Reportagens

Sem gestor, mais de um quarto das unidades de conservação baianas estão à deriva

Das 45 unidades de conservação do estado, 12 não possuem gestor e mais da metade não possui plano de manejo nem conselho. E há casos de servidores sozinhos responsáveis pela gestão de até três UCs

Duda Menegassi ·
29 de março de 2021 · 4 anos atrás
A APA Caminhos Ecológicos da Boa Esperança, com 230 mil hectares é uma das 12 sem gestor no estado. Foto: M. Paula Sene/CC 4.0

Ao mesmo tempo em que o governo baiano articula um programa de concessão para unidades de conservação estaduais, servidores denunciam a situação de abandono das áreas protegidas no estado. Das 45 unidades de conservação geridas pelo estado, doze estão à deriva, sem um gestor responsável para realizar as atividades básicas. Outras 29, quase dois terços, não possuem um plano de manejo – o documento pilar de toda unidade de conservação – e mais da metade não possuem um conselho gestor indicado, instrumento que garante a participação social na gestão. Os números foram divulgados em carta da Associação Pré-Sindical dos Servidores do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Ascra) publicada no último mês, na qual apontam o descaso com as áreas protegidas e os retrocessos na política ambiental do estado.

Entre as 12 unidades de conservação (UCs) sem gestor (confira a tabela abaixo) estão nove Áreas de Proteção Ambiental (APAs), um parque, uma estação ecológica e uma Área de Relevante Interesse Ecológica (ARIE). Juntas, estas áreas protegidas representam um território de cerca de 540 mil hectares, a maior parte dele (99,2%) dentro de UCs de uso sustentável, categoria que permite o uso dos recursos naturais e uma interlocução maior entre a gestão pública e a comunidade.

Em meados de março, o Instituto Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado da Bahia (Inema), órgão responsável pelas UCs estaduais, publicou a Portaria nº 22.501, onde indica os servidores responsáveis pela gestão das unidades de conservação baianas. Na lista estão apenas 33 unidades de conservação estaduais – as outras 12 denunciadas pela ausência de gestor nem aparecem – e somente 23 nomes de servidores, com quatro ocasiões em que um único nome é relacionado para gestão de três UCs.

Uma única servidora, por exemplo, é responsável pela gestão de três APAs no litoral norte da Bahia que juntas somam cerca de 365 mil hectares. No outro extremo da costa baiana, uma servidora sozinha é a gestora de outras três APAs, uma delas no cordão de proteção do arquipélago e parque nacional de Abrolhos, num território total que soma mais de 370 mil hectares de áreas terrestres e marítimas, distribuídas ao longo de quase 300 quilômetros do litoral baiano.

Nem mesmo as áreas na mira do governo para concessão de serviços à iniciativa privada estão livres do sucateamento. A parceria do estado com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) estuda a concessão dos parques estaduais da Serra do Conduru e das Sete Passagens. Ambos os parques possuem gestores designados, de acordo com a portaria do Inema, mas no caso do Parque Estadual das Sete Passagens, o gestor em questão está encarregado de outras duas UCs, o Parque Estadual Morro do Chapéu e o Monumento Natural Cachoeira do Ferro Doido. Juntas, as áreas equivalem a aproximadamente 50 mil hectares. Os parques estão a cerca de 150 quilômetros um do outro, e o monumento natural está entre os dois.

De acordo com o quadro de servidores disponibilizado no portal do instituto, o Inema possui um total de 283 servidores, sendo 245 com atuação na área de meio ambiente e recursos hídricos (203 especialistas e 42 técnicos). A relação de servidores por unidade de conservação, entretanto, não está disponível.

