Há duas semanas, ((o))eco noticiou a destruição de um geoglifo no sul do Acre. O incidente repercutiu no Brasil inteiro e, para muitos, representou o primeiro contato com a palavra e o conceito “geoglifo”. Para entender o real valor desse sítio arqueológico é preciso voltar algumas casas, ou melhor, alguns milhares de anos para explicar o que se sabe sobre eles: onde estão, qual a história que eles contam e porque devemos preservá-los – e não aterrá-los para plantar milho ou soja –; e quais são as ameaças e desafios para protegê-los, já que até hoje apenas um deles foi oficialmente tombado como patrimônio histórico e cultural.
A história contemporânea desses geoglifos começou em 1977, quando uma expedição liderada pelo arqueólogo Ondemar Ferreira Dias, do Instituto de Arqueologia Brasileira, foi ao Acre em busca de cerâmicas e se deparou com as valas, que naquela época ainda não eram reconhecidas como geoglifos. “Se verificou no campo que havia algo como um círculo, umas muretas, mas nesse período o professor Ondemar estava na missão de colher cerâmicas e aquilo passou um pouco batido”, conta o paleontólogo Alceu Ranzi, naquela época estudante da Universidade Federal do Acre e que foi convidado para acompanhar a expedição.
O paleontólogo, especialista nesses geoglifos da Amazônia, explica que nesse primeiro contato os sítios foram vistos apenas do chão, então não chamaram tanta atenção. Isso mudou quando o próprio, em viagens de avião em 1986 e 1999, sobrevoou a região e viu pela janelinha o que ninguém tinha percebido até então: aquelas valas formavam desenhos incríveis. “Quando eu fui para literatura eu vi que não tinha nada, ninguém tinha visto ou percebido a grandiosidade que era olhar de cima”, conta. Em 2000, o pesquisador conseguiu convencer o governo do Acre a ceder um avião e acompanhado de um fotógrafo profissional, documentou todos os sítios que encontrou.
Com o avanço da tecnologia de imagem de satélite, que se popularizou com a criação do Google Earth, lançado em 2001, ficou mais fácil e barato encontrar esses sítios arqueológicos. Atualmente, já se conhecem aproximadamente 800 geoglifos. O Acre concentra a maior parte deles, cerca de 500, localizados principalmente ao sul do estado. Rondônia, Amazonas e Mato Grosso contabilizam outros 300 geoglifos, que também ocorrem do outro lado da fronteira, na Bolívia.
O mistério e o fascínio
“A descoberta dos geoglifos deixou todos muito intrigados. Porque aquilo [o sul do Acre] era uma área periférica, não era a Civilização Marajó [povo pré-colombiano que habitava a Ilha Marajó, no Pará], não era a Cultura Santarém [povos que habitavam o interior do Pará], não eram os incas, que estão ali perto. Aquilo era considerada uma zona periférica, onde os índios só passavam, caçavam e seguiam, e nós vimos que era gente que morava ali, que ficou mais de mil anos ali, morando e fazendo seus desenhos fantásticos”, descreve Alceu.
Quem exatamente eram esses povos pré-colombianos e qual era a ritualidade por detrás desses desenhos ainda são perguntas a serem respondidas nas escavações e pesquisas. “Até agora foram pesquisados algo como 15 a 20 [geoglifos], que foram escavados”, conta o paleontólogo. A estimativa dos cientistas é que eles começaram a ser feitos entre 2 mil e 2.500 anos atrás.
“Enquanto Pitágoras estava fazendo seu teorema, essas pessoas estavam fazendo geometria no Acre. Isso para mim é fantástico! Só de você imaginar algo com 200 metros de diâmetro no meio do nada, círculos perfeitos, quadrados, octógonos, hexágonos, um conjunto, um círculo dentro do quadrado”, vibra o paleontólogo.
