Reportagens

Um ilustre desconhecido da fauna brasileira

Cercado de mitos, pouco se sabe ainda sobre os louva-a-deus no Brasil, país abriga cerca de 10% de todas as espécies do inseto no mundo

Jéssica Martins ·
1 de dezembro de 2022 · 1 anos atrás

Quando se pensa em um louva-a-deus, é normal pensar em um inseto estranho, com aparência humanóide, que habita lugares distantes e é um predador voraz. Diferente desse imaginário, a maior diversidade de espécies de louva-a-deus está justamente no Brasil. E eles são, de fato, predadores com ótima capacidade de se camuflar, um talento importante para emboscar presas desavisadas e se esconder dos seus próprios predadores. Estes ilustres desconhecidos da fauna brasileira estão envoltos em mitos no imaginário popular e até em postagens sensacionalistas na internet.

Em todo o mundo, a ciência já conhece cerca de 2.500 espécies de louva-a-deus e 250 delas, o equivalente a 10%, estão no Brasil. Essa diversidade, entretanto, é ainda maior, pelo menos 300 a 500 espécies, aposta o biólogo Léo Lanna, coordenador do projeto Mantis, que há 8 anos se dedica a pesquisar, fotografar e divulgar estes insetos. 

“Os louva-a-deus têm sido muito uma ponte entre o conhecimento do universo dos insetos e a aproximação da natureza, pra gente poder falar de conservação dos insetos que estão num declínio global e da importância deles”, conta Léo. O nome do projeto vem justamente de Mantodea, a ordem dos louva-a-deus, palavra que em grego significa “aparência de profeta” (mantis = profeta; eidos = aparência). 

Esse trabalho de produção e disseminação de conhecimento sobre os louva-a-deus desenvolvido pelo projeto Mantis ajuda a desvendar vários mitos que circundam o animal. Um desses boatos é o de que a fêmea se alimenta da cabeça do macho durante o acasalamento. “Aqui no Brasil a gente não sabe de casos cientificamente registrados [desse comportamento]. A gente ouve alguns boatos de pessoas que criam e falam sobre, mas até hoje nada que eu tenha visto que realmente acontece”, esclarece Léo.

O Brasil abriga cerca de 10% das espécies conhecidas de louva-a-deus no mundo. Foto: Projeto Mantis/Divulgação.

Até o momento, as informações levantadas pelos pesquisadores, indicam que esse fenômeno, no mundo todo, é uma grande exceção à regra e os poucos casos registrados estão associados a ambientes frios. Nesses lugares, a fêmea costuma colocar a ooteca (um tipo de “caixinha” que serve para proteger os ovos dos Mantis) para se preparar pro inverno severo. Antes mesmo da estação chegar, a oferta de alimento é reduzida, então para garantir que a procriação funcione e os ovos sejam saudáveis para sobreviver ao inverno, o próprio macho serve como alimento após a cópula.

De acordo com Léo, em ambientes tropicais como o Brasil, “têm abundância de alimento o ano inteiro e um ambiente muito mais estável e diverso, comida não falta”. Por isso, até hoje o processo é desconhecido para todas as espécies brasileiras e “provavelmente não ocorre”, sentencia o biólogo.

O coordenador do projeto Mantis acrescenta ainda que esse senso comum sobre o grupo de louva-a-deus é reflexo de uma ciência que costuma importar conhecimento daquilo que até então é desconhecido. Ou seja, apesar de em regiões tropicais, que é onde existe o maior número desses insetos, essa história ser praticamente um mito, prevaleceu o que a ciência conhecia inicialmente sobre o comportamento destes animais em ambientes frios dos países onde já haviam sido melhor estudados.

Outro mito sobre este grupo de insetos está nas redes. São os vídeos com milhões de visualizações no YouTube sobre o “assassino” louva-a deus, que come passarinhos, lagartos e até mesmo cobras. Acontece que a maior parte desses vídeos são sensacionalistas, explica o coordenador do projeto Mantis. O louva-a-deus até pode agarrar um bicho maior que ele, porque ele é um predador que reage por movimento, mas esse não é o alimento normal desses insetos.

O louva-a-deus não possui veneno, nem “picam”, eles matam suas presas as capturando com suas patas dianteiras, que funcionam como serrotes difíceis de escapar.  

