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Projeto na ALMT quer diminuir e até zerar distâncias mínimas para aplicação de agrotóxicos

PL 1833/23, de Gilberto Cattani (PL), permite aplicação a 25 m de povoações e mananciais de captação de água para abastecimento, contra atuais 300 m; distância é zerada em pequenas e médias propriedades

Gabriel Tussini ·
11 de novembro de 2024

Um projeto de lei que tramita na Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso (ALMT) ameaça comunidades humanas, animais e rios do estado. O PL 1833/23, do deputado Gilberto Cattani (PL), propõe afrouxar radicalmente as regras para aplicação de agrotóxicos – que passariam a poder ser pulverizados a uma distância mínima de apenas 25 metros de povoações, mananciais de captação de água e nascentes no caso de grandes propriedades, e sem qualquer distanciamento no caso de médias e pequenas propriedades.

O projeto foi protocolado em setembro de 2023, enquanto o Ministério Público de Mato Grosso tentava, desde 2017, anular partes do decreto estadual 1651/13, que regulamenta a lei 8588/06, que trata dos usos de agrotóxicos no estado. Em seu artigo 35, o decreto estabelecia distância mínima de 90 metros de “povoações, cidades, vilas, bairros, e mananciais de captação de água, moradia isolada agrupamento de animais e nascentes ainda que intermitentes”. 

Em setembro deste ano, pouco mais de um ano depois do projeto ser protocolado, esse trecho do decreto de 2013 foi finalmente anulado, voltando a valer o disposto no artigo 46 do decreto estadual 2283/09 – que fixa distâncias mínimas de 300 metros de “povoações, cidades, vilas, bairros, de mananciais de captação de água para abastecimento de população”; 150 metros de “mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais”; e 200 metros “das nascentes, ainda que intermitentes”. 

Já pelo texto de Cattani, a distância seria diminuída para apenas 25 metros dos locais listados no caso de grandes propriedades, e eliminada totalmente no caso das pequenas e médias propriedades, mantendo apenas proibição de aplicação em Áreas de Proteção Permanente (APP), reservas legais e unidades de conservação – o que significa que os venenos poderiam ser aplicados até mesmo ao lado de casas, escolas, aldeias indígenas ou outros locais sensíveis. 

As alterações constam também no texto do substitutivo nº 1 ao projeto, de autoria do próprio Cattani e feito apenas para trocar o termo “agrotóxicos”, que constava no texto original, por “defensivos agrícolas”. O substitutivo foi aprovado no dia 18 de setembro na Comissão de Meio Ambiente da casa e em primeira votação no Plenário – em votação simbólica, sem discussão e em apenas 30 segundos (a partir do minuto 12:55 da gravação da sessão).

Relator aceita informações sem lastro e adiciona sua própria dose de desinformação

A proposição recebeu parecer positivo na Comissão de Meio Ambiente por parte do relator Carlos Avallone (PSDB), que também preside o colegiado. Em seu texto, Avallone defende que o projeto é embasado “em estudos científicos que demonstram a segurança da medida”. Ele argumentou ainda que os estados de Goiás e do Paraná “estabelecem distâncias mínimas semelhantes ou até menores”. 

Os argumentos, porém, não são verdadeiros. Goiás, por meio do artigo 11 da lei estadual 19.423/16, diferencia a pulverização terrestre mecanizada (com distâncias mínimas de 200 m de mananciais de captação de água; 100 m de nascentes, rios e cidades; e 50 m de moradias isoladas e agrupamentos de animais) da manual (distâncias de 20 m de povoações, 50 m de mananciais de captação e proibição de aplicação em APPs). O projeto proposto em Mato Grosso, ao contrário, não diferencia a pulverização mecânica da manual, permitindo distâncias muito menores no caso da aplicação mecânica, e ainda permitindo uma distância menor dos mananciais de captação no caso da aplicação manual.

Já no Paraná, também citado por Avallone, a Resolução 22/85, da então Secretaria do Interior, fixa distâncias de 50 metros para aplicação terrestre com “aparelhos costais ou tratorizados de barra” e de 25 metros para a aplicação com “atomizadores ou canhões”. A resolução chegou a ser revogada em 2018 pela então governadora Cida Borghetti (PP), no último mês de seu mandato, mas foi restabelecida pela Justiça estadual em 2020.

