Considerada um dos principais pilares da conservação da natureza, as áreas protegidas representam um marco no processo de desaceleração do processo de urbanização e expansão agrícola mundo afora. Protegendo regiões (quase) intocadas, essas áreas desempenham papel importante na conservação da biodiversidade, mas, ao mesmo tempo, representam mudanças na vida de povos e comunidades que nelas habitam tradicionalmente. No Pantanal, por exemplo, pesquisadores acabam de revelar que até recentemente ribeirinhos ainda se queixavam de expulsões físicas e restrições em áreas de pesca, o que demonstra que essa população ainda enfrenta dificuldade em ser vista como ator potencializador da conservação.
Essa relação entre áreas protegidas e comunidades tradicionais pantaneiras da região da Serra do Amolar – caracterizada pelos pesquisadores como “Borda Oeste do Pantanal”, uma sub-região do rio Paraguai próxima a Bolívia, que está localizada entre Cáceres (MT) e Corumbá (MS) –, foi analisada em estudo recém publicado na revista científica Ambiente e Sociedade, e que faz parte do mestrado em Conservação da Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável da ecóloga Anita Valente da Costa, pelo Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ).
A pesquisa chama a atenção para a necessidade de criação de espaços de fala e ações para que a gestão de áreas protegidas seja participativa e satisfaça de forma equilibrada os interesses de comunidades tradicionais e da biodiversidade.
Para o estudo, foram realizadas 54 entrevistas entre outubro e dezembro de 2019, tendo 35 famílias sido entrevistadas na comunidade 1, que compreende a comunidade do Paraguai Mirim e São Francisco, e 17 na comunidade 2, que compreende a comunidade da Barra do São Lourenço. Somadas, a população nesta região chega a cerca de 700 pessoas.
“Nós visitamos as famílias de barco, uma a uma. A entrevista era feita através de um questionário estruturado em que as perguntas foram formuladas nos eixos de bem-estar, já que queríamos quantificar e compreender o impacto de forma mais clara”, conta Costa a ((0))eco, que assinou o estudo junto com os seus orientadores Miraíra Noal Manfroi e Rafael Morais Chiaravalloti. Na pesquisa, foi dada prioridade aos membros mais idosos porque, para os autores, são esses normalmente os responsáveis pela família.
“Ali estão grupos de diferentes povos e comunidades tradicionais. A população da comunidade da Barra do São Lourenço, por exemplo, é essencialmente Guató. Você tem uma influência da época da abolição da escravatura, de pessoas naquela região, como um todo, não só da Barra de São Lourenço, que ficaram depois da guerra do Paraguai, dos próprios Bandeirantes”, explica André Luiz Siqueira, diretor-presidente da Ecoa (Ecologia e Ação). Segundo ele, se tratam de comunidades e povos em territórios que são tradicionais há mais de centenas de anos. Se tratando apenas dos Guatós, diz ele, são mais de 8 mil anos de ocupação existentes.
Já entre as áreas protegidas analisadas no estudo está uma área privada, ainda não inscrita como Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), que circunda a comunidade 1. Além desta, está também o Parque Nacional (Parna) do Pantanal Mato-grossense e três RPPNs, que circundam a comunidade 2. “Atualmente as áreas protegidas formam um corredor de proteção de cerca de 268.744.000 hectares, sendo 209.278.000 dentro de Unidades de Conservação e 59.475 hectares sem status legal de proteção, mas manejados de forma protegida”, diz o estudo.
O resultado das entrevistas foi dividido em quatro temas, sendo que em cada um deles foi avaliado o impacto das áreas protegidas no bem estar das comunidades. Sendo eles: território e modificações na área de uso (liberdade); mudanças residenciais (segurança); receio/medo em praticar atividades (saúde e segurança); e relação comunidades e atores do conflito (relações sociais).
A conclusão foi que tanto na comunidade 1 quanto na comunidade 2, ribeirinhos apontaram impactos relacionados à liberdade, com expulsões físicas, e à segurança, com a restrição de áreas de pesca. “Na comunidade 2 esses impactos foram significativamente mais presentes, com quase todos os moradores confirmando que tiveram que mudar suas áreas de uso ou moradia após a criação das áreas protegidas”, detalha trecho da pesquisa.
