Em 1995, depois de três anos de pesquisa na região do rio Capim, próximo a Paragominas, no Pará, Patricia Shanley, botânica americana com doutorado em ecologia, viu-se diante de um estudo científico único e um sério dilema. O ineditismo de sua investigação, explica Adalberto Veríssimo, do Imazon, ficava por conta de ter sido “o primeiro trabalho que procurou atribuir valor e descobrir as formas de uso das espécies não madeireiras da Amazônia”. O dilema, quem revela é a própria Shanley. “Em condições normais, a pesquisa deveria ser relatada num texto específico para o público acadêmico”, lembra. “Só que ela não teria acontecido se eu não tivesse sido procurada pelo pessoal do sindicato dos trabalhadores rurais da cidade”.
Isso aconteceu em 1992 e a exploração desenfreada da madeira avançava no município. O sindicato queria saber se o extrativismo que a maioria de seus associados praticava fazia mais sentido econômico do que vender as árvores aos madeireiros. Três anos mais tarde, navegando pelo baixo Tocantins ao lado de um caboclo e um índio, Shanley decidiu saldar a dívida que tinha com essa espécie de pedido de consultoria. Ali mesmo, no convés do barco, esboçou um livro com cara de cartilha para um público semi-analfabeto, com texto simples, ancorado em ilustrações. A primeira edição de Frutíferas da Mata na Vida Amazônica (127 páginas), saiu três anos depois, com 3 mil exemplares. Os livros foram sendo distribuídos devagarinho, pelos sindicatos rurais da Amazônia, até que acabaram. Só aí a Academia percebeu o que estava perdendo.
Basta folhear a segunda edição do livro, que vem com título levemente modificado – Frutíferas e Plantas Úteis na Vida Amazônica – e será lançado no dia 8 de dezembro em Belém, para entender o grau de interesse que ele suscitou entre gente que faz pesquisa na região Norte do Brasil. A sua cara continua sendo de cartilha pedagógica. Mas pode ser facilmente lido como estupenda obra de referência. É a única onde um pesquisador, por exemplo, pode achar tudo o que deseja saber sobre o bacuri, o piquiá e o uxi, três frutas de alta incidência nas florestas da Amazônia – do seu valor econômico e nutricional até a época do ano em que aparecem, passando pela maneira como são consumidos pela população local.
Mas esse não foi o único aspecto do livro que atraiu os olhares dos doutores. A pesquisa de Shanley mostrou como se desenrolou o contato entre os madeireiros e as comunidades de trabalhadores rurais nas áreas pesquisadas – a região na margem do Rio Capim, em Paragominas, e no baixo Tocantins. A relação era paternalista, continha alta dose de sedução financeira e contava sempre com a ignorância dos trabalhadores rurais sobre o valor do que a mata produzia, incluindo a madeira. Shanley conta que encontrou comunidades que deixaram os madeireiros entrar em suas terras em troca de campos de futebol. Outras receberam valores muito abaixo do que deviam ter ganho, mas que era provavelmente o maior volume de dinheiro que haviam visto em toda a sua vida.
“Claro que o dinheiro vivo produzia uma sedução”, conta Shanley. Permitia aos trabalhadores consumir coisas que jamais tinham imaginado. O problema é que uma vez que o desmatamento retirava todas as espécies madeireiras da área, a fonte da grana secava. O resultado é que eles ficavam sem o dinheiro e com uma floresta depauperada, com presença reduzida de caça e de plantas comestíveis e medicinais. Em uma década de investigações, Shanley conta que viu sensíveis mudanças no padrão de consumo das comunidades pesquisadas. Pessoas que no início da década de 90 praticamente só comiam o que a mata fornecia, entraram no século XXI consumindo cada vez mais produtos industrializados para sobreviver.
Shanley e seus pesquisadores, famílias da própria comunidade que pesavam ou contavam absolutamente tudo que caçavam ou colhiam, ajudaram também a arranhar o mito de que a comercialização de produtos florestais poderia ser uma alternativa econômica viável ao desmatamento. Poucas famílias colhem produtos da floresta pensando em levá-los ao mercado de forma organizada. As que fazem isso, sofrem de crônica falta de logística. “Nem saco para embalar as frutas eles têm”, diz Shanley. A maioria entra na floresta mesmo atrás de produtos pensando na sua subsistência. Às vezes, quando conseguem algum excedente, tentam vendê-lo. Mas é uma atividade instável e intermitente. Ainda assim, isso não significa que os produtos não-madeireiros da floresta não tenham valor para essas comunidades. Muito pelo contrário.
Na ponta do lápis, levando-se em conta que seu consumo depende apenas do esforço da coleta e não de dinheiro, são competitivos em relação à renda que a madeira pode gerar para o bolso de trabalhadores rurais. “Eles geram uma espécie de renda invisível, principalmente para quem os consome como meio de subsistência”, explica Shanley, que dirigiu a pesquisa e escreveu a primeira edição do livro com o auxílio de outros dois autores, Margaret Cymerys e Jurandir Galvão. “Evita que eles precisem ir ao mercado com dinheiro na mão para comprar alimentos. Trata-se de ganhar por deixar de gastar”. Além disso, há também a possibilidade de que a colheita tenha um excedente, que pode acabar gerando uma renda extra para a família em caso de venda.
Esse valor dos produtos não-madeireiros aumenta em função da maneira como estas comunidades vendem as árvores das áreas que ocupam para a extração da madeira. O livro não diz de nenhuma maneira que a venda não deve ser feita. Tenta, ao contrário, dar parâmetros para uma eventual negociação, caso seja essa a decisão final de uma comunidade. Por exemplo, o livro explica que uma das formas mais habituais de venda de árvores, por lotes, é uma das que gera menor valor. Cada árvore derrubada num alqueire vendido para a exploração não passa de 2 reais. Se cada árvore dentro desse alqueire for vendida individualmente para o corte, ela passa a valer 5 reais. Se for vendida cortada, por metro cúbico, não sai por menos de 150 reais. “Nossa função é dar informação para que eles mesmos façam suas escolhas”, diz Shanley.
Se Shanley ainda tinha dúvida sobre a importância acadêmica de seu livro, ela se dissipou durante a preparação de sua segunda edição, que além de revista foi ampliada em mais 149 páginas. “Não tive qualquer problema em arranjar cientistas de renome dispostos a colaborar com os textos”, conta ela, lembrando que entre os autores estão pessoas ligadas a instituições de ponta do Brasil – como o Imazon e a Embrapa – e do exterior – como o Jardim Botânico de Nova Iorque e a Universidade da Flórida. A chuva de colaboradores foi tanta que ela pôde se dar ao luxo de atuar como organizadora da nova edição, em conjunto com o sociólogo Gabriel Medina. O evento do dia 8 em Belém é apenas a primeira etapa do lançamento do livro. Ela vai terminar em Brasília, em abril do ano que vem. A nova tiragem será de 5 mil exemplares e dificilmente o livro será encontrado nas livrarias. Como aconteceu com a edição anterior, ele deverá ser distribuído gratuitamente.
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