Certa vez li um aviso fixado na parede da pia de um banheiro, que dizia “Conservar é saber usar!”. Uma frase quase sem sentido formada por quatro verbos, um sujeito inexistente e nenhum objeto direto ou indireto. Apesar de aparentemente bem intencionada do ponto de vista ambiental, também é uma forma educada de pedir para não desperdiçar água. Na verdade, eu diria que a frase é ainda o reflexo da ignorância generalizada das últimas décadas sobre o que é e para que serve conservar a natureza, afinal.
Conservar é o verbo mais usado nos discursos ambientalistas e, no entanto, pouco conjugado pelo resto da sociedade que insiste cegamente no consumismo globalizado, sem se dar conta do custo ambiental. Felizmente o ambientalismo está crescendo, denunciando abusos contra a natureza em jornais, congressos, panfletos, na arte e até nas novelas. De tal modo que hoje a maioria das pessoas aceita, talvez mais por condicionamento social e autodefesa do que por convicção, que proteger a biodiversidade agora é a poupança garantida de serviços ambientais e recursos biotecnológicos para depois. Isto é, para as “gerações futuras”, que para a maioria das pessoas é no máximo para os netos. Isto é, se eles já tiverem nascido. Senão para nossos filhos mesmo.
De qualquer modo, pouco a pouco a sociedade global vai se conscientizando sobre as questões ambientais, principalmente as associadas às mudanças climáticas que as afetam diretamente. Entretanto, o movimento de conservação marinha parece não estar ainda tecnicamente preparado para defender os oceanos. Talvez pelas razões pessoais que vou descrever a seguir.
O famoso Capítulo XVII da Agenda 211 recomenda o uso sustentável do mar e seus recursos através de várias ações governamentais e sociais, dentre elas a criação de Planos Nacionais de Unidades de Conservação Marinha, genericamente chamadas de Áreas Marinhas Protegidas (AMPs). São espaços aquáticos, geralmente costeiros, nos quais a estrutura biológica e os processos naturais que a mantém, são protegidos por lei contra qualquer tipo de impacto antrópico. Um deles é evidentemente a pesca. É a captura de um recurso público praticamente sem dono, com finalidade social, comercial e recreativa. Um bom exemplo marinho da tragédia do bem comum. Enquanto a pesca artesanal e recreativa sobrevive do pouco que ainda resta nas áreas costeiras, a pesca comercial é praticada sem manejo por empresas e indivíduos que ainda acreditam na utopia do inesgotável.
O ecossistema marinho também é vulnerável a todo tipo de poluente orgânico persistente, metais pesados oriundos da atividade industrial na zona costeira e lixo sólido não biodegradável. Somado a isso, a perda de habitats sensíveis devido a obras costeiras mal planejadas compromete ainda mais a diversidade biológica e a diversidade cênica da zona costeira, por si só um recurso inestimável, usado totalmente na contramão das vias da sustentabilidade preconizadas na Agenda 21.
Atualmente, existem cerca de 1300 AMPs ao redor do mundo que representam menos de 1% dos oceanos. Com a ameaça do colapso dos estoques pesqueiros comerciais, a Conferência Mundial para o Desenvolvimento Sustentável em 2002 e o Congresso Mundial de Parques em 2003 recomendaram a criação de um sistema mundial de AMPs e a proteção integral de no mínimo 20% dos oceanos contra a pesca predatória até o fim desse século.
Supõe-se que com a criação de AMPs pelo menos parte dos oceanos estarão protegidos desses impactos. Será? Bem, pelo menos os estudos científicos ao redor do mundo comprovam os resultados benéficos para o ecossistema marinho com a criação de AMPs, tais como recuperação gradativa dos habitats degradados, aumento rápido de populações sobre exploradas, crescimento do tamanho médio dos indivíduos das populações de peixes e invertebrados, aumento do ciclo de vida e sucesso no recrutamento larval, aumento da biodiversidade dentro e fora das AMPs etc.
No Brasil existem inúmeras unidades de conservação (UCs) terrestres ao longo da zona costeira, sobretudo na Região Sul. São 33 só em São Paulo e Paraná. Mas no espaço marinho propriamente dito, a situação é crítica e segue o mal exemplo global que tem apenas 0,6% do espaço oceânico protegido, pelo menos no papel. Aqui, as AMPs existentes têm a categoria de parques, reservas e Apas (veja as definições no SNUC), tais como Fernando de Noronha, Abrolhos, Atol das Rocas, Ilha do Arvoredo, APA dos Corais etc. Juntas somam menos que 0,4% de toda a extensão do nosso mar territorial brasileiro e zona econômica exclusiva.
No geral a conservação marinha é um tema que, infelizmente, ocupa muito pouco os foros ambientalistas nacionais, que focam mais na preservação das florestas. E com razão, afinal a destruição das florestas brasileiras é o que se enxerga. No mar também acontece o pior, mas não se enxerga por ignorância. É o resultado da falta de conteúdo programático sobre o mar no nosso ensino fundamental, como discutido no artigo anterior, Amazônia Azul…uma ova!
A causa principal para esse esforço global de conservação marinha está diretamente associada ao esgotamento dos recursos pesqueiros. Já começou errado: estão justificando a criação de AMPs devido a iminência do colapso da pesca e não ao ecossistema em si. Ou seja, o motivo parece ser mais econômico do que ético. Conservar só por que os recursos pesqueiros estão se esgotando?