A investigação ainda chama atenção para a forma violenta das restrições de uso entre as áreas protegidas, que foi adotada principalmente na comunidade 2. Estiveram presentes na fala dos entrevistados na Barra do São Lourenço relatos de destruição de casas, expulsões forçadas, ausência de diálogo e violência física e emocional.
Para Costa, um ponto importante é que os impactos das áreas protegidas são diferentes em cada comunidade. “Mesmo que as duas comunidades compartilhem características de organização social e governança, o mesmo bioma, o mesmo modo de vida e a mesma bacia”, diz a ecóloga. O estudo enfatiza que o exemplo da Borda Oeste do Pantanal mostra que, por muitos anos, a falta de diálogo e de ferramentas participativas, levou a conflitos na região “que, até o momento da coleta de dados, tinham sido apenas parcialmente resolvidos”.
Segundo Chiaravalloti, que é professor do departamento de Antropologia da University College of London, depois de 2019, quando os dados da pesquisa foram coletados, houve mudanças positivas na relação entre as comunidades tradicionais e gestores das áreas protegidas, tanto nas RPPNs quanto no Parna do Pantanal Mato-grossense, no entanto, “os impactos identificados ainda são presentes”.
Como são mais recentes e aconteceram muito tempo depois da ocupação tradicional na Serra do Amolar, Siqueira conta que as áreas protegidas, em sua criação, não consideraram os ribeirinhos como elemento fundamental para a conservação. “Por isso que, tanto no Pantanal como em outros lugares no Brasil, e em países da América Latina, nós tivemos processos de deslocamento e expulsão de comunidades”, comenta o diretor-presidente da Ecoa, ONG que há mais de 30 anos atua pela preservação do Pantanal.
Reconhecimento de comunidades tradicionais
“O impacto negativo no bem-estar das comunidades tem relação direta de como a área foi implementada e de qual categoria ela pertence. A raiz deste conflito está no não reconhecimento das comunidades como tradicionais na implementação e gestão, e também na ausência da participação social das comunidades na gestão”, enfatiza Costa.
Cláudia Sala de Pinho, coordenadora regional da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira, que também possui uma coordenação na Comunidade da Barra do São Lourenço, defende que as comunidades tradicionais são guardiãs da biodiversidade. E isso ocorre por um motivo simples: “As comunidades conservam os seus territórios porque são a sua casa”, conta ela.
Nesse sentido, o estudo traz importantes conclusões sobre a gestão de áreas protegidas após a avaliação do bem estar das comunidades tradicionais. A primeira delas trata do próprio reconhecimento dessas comunidades, independente das particularidades de uso e gestão de recursos naturais. “O reconhecimento não só traria benefícios para o bem-estar delas como também apoiaria a conservação da região”, comenta a ecóloga.
Já o segundo ponto está relacionado à necessidade dos gestores de áreas protegidas seguirem as regras de gestão estabelecidas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação. A pesquisa cita o caso do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, que mudou sua gestão através de uma movimentação de atores locais. “Embora de caráter privado, isso também deveria ocorrer com as RPPNs”, completa o estudo.
Entre mecanismos para solucionar a ocupação ou utilização de áreas em Unidades de Conservação (UC) por comunidades tradicionais, o estudo também aponta como exemplo Termos de Compromisso “que permitem arranjos inovadores de uso de recursos”.
Outro caminho para solucionar os impactos encontrados pela investigação é a criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), que poderia ser utilizada de forma sustentável pelas comunidades tradicionais da região, comenta Chiaravalloti. “A proposta da RDS seria adjacente às RPPNs e ao Parque Nacional do Pantanal Mato Grosso. E ocuparia as partes que não estão protegidas atualmente, criando um mosaico de UCs na região”, diz ele, que atua no bioma com comunidades tradicionais e sustentabilidade.
Para a Ecoa, que complementa a afirmação do pesquisador, é necessário uma unidade jurídica que possa absorver as demandas e a aptidão de cada local. Isso, segundo a organização, para evitar mais conflitos. “Ninguém aqui está contra unidade conservação de proteção integral. A questão é que a gente tem aptidão para pensar outras estratégias de conservação, que inclui a criação de áreas para os povos e comunidades tradicionais”, defende o diretor-presidente da organização.
