Após quase dez anos da assinatura dos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) que tentavam impedir os frigoríficos do Pará de comprar carne advinda do desmatamento da Amazônia, foram divulgadas as primeiras auditorias com números sobre o acordo. Os dados, divulgados nesta sexta-feira (9/3), em Belém, decepcionaram os que esperavam punições a empresas que agiram de forma irregular.
De acordo com o procurador da República Daniel Azeredo, que desde 2009 está à frente dos TACs da Carne no Pará, o Ministério Público Federal (MPF), ao menos por enquanto, não aplicará as sanções previstas no acordo. Nos casos mais críticos, serão enviados ofícios ao Ibama solicitando que os frigoríficos sejam fiscalizados.
A decisão do MPF livra 17 empresas que compraram juntas, com indícios de irregularidade, mais de 434 mil cabeças de gado. Desse total, estima-se que mais de 117 mil animais eram provenientes de fazendas onde houve desmatamento ilegal.
Sobre o futuro, Azeredo faz duas considerações. “Me preocupa mais o que as auditorias não mostram do que o que as auditorias mostram”, afirmou o procurador. Para ele, é preciso concentrar esforços nos frigoríficos que não apresentaram auditorias ou não firmaram o TAC e que podem ter agido dessa forma para tentar ocultar aquisições ilícitas.
Além disso, segundo ele, a partir das justificativas apresentadas pelos frigoríficos nas auditorias, seria possível concluir que, em muitos casos, não houve má-fé por parte das empresas. Como exemplos, estariam imprecisões dos sistemas de geomonitoramento, que levariam ao bloqueio de fazendas cujas localidades vizinhas realizaram o desmatamento.
Durante o evento de divulgação das auditorias, Azeredo afirmou que o MPF não fez “juízo de valor” sobre as justificativas apresentadas. “Nossa ideia é deixar essa valoração para o mercado, para a imprensa, para a sociedade civil”, disse. O procurador não indicou uma autoridade que vá fazer essa análise.
No topo da lista
As companhias foram incumbidas de responder a 12 perguntas. As mais importantes eram relacionadas à quantidade de gado adquirido no ano de 2016, com e sem evidências de irregularidades. Dentre os desvios monitorados, estão a aquisição de bois de fazendas com desmatamento, embargadas pelo Ibama, sobrepostas a terras indígenas ou constantes da lista do trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego.
No total, 25 companhias responderam as auditorias, entre frigoríficos e curtumes. E os resultados foram díspares. Em relação ao número absoluto de cabeças de gado irregulares, a empresa com a pior performance foi a JBS. A companhia comprou 118,4 mil cabeças de gado com evidências de irregularidades em 2016. O montante corresponde a 19% do total adquirido no período. Desse total, mais de 85 mil animais vieram de fazendas que desmataram entre julho de 2008 e outubro de 2009. Outros 13,9 mil foram comprados de fazendas sem Cadastro Ambiental Rural (CAR), documento obrigatório para fazendas que vendem bois a frigoríficos signatários do TAC.
Sobre o assunto, o diretor de sustentabilidade da companhia, Márcio Nappo, afirmou que a JBS foi prejudicada pela falta de detalhamento dos critérios de análise e por divergências nos bancos de dados públicos. Além disso, salientou que buscou uma empresa de auditoria internacional com experiência, que optou por uma visão “conservadora” no caso de dúvidas nos dados.
Os resultados ruins, porém, não foram regra entre as grandes companhias do setor. A Minerva, cuja unidade paraense adquiriu 181 mil cabeças de gado em 2016, teve apenas 0,1% de suas compras com indícios de irregularidades.
Gradações de danos
Com o resultado das auditorias em mãos, o MPF optou por dividir as empresas em quatro grupos: 1- companhias que assinaram o TAC, fizeram auditorias e tiveram até 30% de irregularidades; 2- empresas com TAC, auditoria e irregularidades acima de 30%; 3- companhias com ou sem TAC que não fizeram auditoria e; 4- empresas sem relevância para o mercado.
No primeiro grupo, segundo Azeredo, estão as empresas que conquistaram resultados satisfatórios. Como retribuição, no próximo ano, elas poderão fazer auditorias por amostragem, o que significa, na prática, uma redução de custos em relação a 2017.
O MPF enviou um ofício às companhias afirmando que elas se fazem parte “de um seleto rol de pessoas jurídicas”, para as quais “o resultado da auditoria é satisfatório e demonstra uma evolução”.