O entendimento atual dos especialistas é de que esses eram locais de rituais e cerimônias. Ao se debruçar sobre os geoglifos, os pesquisadores perceberam que existe uma uniformidade no que diz respeito à amplitude e profundidade das valetas, assim como da altura e das medidas dos lados das figuras. “O que nos indica que havia uma ideia muito clara na cabeça daqueles antigos engenheiros sobre as maneiras corretas de se construírem esses gigantescos espaços de sociabilidade”, escreve a arqueóloga Denise Schaan, na obra “Geoglifos – Paisagens da Amazônia Ocidental” (2010), na qual é uma das autoras. A arqueóloga, uma das maiores especialistas nos sítios, faleceu em 2018.
“Os sítios que temos encontrado são em sua maioria circulares e retangulares, mas outras formas também ocorrem, como elipses, hexágonos, octógonos, figuras em “U” e em “D”. Além disso, ocorrem figuras associadas, ligadas por estradas de cerca de 20 m de largura e comprimentos que chegam a 800 metros, também muradas, assim como montículos circulares e lineares, formando conjuntos complexos. Em alguns conjuntos se percebem diferentes episódios de construção, que indicam que em épocas distintas as estruturas foram reformadas, e que novas estruturas foram construídas sobre as primeiras”, continua no texto a arqueóloga brasileira.
O mistério sobre os geoglifos e as civilizações que os construíram aumenta pelo fim repentino deles. De acordo com Alceu, cerca de 300 anos antes da chegada de Cabral e sua esquadra, os índios deixaram de fazer esses monumentos. “Não se sabe por quê. Se foram tomados por outros grupos, se houve guerra, se houve doença, alguma coisa aconteceu, mais ou menos por 1.200-1.300 que eles pararam de fazer e construir. Mas aquelas terras sempre foram cheias de índios. Até hoje, as reservas estão lá, os índios estão lá. E eles têm nas suas memórias, nos seus desenhos e nas suas pinturas, na sua memória ancestral, eles têm os geoglifos”, explica o Alceu Ranzi.
Turismo e valorização
Atualmente, a atividade turística no entorno dos geoglifos amazônicos ainda é pequena, mas já existe uma indústria capacitada para o sobrevoo e até mesmo uma empresa de balonismo que faz passeio de balão com um roteiro pensado para ver os sítios e que, inclusive, já decola de dentro de um deles.
“Se você chegar no Acre e dizer ‘quero ver geoglifos’, tem avião, têm pilotos que sabem onde te levar. As agências de viagem do Acre vendem geoglifo”, confirma Alceu, que compara a situação com a das Linhas de Nazca, no Peru, um atrativo já consolidado e que também é formado por desenhos visíveis apenas de cima. As Linhas são reconhecidas mundialmente como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, um título que o paleontólogo acredita que pode alavancar o turismo na região. “O Brasil indicou os geoglifos do Acre para UNESCO para serem reconhecidos como Patrimônio da Humanidade. Se eles entrarem nessa lista, as pessoas irão visitar. Aí precisa de guia de campo, guia bilíngue, hotel, avião, balão, agência de viagens. Há um potencial muito grande de crescimento nisso”.
A Secretaria de Turismo do Estado do Acre tem o plano de construir uma torre para as pessoas que estiverem vindo pela rodovia entre Rio Branco e Xapuri – onde viveu e morreu Chico Mendes e um destino turístico forte no estado. “A rodovia cortou vários geoglifos ao meio, então se você colocar uma torre, lá de cima você vai ver”, conta o paleontólogo. “E obviamente que o proprietário deveria ganhar um pouco, tem que ver esse mecanismo, para ver como os donos da terra poderiam se beneficiar disso”, acrescenta.
A maioria dos geoglifos estão localizados dentro de propriedades particulares rurais, são fazendas, sítios, plantações e pastagens onde o desmatamento para abrir espaço para ocupação, revelou o patrimônio arqueológico acobertado pela floresta.
Uma das exceções está localizada na Terra Indígena Apurinã, habitada pelo povo Apurinã, no Amazonas, próximo à fronteira com o Acre. Os indígenas que vivem ali respeitam o geoglifo em seu território como uma memória viva dos seus ancestrais e apesar de não usarem o local para rituais, o respeitam como um lugar sagrado.
Essa relação é bem diferente no que diz respeito aos donos de fazendas onde também existem geoglifos. Muitos, conforme conta Alceu, acreditam que aquelas valas são trincheiras da Revolução Acreana (1899 – 1903) e mesmo depois da explicação do paleontólogo, a maioria prefere continuar acreditando que aqueles são vestígios da guerra e não de um povo antigo.
