Com o início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), os olhos dos ativistas anti energia nuclear voltaram-se para Brasília, especialmente para os Ministérios de Minas e Energia, do Meio Ambiente e o próprio Palácio do Planalto. Caberá ao Poder Executivo a decisão sobre a implantação de uma usina nuclear em Itacuruba, no sertão pernambucano.
Especialistas em geração de energia e povos tradicionais que vivem na área prevista para a instalação da usina pedem que o debate sobre o empreendimento seja democratizado. O Senado Federal chegou a realizar uma audiência pública para tratar do projeto em 2021.
Há três semanas, um representante da Articulação Antinuclear Brasileira (AAB) publicou artigo direcionado à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. O texto cobrava uma postura de Marina sobre os projetos de novas usinas nucleares.
“O que se constata é a ignorância da maioria da população em relação ao tema energia nuclear. Além da escandalosa falta de transparência nas decisões governamentais. Informações falsas difundidas, análises equivocadas e tendenciosas sobre a geração elétrica a partir da energia nuclear, acabam gerando “ruído”, incompreensões, dúvidas dos reais riscos de tornarmos uma nação nuclearizada, militarizada, colaborando com a proliferação nuclear.(…) Espero que a senhora, junto ao Presidente da República, e o ministro de Minas e Energia, promovam um amplo debate democrático, sincero, transparente, focado nos interesses do povo brasileiro sobre a continuidade do Programa Nuclear Brasileiro. Em seus discursos o presidente Lula tem afirmado, e repetido, que vai democratizar os processos decisórios, com maior participação popular. O tema energético e suas consequências socioambientais não devem ser excluídos do debate democrático.”, diz trecho do artigo, publicado pelo membro da ABB, e professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Heitor Scalambrini.
O pesquisador foi uma das poucas vozes que tentou alertar sobre os caminhos que a gestão da energia nuclear tomou durante a gestão de Jair Bolsonaro (2019-2022), quando lobistas defensores da tecnologia nuclear promoveram campanhas pró usinas nucleares, se valendo da desinformação e falta de transparência.
Um dos resultados desse intenso lobby foi o avanço do projeto da Usina Nuclear de Itacuruba, em Pernambuco, esquecido desde 2011. Em 2021, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, a pedido de Bolsonaro, ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6897) contra um artigo da Constituição do Estado de Pernambuco que veda a instalação de usinas nucleares no território estadual antes que todas as opções de fontes renováveis sejam exploradas.
Apesar da mudança de governo, especialistas temem que a pressão pró nuclear persista. Segundo Heitor Scalambrini, há um temor de que o novo ministro da pasta, Alexandre da Silveira, já considerado pela imprensa como um “grande patrocinador da mineração”, seja favorável também ao projeto em Itacuruba.
“Agora, a gente quer pegar o Lula pela palavra. Ele tem dito repetidas vezes em seus pronunciamentos que haverá uma abertura para a participação popular nas decisões, como era antes. Então, o que estamos pleiteando imediatamente é que as decisões da política energética e a questão das usinas nucleares sejam amplamente discutidas na sociedade, de forma transparente”, afirma o pesquisador.
Um dos pontos mais tensos sobre o projeto nuclear no litoral do Nordeste foi a decisão do STF. No fim de 2021, Rosa Weber, vice-presidente da Corte, julgou procedente o pedido de Aras para se declarar a inconstitucionalidade do art. 216 da Constituição do Estado de Pernambuco. Desde então, tornou-se possível que a proposta avance.
Outro ponto de atenção é que os planos da Usina Nuclear de Itacuruba nasceram na gestão de petistas. Foi à época de Dilma Rousseff na presidência da República que foi publicada a escolha da localidade de Itacuruba pela equipe técnica e por integrantes da Eletronuclear, em 2013. Antes disso, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva já tinha determinado, em 2008, a preferência pelo Nordeste para os próximos empreendimentos nucleares.
Impactos no rio São Francisco
O projeto da Usina Nuclear de Itacuruba, em Pernambuco, prevê a instalação de seis reatores nucleares no leito do rio São Francisco, no Sítio Belém de São Francisco, área rural de Itacuruba, região do Semiárido. O custo total da construção é de R$ 30 bilhões e a capacidade energética do empreendimento é de 6.600 megawatts, o triplo de Angra III.
Para que este projeto funcione, o rio São Francisco precisa de uma vazão segura de, no mínimo, 250 m³, segundo o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), João Suassuna. Atualmente, devido a vários problemas de assoreamento oriundos das atividades hidrelétricas desenvolvidas em seu leito, a vazão do São Francisco oscila bastante. Com isso, não é possível garantir uma vazão média segura.
O resfriamento dos reatores podem elevar a temperatura da água em até 2° C, o que inviabilizaria a sobrevivência dos peixes que vivem no local. Desta forma, seria inviável também que povos indígenas da região garantam a sua sobrevivência, pois a pesca é a principal fonte de alimentos dessas comunidades.
Esse é o caso das trezentas famílias da etnia indígena Pankará, que vivem na aldeia Serrote, a 4 km do local previsto para a implementação da usina nuclear. A implantação da usina tornaria inviável a pesca e o uso do rio por parte desta comunidade. A cacica da aldeia, Lucélia Pankará, afirma que ficou sabendo do projeto em 2012. Neste período, o povo Pankará retomava o território após duas décadas vivendo na área urbana, após serem removidos devido a construção da barragem de Itaparica, nos anos 1980.
Um projeto de Morte
Segundo Lucélia, para a surpresa do seu povo, “descobriu-se que [o projeto da] Eletronuclear já estava bem adiantado, já havia sido feito estudo, escolhido o local”. Então, o seu povo, conta ela, aliou a mobilização pela regulamentação do território junto à Fundação Nacional do Índio (Funai), com a luta contra a implementação da usina. A cacique considera a usina um “projeto de morte, porque atenta contra à vida nativa indígena”.