Área de Proteção Ambiental (APA) Costa de Itacaré/Serra Grande. Foto: Mario Pereira/WikiParques

De acordo com uma fonte do Inema ouvida por ((o))eco, que preferiu não se identificar, os gestores “multifuncionais” são comuns. “Porque eles não se dedicam somente à gestão da UC, eles fazem atividades de licenciamento e fiscalização. E mesmo as que têm [um gestor], estão enfrentando esse problema, porque o gestor não consegue se dedicar exclusivamente à unidade. E a precariedade é tanto na parte de recursos humanos, quanto na parte de recursos financeiros e até na parte gerencial dessas unidades”, conta.

((o))eco procurou o Inema para esclarecer quantos servidores de fato atuam nas unidades de conservação, qual o orçamento previsto para o instituto e para as UCs em 2021 e para se posicionar sobre a falta de gestores e a atual situação das áreas protegidas do estado. A assessoria de imprensa do instituto confirmou o recebimento da demanda, enviada por e-mail na última terça-feira (23), e mesmo com insistência por telefone sobre a importância das respostas do instituto, não retornou até a publicação desta matéria, quase uma semana depois do primeiro contato.

De acordo com a carta aberta da Ascra, publicada em fevereiro de 2021, a gestão das 45 unidades de conservação estaduais não consegue prosperar “pela inexistência de uma visão institucional estratégica para as áreas especialmente protegidas, levando a uma atuação mal planejada, desintegrada e sem diretrizes claras. Desta forma, perpetua-se uma gestão de unidades de conservação no Estado que produz resultados insuficientes para a efetiva conservação e proteção do meio ambiente e para o fortalecimento do Sistema Estadual de Unidades de Conservação”.

“Com isso, muitas dessas UCs não estão cumprindo os objetivos de sua criação dentro de um estado com uma imensa biodiversidade, possuidor de quatro Biomas – Mata Atlântica, Caatinga, Cerrado e Costeiro/Marinho”, acrescenta.

Além da falta de servidores, outro grande gargalo para a efetiva implementação das unidades de conservação são os planos de manejo, documento que constituem o pilar da gestão, com zoneamento, regras e diretrizes. Das 45 UCs baianas, 29 não possuem o plano, com seis delas em processo de elaboração e outras cinco na fila para começarem o processo.

Em julho de 2019, uma mudança estrutural travou todos os processos: a atribuição pela elaboração dos planos de manejo saiu das mãos do Inema e foi para a Secretaria de Meio Ambiente (Sema). “Ou seja, o órgão executor da gestão não atua na elaboração do principal instrumento de gestão da unidade. Nós [servidores] fomos terminantemente contra essa mudança”, ressalta um servidor ao ((o))eco. O Decreto nº 19.129/2019 também passou para a Sema a responsabilidade pela criação de UCs e extinguiu a Diretoria de Unidades de Conservação da estrutura do Inema, pasta que foi reduzida a uma coordenação.

O servidor ouvido por ((o))eco aponta ainda que a reestruturação paralisou os processos de planos de manejo por mais de um ano. “Voltou a caminhar de fato no final do ano passado para o início desse. Ficou um ano tudo parado enquanto a Sema e o Inema se ajustavam ao novo modelo. E ainda está uma coisa nebulosa sobre como vai funcionar”, alerta.

Outro ponto destacado na carta da Ascra é a ausência de Conselho Gestor em 24 unidades de conservação. Os conselhos são instrumentos de participação social que acompanham a gestão da UC e atuam para compatibilizar os interesses dos diversos segmentos da sociedade com a unidade, além de serem espaços democráticos onde os conselheiros podem se manifestar sobre intervenções dentro da área protegida ou propor diretrizes e ações. Sem este colegiado, a interlocução entre a sociedade e a área protegida é esvaziada e perde a transparência.

“Além da carência de material humano e dos dois instrumentos essenciais de gestão (Plano de Manejo e Conselho Gestor), há também grandes limitações de infraestrutura com exemplos de UC que não possuem sede, nem veículos disponíveis, criando enormes dificuldades para a efetiva gestão dessas áreas especialmente protegidas. Ademais, algumas dessas UCs estão há anos sem nenhum gestor, sem infraestrutura e com instrumentos de gestão defasados ou inexistentes, ou seja, abandonadas”, aponta a carta dos servidores.

