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Amazônia Azul…uma ova!

Campanha oficial pela valorização do mar é justa e válida, mas peca ao emprestar nome da floresta tropical. Brasil não seria o mesmo país sem a cultura e a sócio-economia costeiras

5 de fevereiro de 2009 · 15 anos atrás
  • Frederico Brandini

    Oceanógrafo e líder Avina que participou de várias expedições do Programa Antártico Brasileiro. Trabalhou como Professor do C...

A faixa em azul intermediário delimita o mar territorial brasileiro. Imagem: Centro de Comunicação Social da Marinha.

Quem se lembra de algum capítulo de livro ou apostila de Geografia do ensino médio que desse mais detalhes sobre as características costeiras e do mar territorial? Como se formam os estuários, as lagoas costeiras ou as praias? Qual o mecanismo que provoca as marés ou as ressacas? Como se formam as ondas? Como é e qual a importância da biodiversidade marinha?

O fato é que, aqui no Brasil, nada se ensina sobre o mar durante a escola fundamental. A ignorância do papel do mar territorial em nossa sociedade pode ser comprovada pelo último exame do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), no final do ano passado: não havia nenhuma questão de História ou Geografia relacionada direta ou indiretamente ao mar. Vestibular então… nem se fala.

O resultado desse autismo generalizado da sociedade brasileira em relação ao mar perpetua a ignorância inocente dos brasileiros sobre nossa própria condição de país costeiro e sobre o que o mar representa para a nossa economia e desenvolvimento social. Gerações e gerações de brasileiros nascem, vivem e morrem sem saber absolutamente nada da importância do mar territorial e como ele pode afetar a rotina diária de cada brasileiro, mesmo daqueles que vivem no interior. Os valores histórico, cultural e sócio-econômico do mar e da zona costeira são tão óbvios que não chamam muito a atenção.

Indubitavelmente, os dois maiores biomas brasileiros são o mar e a Floresta Amazônica, nos extremos leste e oeste do território nacional, respectivamente. Juntos com o Cerrado, o Pantanal, o semiárido nordestino e a Mata Atlântica, os biomas oceânico-costeiro e amazônico suportam a maior biodiversidade do planeta. Essa heterogeneidade de habitats e as enormes biodiversidades continental e oceânica nos foram legadas por dois acordos internacionais.

O primeiro foi o Tratado de Tordesilhas, estabelecendo o limite ocidental da expansão territorial do Brasil colônia e que foram se estendendo até compor o mapa de hoje. O segundo foi a Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos do Mar, vigente desde novembro de 1994, que estabeleceu o limite oriental do mar territorial de qualquer país costeiro desde a praia até 12 milhas e, a partir daí, tem-se a Zona Econômica Exclusiva (ZEE), representada pela Plataforma Continental, até 200 milhas oceano adentro. Se a plataforma ultrapassar esse limite, a Convenção admite no máximo de 350 milhas de ZEE. Ambos o mar territorial e a ZEE formam a área do mar jurisdicional do país.

Desde o ensino médio, a área continental brasileira é de aproximadamente 8,5 milhões de quilômetros quadrados (Km2). E temos cerca de 3,5 milhões de Km2 de área oceânica, podendo chegar a 4,5 milhões de Km2 considerando uma área adicional requerida às Nações Unidas como ZEE ao redor das ilhas oceânicas e do remoto Arquipélago de São Pedro e São Paulo, na região marinha do Nordeste, logo acima do Equador. Ou seja, se as Nações Unidas forem benevolentes com os argumentos da diplomacia brasileira em relação aos nossos direitos no Atlântico, o mar brasileiro poderá corresponder a mais de 50% da área continental!

Trata-se de uma área enorme e cheia de recursos importantes do ponto de vista socioeconômico, fundamental para a estabilidade dinâmica do clima e qualidade ambiental da costa brasileira.

“(…) é lastimável, para não dizer um ato de desespero, ter que emprestar o nome da Amazônia ao mar, um bioma tão magnífico e rico em biodiversidade e recursos econômicos quanto a própria.”

Recentemente, a Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM) lançou (com a melhor das intenções) uma campanha publicitária de valorização dessa imensa região oceânica, chamando-a de “Amazônia Azul”. E a própria Amazônia está sendo chamada pelo mais novo pleonasmo da língua portuguesa: Amazônia Verde! As razões são óbvias e justas. Visam trazer um pouco do foco nacional sobre a importância e as riquezas do mar brasileiro. Fazer com que o mar seja mais discutido e cuidado quanto aos problemas ambientais e que haja mais recursos no orçamento para pesquisa e desenvolvimento de políticas públicas de uso, gestão compartilhada (sim, é possível) e exploração racional do mar brasileiro. No entanto, é lastimável, para não dizer um ato de desespero, ter que emprestar o nome da Amazônia ao mar, um bioma tão magnífico e rico em biodiversidade e recursos econômicos quanto a própria.

