A toninha (Pontoporia blainvillei) é um animal antigo. Pesquisadores estimam que tenha mais ou menos um milhão de anos de existência. Apesar de existirem outras espécies dentro do grupo de mamíferos e cetáceos com essas características, as toninhas se destacam por serem um verdadeiro fóssil vivo. Hoje, entretanto, ela é considerada o golfinho mais ameaçado de extinção no Atlântico Sul e corre risco de não sobreviver ao Antropoceno.
A toninha pertence à ordem dos cetáceos, grupo das baleias e golfinhos. Com cerca de 1,5 metros de comprimento – ou seja, menor que a estatura média de uma pessoa adulta – é considerado um dos menores cetáceos do mundo. Em cada região, a toninha recebe um nome diferente: boto-garrafa, boto-cachimbo, golfinho-franciscana e até golfinho do Rio da Prata, nas regiões no Uruguai e na Argentina.
Endêmica da América do Sul, a toninha ocorre desde o Espírito Santo até a costa Norte da Argentina. No Brasil, sua ocorrência não é contínua ao longo da costa. Existem duas “lacunas” na sua distribuição, uma entre o Espírito Santo e o Rio de Janeiro e outra entre o Rio de Janeiro e São Paulo. De acordo com Karen Lucchini, bióloga que atua no ICMBio com foco na pesquisa em comportamento e ecologia das toninhas, “as justificativas para a existência desses hiatos são as condições ambientais locais, como profundidade, temperatura e turbidez da água”.
O parente vivo mais próximo da toninha é o famoso boto-cor-de-rosa (Inia geoffrensis) da Amazônia. Apesar de pertencerem a famílias diferentes, ambas as espécies são evolutivamente próximas por terem tido origem de um ancestral comum que habitava ambientes de rios. De acordo com a bióloga Marta Cremer, as duas famílias, Pontoporiidae e Iniidae, se diferenciaram evolutivamente durante o Mioceno, há cerca de 12 milhões de anos.
Tanto a toninha quanto o boto-cor-de-rosa foram animais que se originaram em ambientes costeiros e a milhares de anos atrás adentraram a Bacia Amazônica. Ao longo de todo o processo de formação das bacias hidrográficas, a toninha foi a única espécie que ficou no ambiente marinho, mas estritamente na zona costeira. Isso provavelmente tem a ver com a sua morfologia. “Como se trata de um animal pequeno, naturalmente a gente imagina que ele tenha mais restrições em fazer mergulhos mais profundos”, afirma Cremer.
Por se alimentar na coluna d’água, regiões costeiras se tornam mais propícias para a espécie. Além de ser um animal pequeno, com boca e rosto pequenos, ela tende a se alimentar também de espécies de peixes menores, que por sua vez têm uma frequência e concentração maior nas zonas costeiras.
As toninhas são animais “tímidos” e não costumam dar as caras, inclusive sendo apelidado de “golfinho invisível” por não ter o hábito de saltar para respirar com a mesma frequência que outros golfinhos. Marta Cremer, coordenadora do projeto Toninhas do Brasil, afirma: “é uma espécie que, além de ser pequena, tem um comportamento muito discreto, o que torna muito difícil a observação dela na natureza. Então qualquer mar um pouquinho mais mexido já dificulta, já limita bastante a detecção da espécie no mar”.
O uso da expressão “golfinho invisível” alerta sobre um antagonismo. Ao mesmo tempo que a espécie é a mais próxima dos humanos, por estar na área costeira, a maioria das pessoas não conhece, nunca viu ou ouviu falar na toninha. Muito disso se deve justamente ao comportamento discreto da espécie, como salienta Cremer.
Essa timidez torna árduo o trabalho de coletar informações para estudos, apesar disso, dentre os estudos realizados, já foi possível estimar algumas informações como a idade média dos animais, que gira em torno de 20 anos, com máxima registrada de 28. Apesar de parecer uma expectativa alta, elas são consideradas uma das espécies de cetáceos com menor o ciclo de vida.