Na natureza não há nenhum registro de um deles se alimentando de lagartos ou cobras. Já a predação de passarinhos foi documentada no mundo inteiro. Algumas espécies de louva-a-deus têm 15 centímetros e encontram passarinhos de 3 a 4 centímetros, o que facilita esse tipo de evento ocorrer. 

Camuflagem e Mimetismo

O louva-a-deus é conhecido pela sua habilidade de passar despercebido pelos ambientes através de uma excelente camuflagem. Alguns bichos mudam de cor conforme eles crescem e/ou de acordo com o ambiente. Um caso curioso é de uma espécie do gênero Stagmatoptera, popularmente conhecido como Gandhi.

A excelente camuflagem do louva-a-deus é uma das principais características destes insetos. Foto: Projeto Mantis/Divulgação

“Eles nascem pretos para imitar formigas e conforme eles vão crescendo podem ter uma gama de cores gigantescas, podem continuar sendo pretos até quase adultos. Só que os adultos sempre vão ser da mesma cor, as fêmeas podem ser amarelas ou verdes e os machos sempre vão ser verdes”, conta o biólogo especialista em insetos César Favacho.  Ainda é desconhecido o motivo dessas variações. 

Além disso, os louva-a-deus possuem outra habilidade: o mimetismo. Diferente da camuflagem onde o bicho se mistura ao ambiente, esta é a capacidade de imitar outros animais com o intuito de afastar predadores. No caso do louva-a-deus, algumas espécies imitam bichos diferentes durante o crescimento, mas geralmente nascem imitando formigas. Favacho afirma ter encontrado em campo algumas poucas exceções de animais que parecem imitar percevejos predadores.

Visão do louva-a-deus

A visão desse animal é um aspecto interessante dos louva-a-deus. Ao todo, ele possui cinco olhos, assim como muitos insetos. São dois olhos grandes, chamados de olho composto, que possuem várias lentes formando uma única imagem. Além desses, possuem três olhos simples na região da testa. Eles são responsáveis por perceber a nuance entre luz e sombra que ajuda o animal a se guiar e essa ferramenta é essencial para os machos, porque alguns voam para ir atrás da fêmea acasalar.

Devido essa habilidade, que permite que eles enxerguem muito bem, estão sendo feitas ainda mais pesquisas. Em um artigo publicado na Nature, pesquisadores demonstram que esses insetos enxergam em três dimensões como os humanos, só que de uma forma diferente. Enquanto humanos têm mais facilidade de enxergar imagens paradas, com maior noção de profundidade,  o louva-a-deus tem mais facilidade em enxergar imagens quando estão se movimentando.

Falta de dados e conservação

Quando se fala sobre conservação dessas inúmeras espécies da carismática ordem Mantodea, existe uma barreira, o déficit de informação sobre o grupo.  Segundo Léo, “certamente têm espécies ameaçadas, só é um estudo muito difícil porque não têm muitos dados”.

A diversidade desses animais é tão grande que algumas espécies poderiam ter distribuição restrita, sendo endêmicos de algumas regiões. Levando em conta o cenário ambiental do país, onde grandes áreas já foram devastadas, principalmente na Mata Atlântica, as chances de espécies nunca conhecidas terem sido extintas são altas. 

Para ser classificada como uma espécie ameaçada é necessário atender a critérios e ter informações básicas: onde ocorre, se é endêmico ou não, o tamanho da população, a quantidade de filhotes por ciclo reprodutivo, entre outros. 

O divulgador científico César Favacho aponta alguns possíveis motivos  para essa dificuldade. Além da expectativa de vida da maioria das espécies ser de apenas um ano, o que dificulta o monitoramento, a boa camuflagem afeta no levantamento dos dados, além de existir uma distribuição desse animal na parte de dossel das árvores, um local de acesso complexo para os pesquisadores.

No momento atual, as pesquisas ainda estão focadas em descrever os animais encontrados. Quando esses dados forem suficientes, talvez já seja tarde para algumas espécies.

Macrofotografia

Veja imagens impressionantes e surpreendentes, feitas pelo biólogo Leo Lanna e o designer Lvcas Fiat:

  • Jéssica Martins

    Estudante de Ciências Biológicas, estagiária em ((o))eco, apaixonada pela natureza e comunicação.

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