das emissões dos gases do efeito estufa até 2030. Esta conta não fecha e desmoraliza o Consórcio Brasil Verde, uma coalizão de 24 governadores, presidido pelo governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, que pretende fazer com que todos os estados brasileiros tenham um plano de ação para a neutralidade do carbono até 2050, para que o País cumpra sua meta de zerar as emissões até a metade do século. Pura farsa”, aponta a Campanha.

“Um porto para chamar de meu”

Posição semelhante defende o economista e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Arlindo Villaschi, ao observar a prioridade do estado em apoiar a expansão da indústria portuária. “Sou muito crítico a esse modelo ‘quero um porto para chamar de meu’”, ironiza. “‘Eu tenho uma concessão e tenho que viabilizar de qualquer maneira’. É um equívoco do modelo. Um equívoco a maneira como o poder público vê a concessão. Ela tem que ser revista à luz do que é 2023. Havia um tipo de comércio internacional que não vai perdurar por muito tempo”, pondera. 

Mesmo considerando a reorganização do mercado globalizado, tudo indica que a China, por exemplo, continuará sendo um grande parceiro do Espírito Santo, mas o estado já oferece boa infraestrutura portuária. “Tenho minhas dúvidas se precisa de mais um porto”, reforça. A necessidade hoje, afirma, é de pensar essa infraestrutura “a partir das vocações do Espírito Santo e do que já está implantado e já causou impactos”, afinal, “portos causam impactos na biodiversidade e nas comunidades e, a menos que seja algo muito necessário, não se deve aceitar novas instalações ou expansões”. 

O economista considera que a costa capixaba é muito bem servida em portos, sendo válido revisar algumas especificidades, como o porto da Samarco, em Ubu, que é voltado exclusivamente para minério de ferro, mas “deveria atender também a outras demandas da economia”. O Porto Central, assevera, também precisa se adequar aos novos cenários. “A concessão, lá atrás, tinha um outro modelo, com a Roterdã”. 

Arlindo Villaschi defende que “o mínimo que deveria ser feito agora é uma conversa ampliada sobre que tipo de demanda queremos atender, que tipo de valor agregado queremos dar às exportações e importações pelo ES e que impactos essas operações trazem para o estado”. E com impactos, ele se refere também aos positivos, que, pelo que se pode observar, não chegam à altura da propaganda desenvolvimentista. O saldo desse modelo econômico, acentua, não é positivo “nem para as finanças públicas, não gera desenvolvimento”. É fato, na sua percepção, de que “o modelo de desenvolvimento capixaba está falido” e que “o estado não se debruça sobre como superar isso”, o que é muito grave, pois mudanças estruturais assim “não se dão exclusivamente via mercado, mas também por meio de política industrial, política de desenvolvimento de sustentabilidade ambiental”, orienta. 

União

A reportagem de ((o))eco questionou ao Ibama por e-mail sobre as demandas de informações e de condicionantes não atendidas. A resposta de sua assessoria de imprensa abordou o histórico do licenciamento e a forma como a LI concedida em maio foi estruturada. Especificamente sobre o maior diálogo demandando pelas comunidades, afirmou a tempestividade de novos questionamentos. “Entende-se que, a partir deste momento, as comunidades impactadas poderão entrar em contato e cobrar o empreendedor por meio do canal de ouvidoria ou entrar em contato com o canal de ouvidoria do próprio Ibama para cobrar ou acompanhar o andamento das ações de mitigação ou compensação dos impactos previstos pelas atividades pretendidas na fase 1 do projeto do empreendimento Porto Central”.

A própria LI traz a indicação da relevância dessa postura mais incisiva da sociedade ao afirmar que “o Ibama, mediante decisão motivada, poderá modificar as condicionantes e as medidas de controle e adequação, suspender ou cancelar esta Licença, caso ocorra: a) Violação ou inadequação de quaisquer condicionantes ou normas legais; b) Omissão ou falsa descrição de informações relevantes, que subsidiaram a expedição da licença; c) Superveniência [algum fato jurídico novo] de graves riscos ambientais e à saúde”.

O contexto inspira um “dar as mãos”, na avaliação de Nego da Pesca. “A união faz a força. Tudo o que eles querem é a gente dividido. O inimigo são os grandes empresários e indústrias. Nós temos que ser mais amigos e unidos”, convoca. Ao que Carlos Belonia faz eco: “o Ibama viu que precisa conversar com a gente sobre muitas coisas. Estamos unidos e vamos levar esses questionamentos”. 

Leia também

Notícias
17 de julho de 2013

Porto do Açu é campeão de desmatamento na Mata Atlântica

A maior devastação do bioma foi registrada no local de construção do empreendimento portuário: 937 ha de restinga foram destruídos.

Notícias
27 de janeiro de 2023

Justiça federal e estadual avaliam três ações civis públicas contra Complexo Termelétrico em Macaé

Desabastecimento hídrico e poluição atmosférica estão entre as irregularidades apontadas pelo Instituto Arayara, que reivindica estudos fundamentais negligenciados no licenciamento

Reportagens
22 de fevereiro de 2022

Monoculturas ditam as regras e encurralam a floresta no Espírito Santo

Na Reserva da Costa do Descobrimento, eucalipto e do café disputam espaço pela redução de pastagens e concorrem com a necessária expansão da floresta

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Comentários 2

  1. Dalton Mata diz:

    Complicado ein, muito se fala que o Brasil não tem infraestrutura, que somos um país atrasado (E somos, MUITO)… daí quando vem os investimentos, não pode construir, pra construir é caro porque os Ambientalistas embargam o quanto podem, encarecendo o projeto e inviabilizando o investimento.

    Para ambientalistas que estão com a vida ganha, é fácil criticar, mas e as pessoas que vão trabalhar na construção do porto e depois vão trabalhar no porto? Quantos milhares de empregos não serão gerados?..

    Essas comunidades, não tem direito ao desenvolvimento e emprego também?

    É a mesma coisa do petróleo no litoral norte (que não fica na Foz do Amazonas). O Amapá é um dos estados mais pobres desse país, os ambientalistas do RJ e SP gostam de criticar vivendo aqui na cidade andando de carro a gasolina… e olha que se a gasolina ficar cara é capaz de reclamar também kkkk … parece brincadeira.


  2. Marli Machado de Oliveira Santanna diz:

    Muito mimimi de pescadores, que na sua maioria nem pescam.
    Fazem apenas parte de um cadastro de pescadores artesanais, para se beneficiarem de direitos junto ao INSS.
    Venham até a comunidade falar com os moradores que não têm cadastro de pescador artesanal e perguntem o que eles pensam!
    Esses estão ansiosos por oportunidades para eles e seus filhos e netos.
    Acreditam numa possibilidade de um futuro melhor para a comunidade.
    Exigir respeito e cuidado ao meio ambiente é importante, porém criar desenvolvimento e novas oportunidades tbm são necessários.
    Nas comunidades as pessoas vêm seus descendentes terem que partir para outras cidades para estudar e trabalhar.
    E pequenos grupos só pensam nos seus próprios argumentos.
    Procurem o restante dos moradores dessas comunidades e vejam quais são suas expectativas com o advento Porto Central.
    Como moradora de uma das comunidades posso testemunhar as expectativas positivas de muitos outros moradores.
    E tbm alegar que não houve reuniões suficientes para falar sobre os impactos nas comunidades com a vinda de mão de obra externa gerando violência, abordagem sobre DSTs etc, posso dizer foram realizadas várias nas comunidades, e a maioria das pessoas nem estão interessadas em participar.