Estimar a idade desses animais é semelhante com a medição de idade das árvores, que quando tem o tronco cortado revela seus anéis de crescimento, que indicam os anos de vida. Com os golfinhos, é possível ver a idade fazendo cortes finos nos dentes que depois são analisados em microscópio.
Monogamia, maturidade sexual e alimentação
A toninha costuma ser um animal monogâmico, diferente das outras espécies de golfinhos. Isso significa que elas permanecem pelo menos uma estação reprodutiva com o mesmo parceiro. Além disso, sua gestação dura cerca de 11 meses e as fêmeas costumam ter apenas um filhote por gestação, evento que ocorre a cada um ou dois anos. De acordo com Cremer, há algumas exceções. “Em princípio se estima que é um filhote a cada dois anos, e em raros casos um filhote por ano, mas é mais raro”.
A maturidade sexual do animal costuma ocorrer entre 2 a 5 anos de idade. Somada a demora na gestação, com a pequena quantidade de filhotes por vez, o crescimento da população encontra desafios, o que torna a espécie ainda mais vulnerável.
Os filhotes das toninhas nascem com aproximadamente 80 centímetros e permanecem sob cuidados maternos por cerca de 9 meses. Durante seu desmame, quando estão iniciando a alimentação sólida, costumam se alimentar de camarões.
Depois da fase juvenil, as toninhas se alimentam de uma diversidade relativamente grande de lulas e peixes. De acordo com Marta, “é uma espécie que é considerada de certa forma oportunista”. Isso porque ela vai se alimentar das presas mais abundantes dependendo do ambiente onde ela está.
Efeitos da extinção e principais ameaças
Uma possível extinção das toninhas colocaria toda uma biodiversidade em jogo, principalmente na zona costeira. Esses golfinhos têm um papel relevante na manutenção da qualidade dos estoques pesqueiros. Além disso, serve de alimento para tubarões e seu desaparecimento resultaria num desequilíbrio na cadeia alimentar. Ou seja, com o declínio das toninhas, outras espécies entram em declínio também.
Outro risco associado a uma possível extinção da toninha envolve possíveis parasitas. “Qualquer organismo na natureza tem o seu ecossistema interno, tem seus parasitas, com os quais ele convive, os seus micro-organismos, bactérias… Na medida em que esses organismos não têm mais seu hospedeiro na abundância normal, eles podem afetar outros organismos”, salienta Marta.
As ameaças estão relacionadas ao hábito costeiro do animal, que torna ela mais exposta às atividades humanas, desde a questão da qualidade da água, pesca e a poluição. Por esse motivo, o golfinho é chamado de “Sentinela dos Ambientes Costeiros”.
Dos problemas crônicos que afetam a espécie a longo prazo os principais são: a poluição sonora, pois o ruído de motores, principalmente, faz com que a espécie desocupe locais e perca habitat; e a bioacumulação, na qual animal concentra compostos químicos no organismo, geralmente metais pesados, como o mercúrio e cobre, que a longo prazo pode afetar o sistema imunológico, neurológico e hormonal, deixando a espécie propensa a desenvolver doenças. Outro problema é também a superexploração dos recursos pesqueiros, que diminui a disponibilidade de alimentos para os animais.
No curto prazo, o problema maior são as capturas incidentais de redes de emalhe, usadas tanto na pesca artesanal quanto na industrial, na qual os animais se prendem e morrem asfixiados, pois como são mamíferos precisam do ar atmosférico para sobreviver. Lucchini explica que, essa captura acidental, denominada “bycatch“, tem seus primeiros registros já na década de 1960 e permanece uma ameaça nos dias de hoje.
Esses problemas afetam a vida não só da toninha, mas de diferentes espécies, e se diferenciam em grau e intensidade dependendo do local. O cenário no Rio Grande do Sul, por exemplo, é totalmente diferente do cenário de São Paulo. Esse é um dos motivos pelo qual as FMAS (Franciscana Management Area) foram desenvolvidas – o nome é uma referência ao nome dado à toninha em países de língua espanhola e inglesa.