Para uma determinada nação, ter ou não ter florestas úmidas tropicais pode significar alguma diferença em seu desenvolvimento, dependendo do grau de instrução do seu povo. Diferença que normalmente tanto privilegia quanto marginaliza uma fração muito pequena da população, uma vez que a densidade demográfica em florestas (na Amazônia em particular) é a menor do país. Entretanto, ter ou não ter (eis a questão) mar, significa necessariamente uma enorme diferença para um país do ponto de vista geopolítico e, consequentemente, socioeconômico. Por razões históricas e de estratégia industrial, a maior parte da população mundial concentra-se ao longo das margens continentais, a menos de cem quilômetros da costa, sobretudo em regiões estuarinas e lagoas costeiras com fácil acesso ao mar. Se o Brasil não tivesse mar, nossa história, cultura e patamar de desenvolvimento seriam radicalmente diferentes.

Recursos de um bioma

“O mar é a nossa principal via de transporte. Pelo menos 95% do comércio exterior é feito por via marítima.”

Para que se possa entender melhor o valor de um determinado bioma é preciso analisar os recursos naturais que ele é capaz de oferecer para a sociedade. Os recursos marinhos são classificados em quatro categorias: minerais; vivos; energéticos; e não-extrativos. Começando pela exploração de minérios de valor industrial, abundantes no mar, tais como cascalhos, areias e argilas para a construção civil, calcário para a agroindústria, além de metais nobres, como ouro, platina, magnetita, cassiterita, óxidos de titânio etc.

Petróleo e gás natural são os principais recursos energéticos, tão divulgados nos noticiários recentes devido aos conflitos com a Bolívia e a descoberta das reservas do pré-sal. Mas o foco é dado aos produtos e não a quem ou o quê os fabricou. Nossa matriz energética é pelo menos 40% baseada no combustível fóssil e quase todo ele é retirado do mar. Recursos energéticos alternativos tais como a força das marés, das ondas ou dos ventos costeiros estão sendo seriamente considerados por países industrializados do Hemisfério Norte para reduzir sua dependência dos combustíveis fósseis esgotáveis e contribuir para desacelerar o aquecimento global. No Brasil, uma iniciativa pioneira nesse sentido é o parque eólico de Osório (RS). O Programa de Aceleração do Crescimento, o tal do PAC, deveria considerar seriamente o potencial dos ventos que sopram sem parar como fonte alternativa de energia elétrica para a zona costeira das regiões norte e nordeste. Duvido que alguém tenha pensado nisso.

Os principais recursos vivos são a pesca e a biotecnologia marinha. A pesca artesanal sustenta aproximadamente um milhão de pescadores e suas famílias. Vivem da exploração de manguezais, de recifes de coral, de estuários, lagoas costeiras, fundos arenosos e rochosos do mar aberto em busca diária de peixes, crustáceos e moluscos. A pesca industrial está em decadência devido ao esgotamento dos estoques e a biotecnologia marinha no país ainda está sendo avaliada em âmbito acadêmico e longe de esgotar todo o seu potencial médico, farmacológico, alimentar e cosmético, típico dos mares tropicais com habitats e nichos diversificados.

“Do ponto de vista ambiental, o papel do mar na fixação de carbono atmosférico e no controle do clima global é tão imensurável quanto o do bioma amazônico.”

Do ponto de vista socioeconômico, recursos não-extrativos são tão ou mais importantes que os demais e a nossa irrisória cultura marítima não os percebe e não desenvolve métodos precisos de avaliação.

O mar é a nossa principal via de transporte. Pelo menos 95% do comércio exterior é feito por via marítima. A indústria nacional importa matéria prima e exporta seus produtos através do transporte marítimo. O turismo ao longo do litoral brasileiro é outro recurso baseado na paisagem costeira e nas formas de lazer que ela oferece. Atualmente, deve estar contribuindo com pelo menos 7% do PIB nacional,  incluindo a hotelaria, gastronomia, pesca esportiva, esportes e turismo subaquático, que sustentam uma parcela significativa da sócio-economia litorânea.

Do ponto de vista ambiental, o papel do mar na fixação de carbono atmosférico e no controle do clima global é tão imensurável quanto o do bioma amazônico. Entretanto, a Amazônia e todas as florestas tropicais do planeta sempre foram os principais alvos do movimento conservacionista internacional, com o mar geralmente em segundo plano, recebendo alguma atenção da mídia nas raras ocasiões em que os ativistas radicais do Greenpeace abordam heroicamente navios pesqueiros asiáticos, verdadeiros piratas da biodiversidade marinha.

