Astrônomos-astrólogos babilônios batizaram de escorpião uma das principais constelações e seu signo associado e um dos primeiros governantes do Egito o adotou como símbolo (os filmes sobre essa figura histórica, no entanto, tem zero de fidelidade histórica). Apesar disso, os escorpiões são vistos como criaturas com uma aura negativa, o que é visível toda vez que aparecem em um filme (na maioria entre B e Z) ou são mencionados por textos religiosos.
Isso resulta de alguns escorpiões, da mesma forma que cockers spaniels, vinho químico, aulas de filosofia e futebol (coisas amplamente apreciadas) ocasionalmente ferirem e mesmo matarem pessoas. Infelizmente, essa aura deu uma imagem negativa a bichos que são espetaculares.
Primos das aranhas, opiliões, amblipígeos, e outros Chelicerata, escorpiões ocorrem em todos os continentes, exceto na Antártica, e em habitats que vão da zona entre-marés a desertos, montanhas, florestas e cavernas. Sim, há escorpiões que vivem no respingo das ondas e em cavernas onde o sol não brilha. Eles parecem ausentes apenas de ecossistemas boreais como a tundra e a taiga.
“Os primeiros fósseis de escorpiões datam do Siluriano, ao redor de 430 milhões de anos atrás.”
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Os primeiros fósseis de escorpiões datam do Siluriano, ao redor de 430 milhões de anos atrás. Esses já eram criaturas terrestres com pulmões funcionais, ao contrário do que se acreditava (e apareceu em alguns documentários) até recentemente, e descendem de ancestrais marinhos. Alguns escorpiões eram os T-rex de seu tempo e Pulmonoscorpius kirktonensis, que viveu no Carbonífero, entre 346-330 milhões de anos atrás, chegava a 70 cm, enquanto Brontoscorpio anglicus, do Siluriano, devia chegar a 90 cm.
Para nós, sul-americanos que vivemos em um pedaço do antigo super-continente de Gondwana é interessante saber que o primeiro animal terrestre registrado naquela terra antiga foi justamente um escorpião, imaginativamente batizado de Gondwanascorpio, encontrado em formações de 360 milhões de anos idade na África do Sul.
Escorpiões com reprodução sexuada (a maioria) têm uma complexa dança de acasalamento (chamada de “promenade à deux“) na qual o macho guia a fêmea até um local onde possa depositar um espermatóforo que irá se encaixar no opérculo genital da fêmea. O sexo entre escorpiões é bem diferente do nosso … Escorpiões parem filhotes vivos que montam nas costas da mãe, que cuida deles até que tenham tamanho para cuidarem sozinhos da própria vida. Que pode ser longa. Há escorpiões que viveram por mais de 20 anos e estimativas de 30 anos.
“Apenas 25 das (pelo menos) 1752 espécies de escorpiões já descritas possuem veneno capaz de matar uma pessoa, e em geral o risco é bem maior para crianças.”
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Os estilos de vida dos escorpiões variam e alguns têm estruturas sociais simples, com vários indivíduos compartilhando tocas. Mas uma característica comum a todos é que, se iluminados com luz ultravioleta, esses bichos fluorescem com uma bela cor azul. Esse mecanismo parece ligado à capacidade de detectar níveis muito baixos de luz usando todo o corpo, não só os olhos. Também pode ser um souvenir evolutivo de quando eram predadores dominantes que caminhavam sob o sol e precisavam evitar os efeitos dos raios UV, como acontece com alguns corais de águas rasas.
Apenas 25 das (pelo menos) 1752 espécies de escorpiões já descritas possuem veneno capaz de matar uma pessoa, e em geral o risco é bem maior para crianças. No Brasil boa parte dos 8 mil acidentes anuais envolvem o escorpião amarelo Tityus serrulatus, um bicho que se sente à vontade vivendo associado a habitações onde baratas e outras presas são abundantes. Seu veneno neurotóxico causa dor intensa e afeta a região do cérebro que controla a respiração, levando à parada respiratória.
Tityus serrulatus têm a vantagem de ser tanto prolífica quanto partenogenética. Ou seja, têm populações formadas de fêmeas que produzem filhotes sem necessidade de fecundação por um macho ou pelo Espírito Santo. Isso permite que uma escorpião apenas, de carona em um caminhão de carga ou mudança, dê origem a toda uma população.
Entre o Cerrado e a Caatinga
“Quem já tentou segurá-los com uma pinça sabe que é um bicho espetacular, forte e que merece respeito. Mas também não picam sem provocação e se tratados com delicadeza podem ser manipulados sem que as partes envolvidas se machuquem.”