A educação dos proprietários com relação à importância desses sítios arqueológicos é fundamental para garantir a proteção deles e evitar que incidentes como o aterramento que causou a destruição do geoglifo na Fazenda Crixá se repitam.
“Esse incidente que aconteceu agora tem que ser superado de uma maneira positiva e proativa, que sirva como exemplo, e que a gente consiga dizer ‘olha pessoal, isso aí é importante’. Geoglifos são protegidos por lei. Mas fiscalizar todos eles é difícil, tem que fazer muita educação patrimonial, tem que convencer os donos da terra de que aquilo é importante, aquilo vai ficar pros filhos deles. Isso é educação. [Precisamos] produzir cartilhas com bons desenhos, boas explicações numa linguagem acessível e não científica. É um desafio muito grande pro Iphan”, comenta o pesquisador.
“São povos ancestrais do Brasil e nós temos que valorizar esses povos. Eles tinham línguas próprias, tinham visões diferentes, traços diferentes, e viveram aqui por milhares de anos, tinham seu valor e deixaram suas expressões, não só com geoglifos, deixaram expressões na comida, nos costumes como o uso da rede. Nós temos que colocar isso na História do Brasil. O Brasil não começou em 1500”, ressalta Alceu.
O legado desses índios ancestrais inclui até a própria formação da Floresta Amazônica como a conhecemos hoje, com a disseminação de árvores como a castanheira e plantas como a mandioca. “A mata, que pensávamos ser floresta virgem, tem se revelado, na verdade, como zelosa guardiã da pré-história do Acre”, declara o paleontólogo.
Tombamento dos geoglifos
Apesar de toda a monumentalidade e de remontar a um Brasil que ainda pouco conhecemos, apenas um dos cerca de 800 geoglifos amazônicos foi tombado pelo Iphan como patrimônio histórico e cultural do país. Localizado em Rio Branco, no Acre, o Sítio Arqueológico Jacó Sá, tombado em 2018, reuniu fatores como acessibilidade, integridade, beleza, pesquisa e um proprietário aberto e interessado no reconhecimento do local.
O sítio é composto por dois geoglifos, mas até o momento apenas um deles foi tombado: a figura forma um quadrado e um círculo concêntrico em seu interior. O desenho ocupa cerca de 20 mil metros quadrados e as valas têm largura média de 11 metros e profundidade de 2,5 metros. Entre 2007 e 2008, o lugar foi mapeado, escavado e estudado por especialistas.
“Esse é o [geoglifo] mais estudado, um dos primeiros que foram bem fotografados, é de lá que decola o balão [que faz o passeio turístico para mostrar os geoglifos], está na margem do asfalto, na beira da rodovia, a 50 km de Rio Branco, então relativamente perto. Foi escavado, estudado, tem dados de datação, ele preencheu todos os requisitos. E o proprietário é receptivo. Como é que eu vou tombar um geoglifo se o cara não abre a porteira para eu ir conhecer? Tem que ter a autorização do proprietário. E fazê-lo ganhar alguma coisa com isso através do turismo – porque ele vai cuidar, vai receber bem”, opina o paleontólogo.
Em 2012, o Ministério Público Federal do Acre ordenou que os outros geoglifos existentes no estado fossem tombados pelo Iphan. A ação foi assinada pelo procurador da República Anselmo Henrique Cordeiro Lopes, que escreveu que “denúncias por parte de pesquisadores dão conta que nos últimos anos tem havido destruição parcial de vários sítios no estado do Acre, sendo tal fato imputado, na ação à inércia do Iphan, que já deveria ter concluído os estudos para o tombamento dos geoglifos”. O procurador acrescenta que o próprio Iphan reconhece a necessidade do tombamento desde 2008.
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Povo brasileiro gosta de viajar p exterior para visitar lugares que pensa que só encontra lá fora. Aqui temos mtas coisas que não são conhecidas por nós, por falta de divulgação e apoio dos governos brasileiro. Uma pena! Perdemos em patrimônio histórico e turismo que gera renda boa em outros países.