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Proteção dos povos só é possível com combate aos crimes ambientais, afirma Edel Moraes

Anunciada para a Secretaria dos Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável, no MMA, a líder destaca a questão fundiária como primeiro foco da nova pasta

Débora Pinto ·
19 de janeiro de 2023 · 1 anos atrás

“Na floresta tem gente”. O lema de Edel Moraes pode parecer simples diante dos claros desafios apresentados pela nova pasta que está sob seu comando – ela foi anunciada por Marina Silva na última sexta-feira (13) como a responsável pela Secretaria dos Povos e Comunidades Tradicionais e  Desenvolvimento Rural Sustentável, no Ministério do Meio Ambiente. Porém, o completo desmonte das políticas de proteção às populações tradicionais e aos biomas brasileiros, como parte de um projeto que visava homogeneizar os modos de vida e os modelos de produção, solicita, para a secretária, que o trabalho comece a partir das bases, mesmo que estas pareçam simples. “Essa é uma parte desafiadora, é mesmo uma grande reconstrução”, conta Moraes.

Ela indica que os fatores mais urgentes referentes à pasta que comandará dizem respeito a promover a visibilidade dos povos tradicionais presentes nos biomas e possibilitar o avanço de resoluções fundiárias, incluindo os processos ligados ao CAR (Cadastro Ambiental Rural). Estes seriam os primeiros passos na proteção contra a ação de invasores, grande maioria grileiros ligados às várias possibilidades de ganho econômico oriundo do desmatamento, como a exploração madeireira, garimpeira ou o avanço das pastagens e da monocultura – a face real do “passar a boiada” citado pelo ex-ministro Ricardo Salles e incitado por discursos e medidas promovidos sob Bolsonaro. Para quem estava nos territórios, a “passagem da boiada” – e as ações por ela incentivadas – significaram o aumento da violência e da insegurança. A exemplo, ocorreram alterações territoriais drásticas sem nenhum tipo de consulta prévia.

A titulação de territórios será uma prioridade a ser articulada pela Secretaria dos Povos e Comunidade Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável, com a necessária interação com outras pastas. Considerar as populações tradicionais é, segundo Edel Moraes, parte fundamental para o fortalecimento dos mecanismos de controle em regiões desgastadas pelos conflitos ligados ao uso da terra. A secretária destaca ainda as possibilidades de fazer parte de um Ministério no qual  encontrará a devida atenção ao desenvolvimento da bioeconomia, com a criação de uma secretaria voltada especificamente para o tema.

Nesta entrevista para ((o))eco, Edel Moraes explica como estão sendo os primeiros passos na estruturação dessas políticas e quais os impactos que elas podem ter na preservação dos territórios. Sua perspectiva é de quem, proveniente do município de Curralinho, na região do Marajó (PA), viveu a realidade dos impactos causados pela degradação ambiental e social de sua comunidade, teve base de formação política comunitária a partir do engajamento dos seus pais em movimentos eclesiásticos, para tornar-se uma das mais importantes lideranças da CNS (Conselho Nacional dos Seringueiros), em uma linhagem direta com o líder seringueiro Chico Mendes. E que, agora, chega ao posto de secretariado de Marina Silva no MMA. 

((o))eco – Neste momento de composição e organização do novo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, qual vai ser o papel da Secretaria de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável? 

Foto: arquivo pessoal.

Edel Moraes – A Secretaria assume a grande responsabilidade de propor mecanismos de proteção a todos os biomas brasileiros considerando, como carro-chefe, as populações tradicionais e campesinas que habitam esses territórios. Por isso existe o valor simbólico desse espaço institucional, que demonstra mais uma possibilidade da transversalidade tão falada pela ministra Marina Silva, e eu considero um ato de ousadia dela. É preciso começar pela questão da visibilidade e a existência da pasta favorece um olhar mais atento para a pauta. O trabalho será gigantesco, mas o que pretendemos é proporcionar condições para que a sociobiodiversidade seja tratada de acordo com o valor que ela representa, compreendida como um fator de proteção aos territórios. Para isso, será necessário manter um constante trabalho de escuta às comunidades, a partir do  Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), e trazer para a ação os planos da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. Queremos fazer tudo de uma forma muito participativa. É importante não esquecer também que este espaço faz parte de uma política de reparação de uma dívida histórica, em prol de justiça social. Chegamos com esperança para colocar esse sonho em ação, mesmo que pareça uma utopia, mas certos de que podemos atingir resultados bastante concretos. 

Como a senhora colocou, trata-se de um desafio gigantesco, levando em conta a diversidade, tanto dos territórios quanto das populações. Quais serão as prioridades da Secretaria? Como ela vai atuar, por exemplo, em relação às unidades de conservação de uso sustentável, como as reservas extrativistas (Resex)?