A Amazônia não interfere no modelo econômico brasileiro. Arrisco dizer que sua parcela para o PIB nacional é insignificante. Mas isso não importa, porque essa não é a função de uma floresta tropical, cujo valor está para a humanidade como um filho está para sua mãe. Não tem preço. Os únicos recursos econômicos que atualmente se extrai da Amazônia são o contrabando de madeiras nobres, milhares de hectares condenados a virar carvão vegetal para as churrasqueiras, biopirataria e tráfico de animais, queimadas descontroladas para substituir árvores centenárias e animais exóticos por pasto e plantio de soja para chinês.

“Eu gostaria que esse mesmo sentimento de revolta coletiva em relação aos crimes contra a floresta amazônica fosse também evidente quando denunciam arrastos ilegais de pesca predatória na zona costeira, vazamentos acidentais e crônicos de combustível, erosões costeiras provocadas por obras irregulares de engenharia ou uma ressaca incontrolável que atrapalha apenas turistas e veraneios.”

Com razão o público se revolta quando os noticiários acusam e denunciam os desmatamentos. Enxergam melhor a ameaça contra a floresta quando o Ibama apreende mais um lote de madeira extraída ilegalmente, ou quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revela os dados anuais de queimadas e desmatamentos através das imagens de satélite. Percebemos visualmente e nos sensibilizamos mais com o estrago que se faz no ambiente terrestre, do qual pertencemos. No mar não! Eu gostaria que esse mesmo sentimento de revolta coletiva em relação aos crimes contra a floresta amazônica fosse também evidente quando denunciam arrastos ilegais de pesca predatória na zona costeira, vazamentos acidentais e crônicos de combustível, erosões costeiras provocadas por obras irregulares de engenharia ou uma ressaca incontrolável que atrapalha apenas turistas e veraneios. Somos cegos sobre o mar, não temos a mínima ideia do que se passa abaixo da superfície. Não existe “desmatamento oceânico” que possa ser denunciado, porque os principais vegetais do mar são microscópicos (sorte deles). Uma biomassa vegetal 100 vezes menor do que a terrestre, produzida por microalgas invisíveis, sem tronco, raízes e galhos de sustentação.

Devido à concentração populacional e às atividades econômicas desordenadas e sem manejo na zona costeira, o estrago que se faz no mar diariamente nos prejudica tanto quanto, ou até mais do que o desmatamento. Só que de modo crônico e pontual. Poluição química e sólida oriunda das cidades e indústrias, erosão e assoreamento, sobrepesca com arrasto de fundo, redes de pesca gigantescas operando dia e noite, espinhéis quilométricos e até bombas caseiras.

“Amazônia não tem preço. Os serviços ambientais e o potencial biotecnológico são imensuráveis na nossa (pelo menos na minha) escala de valores. Mas considere como seria sua vida aqui no Brasil sem a Amazônia. Agora, faça o mesmo exercício excluindo o mar.”

É difícil avaliar os prejuízos com a perda de habitats marinhos, doenças provocadas pela contaminação química do pescado, destruição de construções na orla, desvalorização imobiliária, perdas do comércio local e do turismo. O impacto das atividades humanas na zona costeira é diversificado, disperso ao longo dos 8 mil quilômetros de litoral e constante nos últimos 50 anos, dando a falsa impressão de que tudo o que se faz contra o ambiente marinho é pouco em relação ao desmatamento em terra. Só uma minoria de profissionais acadêmicos, estudantes e ambientalistas, que estudam e lutam pela conservação marinha, percebem o problema, além de leigos vítimas de impactos locais e temporários.

Não acho que o mar é mais importante do que a Amazônia. Só estou lembrando que é o conjunto dos biomas de uma nação que gera suas riquezas e formata suas características culturais e socioeconômicas. Em escala regional, cada bioma tem seu papel para o desenvolvimento da sociedade brasileira como um todo. A Amazônia não tem preço. Os serviços ambientais e o potencial biotecnológico são imensuráveis na nossa (pelo menos na minha) escala de valores. Mas considere como seria sua vida aqui no Brasil sem a Amazônia. Agora, faça o mesmo exercício excluindo o mar.

Não haveria nem zona costeira e nem Mata Atlântica. Não haveria petróleo suficiente e nem o transporte marítimo por onde passa 95% do PIB nacional. Não haveria pesca costeira nem oceânica. Nem jangadas, nem Jorge Amado e nem Dorival Caymmi. Não haveria praias, manguezais, estuários, recifes de coral e nem ilhas, inclusive a de Caras. Talvez não houvesse samba, bossa-nova, tanga e caipirinha. Não haveria nada que me faz lembrar o Brasil que somos. Viva o mar azul, verde ou amarelo! Viva o mar brasileiro!

 

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