O segundo grupo, que agrupa pelo menos seis companhias, terá que fazer a próxima auditoria completa, como a realizada no ano passado. Será necessário repassar ao MPF a relação de todas as operações realizadas no período auditado.
Apesar de o MPF ter divulgado o ranking de classificação das empresas que entregaram a auditoria não é possível precisar quantas companhias se encontram nesse grupo. Isso porque a lista conta com unidades de grandes empresas, que na somatória de seus números pode não ter entrado nessa categoria, e frigoríficos sem TAC.
Às empresas do terceiro grupo será reservado o tratamento mais rígido. Azeredo prometeu o envio de informações ao Ibama, junto a um pedido de fiscalização. De acordo com o procurador, 16 empresas entraram nessa categoria.
Por fim, as companhias do quarto grupo não serão fiscalizadas ou punidas, já que não são representativas para o setor.
A divisão permite que a JBS, por exemplo, não seja penalizada pelos mais de 100 mil bois adquiridos com indícios de irregularidades. Em termos percentuais, entretanto, a companhia está longe das piores colocadas, já que a auditoria descortinou frigoríficos que em 2016 compraram mais de 50% do gado de fazendas supostamente irregulares.
É o caso do Frig Altamira, que, segundo os documentos, adquiriu 72% de suas cabeças de gado com irregularidades. Da mesma forma, 69% das cabeças de gado adquiridas pelo frigorífico Aliança tiveram origem irregular.
Falhas do TAC
A escolha do percentual de 30% pelo MPF desagradou alguns presentes na reunião. Tanto entidades que atuam com a questão do desmatamento quanto frigoríficos bem colocados no ranking se incomodaram – os primeiros por considerarem o patamar permissivo e os segundos por não sentirem que seus esforços e custos com controle foram recompensados.
“Nós acreditamos que esse é um processo evolutivo. Entendemos que para a primeira auditoria deveria ser dada uma tolerância. Mas 30% de irregularidade é muita coisa. Todo mundo sabe o que tem que ser feito. O que precisa fazer é nivelar as plataformas de monitoramento para que isso não seja utilizado como desculpa”, afirmou Carlo Zanetti Caruccio, representante do frigorífico Rio Maria.
Dentre os presentes, porém, havia um consenso de que, apesar dos resultados das auditorias, os TACs são ferramentas importantes. “Eu creio que o processo está avançando. É o que há de melhor em termos de comando e controle da pecuária brasileira”, afirmou Kemel Amin Kalif, da ONG National Wildlife Federation.
“No próximo ano, se houver o mesmo nível de inconformidade pelas empresas, eu acredito que as sanções virão. Nesse momento concordo com a atitude do MPF de deixar isso como um alerta”, concluiu Kalif.
Além das discussões sobre a opção do MPF de “passar a bola” para o Ibama e o fato de ter sido escolhido o patamar de 30%, existem questionamentos relacionados às punições previstas no TAC. Os acordos preveem “multa de cinco reais por hectare da fazenda fornecedora cuja aquisição tenha sido realizada sem a observância dos termos” do TAC.
De acordo com cálculos do instituto de pesquisa Imazon, levando em consideração as especificidades do setor pecuarista no Estado, a multa por descumprimento do TAC representaria aproximadamente 6,3% do lucro dos frigoríficos.
O próprio Azeredo admitiu que os TACs têm falhas a ser sanadas. Ele citou como exemplo a falta de controle das fazendas intermediárias, localidades que compõem a cadeia de criação do gado, mas não vendem diretamente aos frigoríficos. Sobre elas, não há controle previsto no TAC e, muitas vezes, o último elo da cadeia não consegue saber se houve desmatamento.
Outro exemplo é a triangulação para “lavagem de gado”, ou seja, o repasse do animal advindo de uma fazenda desmatada para uma fazenda regular. Segundo Azeredo, que prometeu atenção a situações como essas, é possível identificar a fraude a partir do cruzamento entre o número de bois e o tamanho da fazenda. Se a quantidade de gado ultrapassar a capacidade produtiva do local, isso indica a lavagem.
Por fim, o procurador reconheceu que as limitações do poder público dificultam o cumprimento do TAC pelos frigoríficos. Um exemplo é a falta de vinculação entre o CAR e a Guia de Transporte Animal (GTA), o que impede a rastreabilidade dos bois. “São deficiências que atrapalham a melhor performance da iniciativa privada”, concluiu.
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