Um grupo internacional de cientistas, sob os auspícios da Unesco, lançou nesta semana em Paris um projeto ousado para salvar a memória das geleiras de montanhas do mundo inteiro. Eles percorrerão os glaciares mais vulneráveis ao aquecimento global, como os dos Alpes e dos Andes tropicais, coletando amostras de gelo que preservam informações sobre o clima da Terra no passado. Essas amostras serão estocadas numa caverna artificial na Antártida, e preservadas para as gerações futuras.
A próxima expedição do projeto, batizado Ice Memory, já tem data e local para acontecer: será em junho, no monte Illimani, nos arredores de La Paz, Bolívia. E terá envolvimento de cientistas brasileiros.
Eles farão uma penosa subida até o glaciar do pico andino, a 6.000 metros de altitude, carregando nas costas as partes de uma broca elétrica, que será usada para perfurar os 140 metros de espessura do gelo e coletar dois cilindros de 10 centímetros de diâmetro. Um deles será mandado para a Antártida, para ser conservado a -54oC, na estação polar ítalo-francesa Concordia. O outro será analisado quimicamente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e outras instituições da França, da Rússia e dos EUA.
O trabalho é arriscado, tanto pelas dificuldades da ascensão com o equipamento – é impossível chegar ao alto do Illimani de helicóptero – quanto pelas condições de trabalho em alta montanha, onde cientistas já passaram mal devido à altitude em uma expedição da UFRGS em 1999.
O sacrifício é compensado pelo baú de tesouros de informações que o gelo glacial traz em si: os cilindros, conhecidos como testemunhos de gelo, guardam o registro preciso de como era o clima da Terra no passado.
Estudando-os, é possível saber exatamente qual era a composição da atmosfera séculos e milênios atrás, com precisão anual: afinal, uma geleira é formada pela lenta deposição e compactação de camadas de neve do inverno.
As geleiras de montanha guardam, ainda, dados preciosos sobre a variação do clima local. No caso das montanhas da Bolívia, por exemplo, todo o histórico de grandes queimadas na Amazônia nos últimos 18 mil anos está preservado no gelo.
Só que o aquecimento global está erodindo essa memória.
“Embora o Donald Trump não acredite, essas geleiras estão sofrendo grande derretimento no verão”, disse ao OC o glaciologista Jefferson Simões, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera, um dos líderes do projeto. O derretimento causa amnésia nas geleiras: a água da superfície penetra até camadas de gelo mais no fundo, bagunçando a ordem cronológica perfeita de camadas de neve, eliminando as bolhas de ar que aprisionam a atmosfera do passado tornando o gelo imprestável para análises.
“Estamos perdendo esses registros”, afirmou Simões.
Algumas geleiras estão ficando inutilizadas para a ciência. Essas são as sortudas. As azaradas estão simplesmente desaparecendo ou já desapareceram, como a do monte Kilimanjaro, na Tanzânia, e a do monte Chacaltaya, vizinho do Illimani. Os cientistas estimam que ao longo deste século não reste mais nenhuma geleira abaixo de 3.500 metros de altitude nos Alpes e abaixo de 5.000 m nos Andes, caso o aquecimento da Terra siga o curso que o atual presidente americano e seu gabinete de lobistas do petróleo desejam que siga.
O Ice Memory já coletou, no ano passado, testemunhos da geleira Col du Dôme, no Mont Blanc, ponto culminante da Europa. Em 2020, será construída a caverna artificial para abrigar as amostras de todo o projeto, que conta com equipes de 11 países (França, Suíça, Itália, Brasil, Suécia, Japão, Bolívia, EUA, Rússia, Alemanha e China). Será o primeiro santuário de amostras de gelo do mundo, numa região, o leste antártico, que por enquanto está a salvo dos impactos da mudança do clima.
Republicado do Observatório do Clima através de parceria de conteúdo. |
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