Karen Lucchini, do ICMBio, explica que a divisão de distribuição de áreas foi pensada como uma maneira de conservar a espécie, facilitando a tomada de decisões e considerando diferentes realidades de cada região para um manejo apropriado. Inicialmente as áreas foram divididas em quatro de acordo com parâmetros genéticos, morfológicos, de distribuição, populacionais e características sociais locais.
Assim, as FMAs foram divididas em: I (ES e RJ), II (SP, PR e SC), III (RS e Uruguai) e IV (Argentina). Mas, atualmente, com estudos recentes e mais amostras, as FMAs foram redivididas em subunidades e seguem em debate, na tentativa de delimitar as áreas de forma adequada.
Projeto Toninhas do Brasil
São inúmeros os trabalhos realizados para conservar a espécie. Um dos principais projetos do país, que atua há mais de duas décadas, é o Projeto Toninhas do Brasil, da Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), coordenado por Marta Jussara Cremer.
O projeto se dedica a estudar as toninhas residentes da Baía Babitonga, localizada em Santa Catarina. Uma das descobertas dos pesquisadores, depois de anos de estudo, é que as toninhas da Babitonga são extremamente residentes, sem muito fluxo de saída, com a vida restrita ao local. Essa Baía foi considerada a menor área de vida de um golfinho no mundo
Atualmente a instituição tem trabalhado em um projeto piloto com ferramentas acústicas. O aparelho, chamado Pinger, é colocado nas redes e dispara sons, em frequências aleatórias, para alertar os golfinhos e manter eles afastados das redes de pesca. O trabalho inclui ainda o monitoramento com foto-identificação, avaliação de distribuição e abundância, abordagens com animais mortos e análise de parâmetros biológicos e ecológicos.
Além dos esforços realizados com os alarmes, o projeto vem procurando outras alternativas para defender as toninhas da captura acidental. Uma das medidas que vem sendo discutida é a substituição das redes de malha em algumas comunidades, com a substituição por outros instrumentos, de acordo com a realidade socioeconômica e ambiental de cada região.
O projeto também tem como foco do trabalho a divulgação científica, através de canal no YouTube, materiais educativos, documentários, vídeos e livros. De acordo com a coordenadora do projeto, Marta Cremer, “a gente vem dedicando muito esforço nisso e num primeiro momento, sempre teve esse foco na popularização da espécie, porque quando a gente começou, há mais de vinte anos atrás, ninguém nem sabia o que que era uma toninha”.
Ela afirma que mesmo na Babitonga, que é um ambiente pequeno e tem uma população residente, as pessoas desconheciam sobre as toninhas.
O projeto focou na ampla divulgação junto a um trabalho mais local, no entorno da Babitonga, com exposições itinerantes, espaço de visitação, palestras e foco em educação, sensibilização e comunicação.
Avanços e perdas
Quando questionada sobre a longa jornada de mais de duas décadas trabalhando com toninhas e o que mudou desde o início da jornada até os dias atuais, a pesquisadora relembra: “A gente teve um crescimento muito grande nos grupos de pesquisa ao longo do litoral. Quando eu comecei praticamente não tinha muitas oportunidades, não tinha muitas formas de trabalhar”.
A pesquisadora acrescenta que houve um grande avanço em relação ao número de pessoas envolvidas e um espaço maior para se falar e divulgar sobre o assunto. Quando começou, ainda sem redes sociais, o trabalho de divulgação era ainda mais difícil. “Não estou sozinha, tem um monte de gente aí que está querendo ajudar, querendo fazer as coisas e isso é muito bacana”, completa.
Apesar disso, outros problemas afloraram, trazendo à tona grandes desafios. “Infelizmente a questão do ordenamento pesqueiro, eu tenho a sensação que ela caminhou no sentido inverso. Anos atrás a gente tinha muito mais espaço de discussão do ordenamento pesqueiro, que era feito pelos centros de pesquisa do então IBAMA, mas esses espaços foram se desconstruindo ao longo do tempo, então isso realmente é um grande desafio”, afirma Cremer.
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