Para além da desinformação sobre os exemplos de outros estados, Avallone cita o uso de pesquisas científicas por Cattani para o seu parecer positivo. Nas justificativas da proposta original, o deputado do PL cita um artigo de 2008 do engenheiro agrícola João Paulo Arantes Rodrigues da Cunha, professor da Universidade Federal de Uberlândia. Nele, o pesquisador conclui que “nas condições avaliadas, a distância horizontal máxima percorrida pelas gotas [de agrotóxicos] foi inferior a 40 m” – distância maior do que os 25 m para grandes propriedades que o próprio substitutivo propôs e o relatório aprovou.

Avião agrícola lança agrotóxico em uma plantação na Chapada dos Parecis~, em Mato Grosso. Crédito: Lalo de Almeida/Folhapress

Já o outro estudo citado por Cattani se trata de uma tabela com detalhes do comportamento de gotas de agrotóxicos sob diferentes condições ambientais, retirada de uma apostila assinada pelo engenheiro agrônomo Marcos Ferreira da Costa, datada de agosto de 2009. Os dados apontados dizem que a distância máxima alcançada pelas gotas, com 30ºC de temperatura e 80% de umidade, seria de 21 m. 

A apostila completa – por onde se pode ver que a tabela citada por Cattani (na página 8) não dispõe de metodologia descrita, não sendo possível saber como se chegou aos resultados – está disponível no site SlideShare, publicada pelo próprio engenheiro. No perfil de Marcos no site, acessado a partir da própria publicação da apostila, está o Linkedin do engenheiro, onde consta que 2009 foi o ano em que ele iniciou sua graduação no curso de Engenharia Agronômica da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). A tabela sem metodologia de um então calouro, portanto, foi o argumento de autoridade utilizado pelo deputado.

Uma tabela semelhante, com outra formatação, foi publicada em documento da Embrapa (página 36), publicado em 2006. Nesta tabela, porém, os dados de umidade são diferentes – 50% quando a temperatura é 30ºC. A fonte dos dados é atribuída a uma publicação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) datada de 1997, mas que não está nas referências bibliográficas e nem nas notas de rodapé da publicação.

Já uma circular técnica da mesma Embrapa, publicada em 2007, traz uma tabela (página 2) semelhante, porém com dados muito diferentes. Usando como fonte um livro de 1992 de Graham Matthews, professor emérito da Faculdade de Ciências Naturais do Imperial College London, os dados dessa vez indicam uma distância percorrida pelas gotas quase duas vezes maior do que nas outras tabelas, sob as mesmas condições climáticas. Elas chegaram a percorrer 39 m com 30ºC e 50% de umidade – chegando a 136 m com 20ºC e 80% de umidade. 

Os dados apresentados por Cattani e corroborados por Avallone são, portanto, controversos – e a alegação de Cattani de que o estudo da tabela reproduzida por Marcos Ferreira Costa seria “mais específico porque realizado neste Estado”, como justificou no projeto original, não procede.

Organizações se posicionam contra o projeto

Diversas entidades de defesa do meio ambiente e de povos indígenas de Mato Grosso se posicionaram publicamente contra o projeto de lei. O Fórum Mato-Grossense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos – composto por Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MPMT) e pelo Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador, da UFMT –, por exemplo, afirmou que o texto “ofende direitos humanos e fundamentais, como a vida, a saúde humana e o meio ambiente”.

“Pesquisas nacionais e internacionais, e em especial da Universidade Federal de Mato Grosso, já concluíram a existência de resíduos de agrotóxicos nos rios, poços artesianos, peixes, água da chuva, sangue e urina de trabalhadores, alunos e professores de escolas próximas às áreas de plantação em que se aplica o veneno, além da contaminação de leite materno, de alimentos provenientes das hortas e das commodities produzidas no estado, como a soja, o algodão e o milho”, frisou o Fórum, em nota.

“O perfil de adoecimento da população adulta mato-grossense apresenta aumento da incidência de casos de cânceres relacionados à exposição ambiental e ocupacional aos agrotóxicos, tais como câncer de pulmão, leucemias e linfomas. Entre as crianças, a exposição dos pais e morar próximo de lavouras aumenta o risco de cânceres de sistema nervoso central, leucemias e linfomas”, destacou a organização.