Por isso, o estudo recém publicado traz importantes reflexões sobre a gestão de áreas protegidas no Brasil, onde o Pantanal não é um caso isolado, acrescenta a ecóloga. “Este modelo de área protegida que não reconhece as comunidades ocorre em outras regiões do Brasil, e o mapeamento destes impactos podem ser pontos de partida importantes para discutir a gestão e a criação de novas Unidades de Conservação”, completa Costa.
Importância das áreas protegidas
De acordo com o Painel de Unidades de Conservação Brasileiras, alimentado pelo Ministério do Meio Ambiente, o Brasil tem 2,6 mil Unidades de Conservação (UCs), entre as diversas categorias existentes. Depois do Pampa, o Pantanal é o bioma menos protegido por UCs. São apenas 29 áreas protegidas que somam pouco mais de 700 mil hectares, o que corresponde a apenas 4,6% da cobertura total do bioma. Esse índice tão baixo, e que urge ser expandido, demonstra a importância das áreas de proteção para o bioma, que também é reconhecida pelas comunidades tradicionais.
“Mesmo diante de impactos no bem estar das comunidades, muitos moradores ainda enxergam a importância social, econômica e ambiental das áreas protegidas”, diz trecho da pesquisa. “Muitas também enxergam a importância das áreas protegidas para a garantia do pescado e de um ambiente equilibrado”, completa. Para os pesquisadores, essa percepção demonstra a existência de um grande espaço para o diálogo entre gestores e comunidades locais.
Nesse sentido, o estudo indica que uma gestão mais participativa permitiria uma maior proporção dos aspectos positivos, assim como o entendimento de que tanto povos culturalmente diferenciados como áreas de grande importância biológica devem ser motores de um desenvolvimento sustentável.
“Quando você olha fazendo ciência, quando se lança, pesquisa e faz ciência, você vê que povos e comunidades tradicionais manejam recursos de maneira sustentável e que muitas vezes favorecem inclusive a integridade biológica, a diversidade biológica do entorno de uma unidade, ou dentro quando é permitido”, expõe Siqueira, ao defender que é possível, a partir da ciência, constatar o papel das comunidades tradicionais na conservação da natureza.
Argumentando pela priorização da proteção de áreas ainda desprotegidas dentro do bioma, nesta semana, em análise publicada em ((o))eco, estudiosos do Pantanal expuseram argumentos que se contrapõem a decisão de aumentar UCs já consolidadas – medida do novo Governo Federal para ampliar Parna do Pantanal Mato-grossense e Estação Ecológica de Taiamã foi anunciada em 12 de dezembro deste mês, no programa “Em Pauta”, da GloboNews.
Um dos argumentos apresentados foi, justamente, a potencial “expulsão econômica” das comunidades tradicionais que vivem no entorno dessas áreas protegidas. “Estes aspectos devem ser considerados à luz da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, da Convenção n⁰ 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, e do próprio Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC)”, argumenta a análise, que, apesar de entender a urgente necessidade de expansão áreas protegidas, defende a priorização de medidas em outras regiões do bioma, baseado em trabalho já existente de identificação de Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade.
Para Pinho, é preciso reconhecer que as áreas mais conservadas do País, assim como ocorre no Pantanal, tem contribuição direta e indireta de comunidades tradicionais: “Reconhecer a ação, a proteção, o uso e manejo por comunidades tradicionais só contribuiria para conservação ainda mais efetiva dessas áreas”, conclui a coordenadora regional da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira.
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Ao parabenizar o trabalho, considero que em ato falho, não ouviu nossa organização para conhecer os inúmeros projetos em andamento com as comunidades como: Agrofloresta, energia em apoio a Energisa, Assistência para os animais domésticos, disponibilidade de Rádio Comunicagão para emergências e apoio na logística nas emergências. Existe uma presença esporádica do poder público nestas áreas e de outras organizações e nos, , estamos diariamente presente em contato e atentos aos desafios de sobreviver distante do conforto urbano. Nossas estratégia de “produção de natureza “ procuram envolver e apoiar os moradores do entorno das áreas protegidas como atores que, usando suas competências e sabedoria, são inseridos no processo de “economia criativa e segurança alimentar”. Nosso programa de turismo , tem criado oportunidades reais de geração de renda. Quero crer que a a dicotomia histórica deixou de existir e que devemos ajustar a construir um “território sustentável” de respeito e qualidade de vida
Cel Ângelo Rabelo
Instituto Homem Pantaneiro