“Como nós ficaremos se vierem a instalar um projeto como esse? Tomando água e se alimentando [de peixes] de água vinda de reatores para que ele não possa superaquecer? Essas águas vão passar e não vão voltar numa temperatura que o rio está acostumado, nossos peixes vão morrer. A nossa bandeira de luta foi e sempre será a defesa do território sagrado contra esse projeto de morte”, crava a liderança.
A adoção de medidas de segurança pode minimizar os riscos de um acidente nuclear, mas não pode evitá-los completamente. O que já ficou provado nos casos de Chernobyl, na Ucrânia, e Fukushima, no Japão.
“Com um acidente, o derramamento de material radioativo no rio São Francisco é uma tragédia de proporções gigantescas, que atingiria cinco estados, mais de 20 milhões de pessoas”, explica Heitor Scalambrini.
O projeto prevê que o descarte do resíduo da usina seja realizado na reserva Raso da Catarina, localizada na margem direita do rio São Francisco, ou seja, no lado oposto ao local previsto para o posicionamento dos reatores, já no estado da Bahia.
A reserva ecológica do Raso da Catarina, uma estação ecológica, é dividida entre reserva biológica e a indígena, com extensão de 6.400 km², recoberta de vegetação do tipo caatinga. Localizada entre o rio São Francisco e o rio Vaza-Barris, na região mais seca do estado da Bahia. A reserva está a 60 km de Paulo Afonso, em lugar de difícil acesso. A região foi palco da Guerra de Canudos e, devido à dificuldade de acesso, era esconderijo de cangaceiros. O nome Catarina é uma homenagem a uma antiga moradora e líder local. O nome raso deriva do relevo em forma de tabuleiro, que é recortado por ravina e cânions.
O Raso da Catarina abriga uma grande diversidade de fauna e flora. Ao receber lixo atômico, que leva incontáveis anos para se desintegrar, o espaço seria completamente devastado.
Como o debate sobre a usina foi parar em DF
Em Pernambuco, o debate sobre a Usina Nuclear de Itacuruba teve início em 2019 com a apresentação do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 09/2019, de autoria do deputado Estadual Coronel Alberto Feitosa (PSC), um dos líderes bolsonaristas em Pernambuco.
O projeto em questão previa a alteração do artigo 216 da Constituição pernambucana, que proíbe a instalação de energia nuclear antes que sejam esgotadas todas as fontes de energia. “Fala-se que essa ideia de colocar um artigo na Constituição foi do governador Miguel Arraes, que era contrário à energia nuclear”, pontua o pesquisador Heitor Scalambrini.
O texto da PEC propunha a seguinte redação: “O Estado fomentará projetos e atividades de geração de energia de fontes renováveis, que se mostrem eficazes e economicamente competitivos, priorizando o equilíbrio socioambiental, mediante concessão de incentivos fiscais e financeiros.”
Em meio a tramitação, travaram-se debates em audiências públicas e foram feitas diversas mobilizações no estado contrárias ao empreendimento. “Começamos a luta [questionando] o porquê de instalar essa usina na calada da noite, sem uma discussão ampla. Não houve transparência no processo”, explica Scalambrini.
Entusiasta da energia nuclear, Bolsonaro acionou o Procurador Augusto Aras, que moveu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra o Artigo 216 da Constituição Pernambucana. Na justificativa da ADI, acatada pelo STF, se afirma que; “constituem monopólio da União a pesquisa, a lavra, enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados”.
A medida reverbera em outros estados que também trazem artigos restritivos à produção de energia nuclear.
O lobby da energia nuclear no Brasil
O caminho de quem é contra à produção de energia nuclear no Brasil será longo. A inserção da energia nuclear no Plano Nacional de Energia 2050, prevê a implantação de 8 a 10 mil megawatts de potência, o que demanda a implementação de seis usinas nucleares. Do lado de lá da queda de braço, está o lobby pró nuclearização do Brasil.
Nesta ponta da disputa estão os grandes players que devem comercializar equipamentos para o setor, empresas de engenharia, responsáveis por desenvolverem projetos, a academia, que deve potencializar as pesquisas no ramo e militares, que em grande parte são favoráveis à energia nuclear.
Até então, o lobby vem se saindo bem, classifica Heitor. “Tradicionalmente o debate sobre energia elétrica no Brasil é antidemocrático, fica restrito ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que conta com apenas dez representantes do estado”, pondera. Para equilibrar essa conta democraticamente, o grupo contra a nuclearização do Brasil cobra a criação de um Conselho Nacional de Energia.
“Através [desse conselho] vamos discutir a questão da energia nuclear, que não pode ficar na mão dos PHDs, dos burocratas. A nuclearização do país é uma questão que tem implicações políticas, sociais, econômicas e geopolíticas. É uma questão que não pode ficar só entre os pesquisadores e a sociedade é que paga a conta”, arremata o pesquisador.
Procurado, o Ministério de Minas e Energia (MME) esclarece ao ((o))eco que, atualmente, existe um grupo técnico (GT) no âmbito do Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro (CDPNB) que avalia as diretrizes para determinação de possíveis sítios nucleares, considerando os múltiplos aspectos envolvidos nessa avaliação. Não foi respondido diretamente se o projeto irá ou não prosseguir.
Representantes dos Ministério do Meio Ambiente foram contatados pelo ((o))eco sobre o projeto da usina nuclear, mas não responderam. O espaço segue aberto.
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A jornalista omitiu informações que recebeu do Ministério de Minas e Energia.