Placa sinaliza o uso de agrotóxico em plantação de milho próxima à nascente do rio Paraguai. Crédito: Lalo de Almeida/Folhapress.

Já a Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt) divulgou uma nota de repúdio, afirmando que o projeto “prejudica não somente a saúde pública como diretamente a saúde dos povos indígenas de Mato Grosso, ameaça o equilíbrio do meio ambiente, e coloca em contaminação direta a água e os peixes, que são as principais fontes de alimentação dos povos indígenas”.

“Atualmente no estado já convivemos com a poluição do ar a um nível de elevação histórica, os rios estão secando e alguns morrendo, os biomas Amazônia, Cerrado e Pantanal sofrem uma destruição histórica e provavelmente irreversível, provocada pelos incêndios que são potencializados pelo clima extremamente quente e seco, uma consequência da crise climática que o Brasil vive”, contextualiza a Fepoimt, que finaliza destacando dois estudos: um da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, que alerta para impactos dos agrotóxicos na saúde, e outro do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da UFMT, que relaciona a exposição a agrotóxicos à anemia aplástica.

A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, por sua vez, descreveu o projeto como “o mais recente ataque” dentre um conjunto de propostas antiambientais classificadas como um “Pacote do Veneno” estadual. A organização cita a engenheira agrônoma Fran Paula, que afirma que a distância mínima atual deveria ser aumentada, ao contrário do que propõe o PL 1833/23, já que a deriva dos agrotóxicos é “potencialmente maior que 300 metros”.

Outra entidade a se posicionar foi o Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad). A organização classificou o projeto como um “ataque direto à saúde e à vida”, destacou casos de contaminação detectados em plantações orgânicas, na caixa d’água da escola de um assentamento e em amostras de leite materno, além da morte de 100 milhões de abelhas no estado devido ao uso de agrotóxicos em uma única fazenda. “A luta contra os agrotóxicos é uma luta pela vida! Não ao envenenamento do nosso povo!”, finaliza a postagem.

Novos substitutivos

Após a aprovação do relatório do primeiro substitutivo (do próprio autor Gilberto Cattani, que apenas trocou o termo “agrotóxicos” por “defensivos agrícolas” no texto) na Comissão de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Recursos Minerais (CMARHRM), outros 3 substitutivos foram apresentados e deverão ser apreciados em breve – mas ainda sem data para isso.

O substitutivo nº 2, de autoria do deputado Lúdio Cabral (PT), cristaliza na lei 8.588/06 as distâncias estabelecidas pelo decreto estadual 2283/09 – distâncias mínimas de 300 metros de “povoações, cidades, vilas, bairros, de mananciais de captação de água para abastecimento de população”; 150 metros de “mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais”; e 200 metros “das nascentes, ainda que intermitentes”. Essas são as distâncias atualmente em vigor no estado, após a Justiça estadual anular trechos do decreto estadual 1651/13.

Já o substitutivo nº 3, do autor da proposição original, Gilberto Cattani (PL), aumenta distâncias em relação à proposta aprovada, passando para 90m a distância mínima para aplicação em grandes propriedades, 25m nas médias propriedades e sem distância mínima nas pequenas propriedades – ainda bem menores do que no cenário atual. 

No substitutivo nº 4, Cattani mantém as mesmas medidas, mas faz ajustes redacionais, trocando “a partir de quinze módulos fiscais [medida variável de tamanho de propriedades rurais, que varia para cada município]” na definição de grande propriedade para “acima de quinze módulos fiscais”, na prática dispensando o limite de 90m para as propriedades que tenham exatamente 15 módulos fiscais. As médias propriedades são descritas como tendo “acima de quatro e até quinze módulos fiscais”, ao contrário da equivocada descrição de “até quatro módulos fiscais” do terceiro substitutivo. E, por fim, as pequenas propriedades são definidas como tendo “até quatro módulos fiscais”, e não mais “menos de quatro”.

A justificativa de Cattani em todos os substitutivos é “ajustar a redação, tornando-a mais

adequada para deliberação e votação, nas Comissões, e no Plenário”. Nos substitutivos 3 e 4, o deputado do PL adiciona que o texto atende “aos interesses de entidades de classe e setores importantes para o desenvolvimento de nosso Estado”.

  • Gabriel Tussini

    Estudante de jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), redator em ((o))eco e interessado em meio ambiente, política e no que não está nos holofotes ao redor do mundo.

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