Para além da precariedade das unidades de conservação do estado, os servidores alertam também, desde 2016, para o colapso do Sistema Estadual do Meio Ambiente (SISEMA) e Sistema Estadual de Recursos Hídricos (SEGREH), “em decorrência das constantes alterações da legislação, com transferências de atribuições entre a Sema e o Inema, sem os instrumentos normativos complementares, contribuindo para a falta de interação institucional entre os servidores na realização das suas atribuições. Esse conjunto de fatores dificulta a operacionalização da política e leva ao enfraquecimento do SISEMA, uma vez que as alterações nefastas são realizadas sem ampla discussão entre todos os órgãos do Sistema, e sem acompanhamento do seu impacto na qualidade ambiental e das águas no Estado. A ausência de capacidade de gestão administrativa e a falta de compreensão das políticas públicas de meio ambiente e recursos hídricos, de forma integral, aliada à ausência de planejamento estratégico e avaliação de resultados tem contribuído para baixa execução das políticas e para a desmotivação e adoecimento dos servidores do Sistema”.

A rica biodiversidade da Bahia pode ser vítima de processos de licenciamento ambiental cada vez menos exigentes depois das mudanças na legislação. Foto: Rui Rezende/Inema

Flexibilização da legislação ambiental

A carta dos servidores baianos denuncia outro cenário preocupante: a flexibilização do licenciamento ambiental no estado. As mudanças não são de hoje. Em 2012, o então governador da Bahia, Jaques Wagner (PT-BA), publicou o Decreto nº 14.024, que instituiu a Política de Meio Ambiente e de Proteção à Biodiversidade e estabeleceu as diretrizes do licenciamento; e dois anos depois, um segundo decreto (nº 15.682/2014), que trouxe novas regras. O resultado dos dois decretos foi a criação de modalidades simplificadas de licença e a mudança nos critérios de porte e potencial poluidor considerados para definir o rito de licenciamento ao qual os empreendimentos estarão submetidos.

A principal – e mais polêmica – novidade foi a criação da Licença Ambiental por Adesão e Compromisso, a LAC. Esta categoria, na prática um processo auto declaratório de licença, seria concedida às atividades ou empreendimentos de baixo e médio potencial poluidor em que “se conheçam previamente seus impactos ambientais ou se conheçam com detalhamento suficiente as características de uma dada região e seja possível estabelecer os requisitos de instalação e funcionamento de atividades ou empreendimentos, sem necessidade de novos estudos”.

“Houve uma flexibilização muito grande do licenciamento na Bahia nos últimos anos, mesmo em empreendimentos dentro de unidades de conservação. São poucos os processos de licenciamento ambiental onde a gente [gestão da unidade de conservação] tem esse poder de anuência. Na maior parte, a pessoa dá ciência, através de um documento da diretoria com as informações básicas sobre o processo, as coordenadas… Só isso”, explica um servidor do Inema que prefere não se identificar. “O que a Bahia fez, estão querendo passar pro Brasil todo com esses projetos de mudanças no licenciamento ambiental”, alerta.

Atualmente, a LAC está sendo julgada através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5014) em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF).

Em 2016, outro decreto estadual – hoje anulado pela Justiça Federal – aumentou ainda mais a flexibilização para obtenção de licença de atividades agrossilvipastoris, que passavam a contar com um “procedimento especial” que se limitava à realização de um cadastro online, sem necessidade de estudo ambiental ou mesmo vistoria prévia, independentemente do porte, natureza ou localização do empreendimento.

A medida está suspensa por decisão judicial desde novembro de 2020, depois de processo movido conjuntamente pelo Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA). Com isso, a Justiça determinou ao Inema que volte a realizar o licenciamento ambiental das atividades agrossilvipastoris no estado, com multa de R$100 mil para cada caso de negativa constatado.