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O Rhopalurus agamemnon da foto pertence a uma espécie amplamente distribuída nos Cerrados de Goiás ao Tocantins, Piauí, Bahia e Pernambuco, e áreas onde este bioma encontra a Caatinga e mesmo áreas de caatinga arbórea, como o Parque Nacional da Serra da Capivara.
É um escorpião grande, chegando a 11 cm de comprimento total. Quem já tentou segurá-los com uma pinça sabe que é um bicho espetacular, forte e que merece respeito. Mas também não picam sem provocação e se tratados com delicadeza podem ser manipulados sem que as partes envolvidas se machuquem. Um detalhe interessante é o chiado que produzem quando perturbados, avisando que não estão a fim de intimidades.
Apesar do tamanho, que permite matar e destroçar presas grandes em relação a seu porte, o R. agamemnon (que é xará do mítico rei micênico que lutou em Troia, ganhou a guerra depois de anos fora de casa e foi morto pela esposa e seu amante quando voltou) não é um dos escorpiões que oferece risco de vida. E sabemos muito, muito pouco sobre sua ecologia e biologia.
Reuber Brandão, meu amigo colunista de ((o))eco, certa vez teve um contato imediato de terceiro grau (ou quarto, já que houve hmm, contato íntimo) com um R. agamemnon durante trabalho de campo feito em Goiás. Como biólogo de verdade não perde a oportunidade de ampliar o conhecimento sobre o mundo natural, a experiência e sintomatologia foram publicadas na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
Nas palavras de Reuber “A vítima foi atingida no joelho esquerdo, enquanto trabalhava no campo. A picada foi praticamente indolor. Logo após a picada, o local atingido manifestou intenso prurido. A vítima coçou o local da picada, causando uma pequena ferida. Cerca de 20 minutos após a picada, a vítima sentiu forte formigamento em toda a perna (parestesias). Uma hora após a picada, as parestesias se irradiaram por todo o corpo, sendo mais intensas na língua e nas extremidades. Tremores pouco frequentes foram observados nas mãos, bem como uma leve dessensibilização da língua. Este quadro persistiu por 24 horas e reverteu espontaneamente. Nenhum outro sintoma foi observado, exceto um leve prurido no local atingido, que persistiu por oito dias, desaparecendo com a cicatrização”.
“Uma experiência desagradável mas, apesar do desconforto, nada que ameaça a vida.”
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Uma experiência desagradável mas, apesar do desconforto, nada que ameaça a vida. Ela lembra relatos que ouvi no Piauí de que a picada do agamemnon “trava a língua”, o que gera piadas sobre o que fazer quanto ao excesso de loquacidade de algumas pessoas.
Venenos de animais são coquetéis bioquímicos de substâncias com ações extremamente diversas e grande potencial farmacêutico. Componentes dos venenos dos escorpiões têm potencial para o tratamento de doenças auto-imunes e outras, da artrite à malária e gliomas. Não há dúvida que as 1752 espécies de escorpiões são um campo fértil para pesquisa biomédica e mostra que esses bichos são muito mais que rostinhos bonitos. São livros esperando para serem lidos.
Reuber nota, no final de seu trabalho, que “Rhopalurus agamemnon não é um bom colonizador de ambientes modificados pelo homem, ficando restrito a fragmentos de vegetação nativa. Como tantas outras espécies, o destino do agamemnon está ligado ao de seu habitat. Que, no caso do Cerrado, alegremente relegamos ao esquecimento para produzir ração para porcos na China.
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Fiz a foto deste artigo na região das Dunas do Rio São Francisco, no norte da Bahia, uma área de geomorfologia única que abriga enclaves de Cerrado e veredas de buritis ao lado de uma Caatinga peculiar. Essa região abriga uma série de espécies endêmicas, como lagartos e serpentes que “nadam” na areia e matas ciliares onde já viveram ararinhas-azuis, hoje extintas na natureza.
Parcialmente afogada pelo reservatório de Sobradinho (que teve culpa na extinção da ararinha), a importância dessa região frágil é reconhecida há décadas pelos pesquisadores, que defendem a criação de uma unidade de conservação que a proteja.
John Sawhill, que foi CEO da The Nature Conservancy, escreveu que “uma sociedade é definida não somente por aquilo que cria, mas por aquilo que se recusa a destruir”. Isso é algo que nossos desenvolvimentistas, incapazes de pensar além da próxima eleição e de seus bolsos, deveriam considerar.
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