É preciso tirar a questão pesqueira do centro das atenções no palco da conservação marinha. Conservar habitats específicos e seu ecossistema associado é um processo lento e complexo. Não basta criar o arcabouço legal, definir limites geográficos, criar Planos de Manejo, editar documentos, distribuir folders coloridos para turistas e mostrar suas localizações e fotos na última versão do Google Earth. É preciso muito mais do que isso.
É preciso uma mudança drástica da nossa postura em relação aos oceanos, que nunca foi visto como um bioma único, indivisível e frágil diante das mudanças globais previstas para as próximas décadas. É preciso divulgar mais e conhecer profundamente, e não apenas superficialmente, o funcionamento e o papel ambiental dos ecossistemas marinhos. Os oceanos não devem ser conservados apenas porque os estoques comerciais de peixes estão condenados a se extinguir nas próximas décadas. É muito mais importante saber que os oceanos produzem pelo menos metade do oxigênio que respiramos diariamente produzido anualmente pela fotossíntese. Saber que pelo menos metade da reflexão dos raios solares incidentes nas áreas congeladas e que ajudam a manter a temperatura média do planeta. Saber que os oceanos abastecem a indústria pesqueira cerca de 100 milhões de toneladas de alimento (44 Maracanãs cheios até o topo!!) todos os anos, mesmo às custas da sua própria degradação. Saber também que o oceano retarda o aquecimento global, absorvendo quase um terço da emissão anual de gás carbônico, principalmente pela queima dos combustíveis fósseis.
E no entanto, apesar desses serviços ambientais gratuitos, recebe em troca mais de 6 bilhões de toneladas de lixo sólido todo o ano e mais alguns bilhões de litros de água contaminada com um coquetel de poluição venenosa produzida pela atividade humana ao longo das zonas costeiras. O mar dispersa poluentes químicos com muito mais facilidade do que a atmosfera. A força da gravidade atua mais eficientemente no meio terrestre. Quando o vento para, a gravidade atrai as partículas de poluição diretamente na direção do solo, ou indiretamente através das chuvas.
A água, obviamente o “éter” do ambiente marinho, também circula constantemente pela ação dos ventos na superfície. No entanto, por ser mais densa que o ar, a água vence facilmente a força da gravidade, mantendo suspensos contaminantes sólidos e dissolvidos que podem ser transportados lateralmente por milhares de quilômetros, sem ser interrompidos por barreiras físicas. A dispersão da poluição no mar é muito maior podendo chegar a milhares de Km do ponto de origem. Apesar da distância, a contaminação de um rio na China pode chegar ao Brasil, mesmo que leve décadas. É só uma questão de tempo. Quer melhor exemplo do que o fato de encontrarem traços de DDT, usados sem controle na agricultura da década de 50, em tecidos de peixes na Antártica2. Mesmo ilhas oceânicas distantes estão na trajetória dos contaminantes, principalmente os sólidos, principalmente restos de produtos de plástico industrializados. E o que dizer dos longínquos giros anticiclônicos subtropicais, os maiores biomas do planeta, já invadidos por pedaços de plástico boiando e engasgando mamíferos, tartarugas e aves marinhas (veja detalhes no artigo “A latitude dos cavalos”).
Portanto, eu me pergunto de que adianta conservar alguns milhares de quilômetros quadrados? Proteger 1, 10, 20 ou 30% (tanto faz) do espaço oceânico é o mesmo que nada, porque é praticamente impossível proteger integralmente qualquer pedaço do oceano global devido à conectividade natural entre todos os mares. Espero estar completamente equivocado, mas receio que a política e o diálogo internacional sobre a conservação marinha sejam mais um discurso que se distancia da realidade. A comunidade ambientalista precisa ficar alerta em relação a criação dessas áreas. No rumo em que os diálogos e os acordos vão, criar 20% de AMPs significa automaticamente se conformar com os 80% restante de Áreas Marinhas Desprotegidas dos oceanos, onde tudo é permitido.
Não apenas algumas áreas, mas todo o oceano deveria ser considerado uma única AMP global. Um bioma internacional protegido por leis internacionais. Porque os oceanos são o principal alicerce do desenvolvimento histórico, cultural, socioeconômico e ambiental da sociedade humana. Se nós realmente respeitássemos o mar e quiséssemos protegê-lo, não haveria a necessidade de tapar o sol com a peneira e criar AMPs. Aproveito a oportunidade para sugerir que você veja o discurso de Sylvia Early durante a entrega do prêmio TED no site.
Bom proveito!
1 – Documento das Nações Unidas elaborado com a participação de diversos países que descreve ações governamentais e não-governamentais em busca da sustentabilidade dos recursos ambientais do planeta, dos quais dependemos e dependerão as sociedades futuras.
2 – B. R. Subramanian, Shinsuke Tanabe, Hideo Hidaka & Ryo Tatsukawa (1983). DDTs and PCB isomers and congeners in antarctic fish. Archives of Environmental Contamination and Toxicology, vol.12 (6): 621-626; Kurt Weber, & Helmut Goerke (2003). Persistent organic pollutants (POPs) in antarctic fish: levels, patterns, changes. Chemosphere, vol 53(6): 667-678.
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