“Esta Associação já se manifestou contrária a algumas dessas modalidades autorizativas, como a Autorização por Procedimento Especial (APE) para as atividades agrossilvopastoris e a Licença por Adesão e Compromisso (LAC) para postos de combustível, estações rádio-base e transportadoras de produtos perigosos, tendo em vista que são procedimentos meramente cadastrais e auto-declaratórios, sem qualquer análise técnica de impactos ambientais, e tendo como agravante a ausência de instrumento de controle ou participação social. Já denunciamos a necessidade de transparência nos dados de fiscalização das LAC. E apesar de estarem sendo questionadas judicialmente, e da Justiça Federal ter suspendido a APE, não há até o momento nenhum documento oficial do Inema que oriente a retomada do licenciamento ambiental padrão para os empreendimentos agrossilvopastoris e/ou qualquer discussão institucional técnica sobre a LAC”, descreve o texto da Ascra.

A carta aberta da Ascra destaca ainda que as mudanças legislativas sobre a classificação dos empreendimentos transformaram os Estudos de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) e as audiências públicas em exceção e não regra; e que “alguns empreendimentos pequenos ficam isentos do licenciamento, mesmo que possam causar impactos significativos em ambientes complexos”.

“Além da ausência de implementação de outros instrumentos de consulta, além das audiências públicas, as comunidades têm denunciado sistematicamente a dificuldade de acesso à informação e falta de transparência no monitoramento de passivos ambientais e cumprimento de condicionantes pelos empreendimentos licenciados pelo Estado”.

Os servidores apontam ainda o aumento de conflitos socioambientais no estado em resposta às mudanças legislativas. De acordo com levantamento feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), o número de conflitos cresceu 1.022% em nove anos. Em 2011, ano em que o Instituto do Meio Ambiente e o Instituto de Gestão de Águas e Climas foram extintos para dar lugar ao atual Inema, que centralizou os assuntos anteriormente tocados individualmente pelos dois institutos, foram registrados apenas 9 conflitos. Em 2019, foram 101.

E no ano seguinte à publicação do decreto que criou o procedimento especial de licenciamento para atividades agrossilvopastoris, o número de conflitos mais que dobrou e saltou de 24 em 2016 para 56 em 2017.

Sem contratação para UCs à vista

Em fevereiro de 2021, o governo da Bahia abriu edital de um processo seletivo simplificado (Reda), para contratação temporária de profissionais. Na área ambiental, os servidores ouvidos por ((o))eco reclamam que na área ambiental o foco é apenas o licenciamento, mesmo com o cenário de abandono nas UCs. “Ao passo em que se caminha com um, o licenciamento, aparelhando e contratando novos Redas, se destitui a figura do gestor de UC para que as demandas das Unidades sejam respondidas através de processos respondidos por qualquer técnico nas Unidades Regionais. Todas as vagas [do edital] são direcionadas para o licenciamento, sendo que a gestão de UC está precisando muito. Liberar licenças ambientais é a prioridade do Inema”, lamenta um servidor.

Uma das perguntas enviadas ao Inema por ((o))eco era sobre a perspectiva de contratação e concurso para vagas nas unidades de conservação do estado, mas como mencionado anteriormente, não recebemos nenhuma resposta do instituto.

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  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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Comentários 2

  1. Patricia Grinberg diz:

    Bom dia, sou Antonio Ormundo (Toni) residente na APA, un dos fundadores do 'conselhos gestor' da APA Santo Antonio Santa Cruz Cabrália e Belmonte, desde do levantamento do ZEE Zoneamento Ecológico Econômico, poderiam me informar o nome do do gestor d'esta APA?


  2. Dal Bezerra diz:

    Uma pena!
    A Bahia com tanta riqueza Ambiental ser relegafa, caso teor desse documento proceda.