As coisas ainda estão bem no começo – ainda estão finalizando os trâmites burocráticos da minha nomeação. Mas neste momento já está clara a intenção de retomar todas as políticas que foram completamente abandonadas durante a gestão anterior, levando em conta que os povos tradicionais passaram a ser considerados como empecilho para o desenvolvimento econômico do país. Precisaremos olhar para os problemas de cada localidade. Uma questão urgente é o acesso à água potável. Além dos extremos de secas, que devem ocorrer cada vez com mais frequência em algumas regiões por causa das mudanças climáticas, há casos nos quais o acesso à água é inviabilizado pela poluição decorrente de atividades econômicas que ignoram os ecossistemas, a existência das pessoas e as relações que estas estabelecem com os territórios. É uma dificuldade que vem se acentuando em comunidades indígenas e quilombolas e outras, e mostra a importância de ações sérias para a proteção às águas por parte do MMA, olhando também para as comunidades. A grande preocupação é a questão fundiária. A disputa pela terra  é o ponto onde os crimes ambientais encontram frontalmente as populações do campo, incluindo os agricultores familiares, que também serão considerados a partir da perspectiva do Desenvolvimento Rural Sustentável. Uma de nossas funções será zelar para que sejam respeitadas as delimitações territoriais, incluindo as UCs de uso e demais áreas demarcadas,além de trabalhar em parceria com outras pastas para fomentar a qualidade de vida das populações.

Quais medidas a senhora acredita que podem partir da Secretaria para possibilitar a solução deste tipo de conflito ligado à terra?

Nós trabalharemos inicialmente na articulação para a construção de uma política para regularização fundiária e a titulação de terras, inclusive aquelas ligadas ao CAR (Cadastro Ambiental Rural), para buscar evitar a continuidade do avanço de invasores e grileiros nas comunidades.Sem território preservado não tem garantia da vida e da sustentabilidade. Isso vale para os povos tradicionais, mas também para todo o planeta. Então, nossa visão é a de criar mecanismos e estratégias para fomentar, juntamente com as Secretarias de Bioeconomia e Biodiversidade, o fortalecimento de atividades como o agroextrativismo e outras práticas geradoras de recursos com a manutenção da floresta em pé – e quando eu falo floresta não é só a Amazônia, mas todos os biomas. Para isso usaremos estudos que comprovam a eficiência dos saberes dessas populações para a manutenção e o equilíbrio dos ambientes que habitam. Cada um desses planos começará a ser detalhado nas próximas semanas. Esses são os principais alinhamentos, levando em conta inclusive os planos de ação já divulgados pela ministra [do MMA].

A senhora tem um grande histórico de atividade política, sobretudo em defesa dos agroextrativistas. Como esse repertório interfere em sua atuação nesta Secretaria?

A primeira coisa que posso dizer é que eu não chego aqui sozinha, eu chego aqui povoada de muita gente. Muitas pessoas que lutaram por direitos, outras que tiveram os seus direitos violados, como também aconteceu comigo. Eu chego até aqui com esse olhar de quem vem do região do Marajó e teve a oportunidade de traçar um caminho que me levou atuar à frente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), levando adiante a missão de lutar pelas pessoas e pelos biomas, seus rios, manguezais e todas as formas de vida que coabitam esses ecossistemas, a partir do legado de Chico Mendes. Mas acho importante também dizer que a minha formação vem de base, porque meu pai e minha mãe eram  ligados aos movimentos eclesiais de base, e foi com eles que tive minha primeira experiência de participação política.  Depois eu fui estudar pedagogia me especializei em educação no campo e realizei o mestrado na área de Desenvolvimento Sustentável, na UnB. [tese com o tema  Resex Terra Grande – Pracuúba: (Re)conhecer saberes locais para a transgressão da gestão de unidade de conservação no cuidado do território de uso comum]

Como a senhora gostaria de ser apresentada nesta que é sua primeira entrevista como secretária anunciada? Quais informações de sua trajetória gostaria de destacar à frente da Secretaria dos Povos Tradicionais e do Desenvolvimento Rural Sustentável do Brasil?

Eu sou uma mulher negra da floresta, alguém que acredita na importância da megadiversidade, da pluridiversidade brasileira. Aqui não estou só, estou povoada de gente e responsabilidades. Sou filha de seu Dudu e de dona Miracélia [Dulcimar Moraes e Miracélia Moraes], sou mãe. Eu sou uma mulher que um dia ousou acreditar que um outro mundo é possível e que construiu pontes para  outros mundos, os  habitados pelos povos tradicionais, as pessoas e que têm mantido os biomas brasileiros em pé. Eu caminho simplesmente com o compromisso de fazer o meu melhor. Saindo da floresta, do Marajó, eu ousei acreditar que podia cursar um mestrado, e consegui fazer um mestrado especial com uma  pesquisa militante na UnB. Eu vivo a floresta viva, a floresta está em mim. E é por isso que se antes a gente gritava “na floresta tem gente!” do lado de fora – para dizer que as pessoas fazem parte dos biomas e merecem atenção das políticas públicas – e agora a gente vai continuar gritando, só que do lado de dentro do Ministério. 

  • Débora Pinto

    Jornalista pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, atua há vinte anos na produção e pesquisa de conteúdo colaborando e coordenando projetos digitais, em mídias impressas e na pesquisa audiovisual

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