Após um ano e meio de atividades, a ponte, no litoral leste da cidade, ainda está longe de ser terminada. No ano passado, a obra foi embargada por quatro meses pelo Ministério Público Federal. Depois de liberada, o projeto original foi duplicado, bem como seu orçamento, o que voltou a originar processos na Justiça contra a administração municipal e as empresas responsáveis. A inauguração já foi anunciada para março de 2004, depois para setembro, e até agora só o que se vê é seu esqueleto.
A construção da ponte é alvo de uma série de críticas por parte dos ambientalistas. Primeiro porque ocorre em uma área de preservação ambiental — que compreende o trecho final da Praia do Futuro, todo o estuário do rio Cocó e ainda campos de dunas, apicuns (vegetação de transição entre a terra firme e os mangues), restingas, gamboas (canais de marés do estuário), mangues e matas de transição, onde os impactos ambientais vêm nitidamente aumentando.
Segundo porque é vista como uma nova etapa da especulação imobiliária provocada pelo turismo profissional, que vem gerando grande impacto na região litorânea.
Com quase 3 milhões de moradores, Fortaleza é hoje a quinta maior cidade do país, e cresce voltada para o mar. Por isso a valorização das zonas praieiras, e por isso a pressão ambiental estar concentrada especialmente nelas. A partir de 1999, a Praia do Futuro foi o principal palco dessa expansão. Em apenas cinco anos, mansões se espalharam sobre suas dunas, luxuosos hotéis foram erguidos e as pousadas multiplicadas, transformando-a na praia mais badalada da cidade. Nos últimos anos, foram construídos ao longo da orla dois hotéis de 4 estrelas, outros dois de 3 estrelas, dois condomínios de flats e três torres com 22 andares, numa área onde os prédios, até então, não passavam de quatro andares.
A inauguração da ponte, que liga a Praia do Futuro à praia de Sabiaguaba, seria o golpe final para a expansão da urbanização na região, com os conhecidos prejuízos ambientais e sociais que ela acarreta. As comunidades tradicionais de pescadores e catadores de caranguejo estão perdendo suas fontes de renda. Os moradores passaram a engrossar o comércio ambulante que disputa o dinheiro dos turistas.
Com tanto “progresso”, o manguezal, o rio e o mar estão seriamente ameaçados. É o que temem os ambientalistas. A esse respeito, o geólogo e professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Jeovah Meireles, explica que a ponte irá bloquear a entrada de sedimentos no mangue. Ao interferir na livre passagem da água, as pilastras promovem o assoreamento das margens do rio. Segundo ele, a implantação de estruturas no leito também vai provocar mudanças nos habitats dos animais que vivem ali. Os bancos de areia que se deslocavam em direção à Praia do Futuro serão reduzidos, ocasionando, a médio e longo prazo, a erosão da costa. “O mar vai invadir a área construída”, avalia Meireles.
Em Sabiaguaba, destino da ponte, as dunas vão dar lugar a três avenidas. As dunas funcionam como reservatórios de água doce, alimentando o rio Cocó. Com sua destruição, a quantidade de água armazenada na cidade será reduzida. “A reserva de água doce em Fortaleza está comprometida. É um recurso ambiental que está sendo desprezado”, afirma Jeovah.
O rio Cocó nasce na vertente oriental da Serra da Aratanha e nos seus 50 km de percurso passa por três municípios, Pacatuba, Maracanaú e Fortaleza, para desaguar no Oceano Atlântico, nos limites das praias do Caça e Pesca e Sabiaguaba. Sua bacia hidrográfica tem uma área de aproximadamente 485 km². O rio tem cerca de 30 afluentes, 16 açudes e 36 lagoas.
O vale do Rio Cocó, que ocupa cerca de dois terços da superfície de Fortaleza, é Área de Proteção Ambiental. O Parque Ecológico do Cocó, com sua extensa área verde que cerca as margens do rio, é o maior parque urbano da América do Sul. Divide-se em três unidades geoambientais: planície litorânea, planície flúvio-marinha e superfície dos tabuleiros litorâneos. A planície litorânea é caracterizada pelas praias e dunas fixas e móveis. A planície flúvio-marinha ocupa desde os trechos do rio localizados na BR-116 até a sua foz, onde forma um estuário. Nessas áreas as espécies vegetais mais dominantes são as típicas de mangues.
Os manguezais do rio Cocó estão no coração de Fortaleza. Em seus poucos trechos ainda preservados, várias espécies de moluscos, crustáceos, peixes, répteis, aves e mamíferos compõem cadeias alimentares com ambientes propícios para reprodução, desova, crescimento e abrigo natural. Na área do Parque, são proibidos pela legislação a implantação ou ampliação de quaisquer tipos de construção civil sem o devido licenciamento ambiental, a supressão de vegetação e o uso do fogo, atividades que possam poluir ou degradar os recursos hídricos, como também o despejo de efluentes, resíduos sólidos ou detritos capazes de provocar danos ao meio ambiente, o tráfego de veículos, a intervenção em áreas de preservação permanente (margens do rio, campo de dunas e demais áreas que possuem restrições de uso), a pesca predatória, o uso de veículos náuticos motorizados (salvo para fins de interesse público), e demais atividades danosas previstas na legislação ambiental. Todo este rol é cotidianamente desobedecido.
O rio apresenta os problemas ambientais característicos de zonas urbanas, destacando-se ocupações irregulares, lançamento de efluentes in natura e outras formas de contaminação, bem como o desmatamento dos mangues, que compromete a qualidade hídrica e as condições ambientais desse ecossistema.
Segundo a Secretaria do Meio Ambiente e Controle Urbano (Semam), a ponte vai aterrar 648 metros cúbicos de mangue, menos de 1 hectare. Ambientalistas, no entanto, falam em cerca de 30 hectares. “Todo um trecho do manguezal foi cortado, desmatado, aterrado. Estão fragmentando um dos ecossistemas mais complexos do planeta”, diz o professor Jeovah.
Economista com especialização em gestão da qualidade ambiental, João Saraiva acredita que a construção da ponte sobre o rio Cocó resulta de pressão de especuladores imobiliários. “O que está por trás são os especuladores dizendo para onde a cidade deve crescer. E o poder público segue a indicação, chegando com estrada, ponte, luz”. Fontes do setor da construção civil afirmam que o grupo empresarial cearense M. Dias Branco, líder nordestino na produção de farinha e farelo de trigo, tem contribuído financeiramente com as obras da prefeitura na região da Praia do Futuro, visando à valorização dos vários terrenos demarcados em seu nome localizados sobre o tabuleiro das dunas.
João Saraiva teme que, com a obra, os recursos naturais da região sejam comprometidos. “Como não existe planejamento urbano, a área será ocupada de forma desordenada. Vai ocorrer lá o mesmo que aconteceu no resto de Fortaleza”, diz ele. O arquiteto Renato Pequeno, doutor em Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), diz que a obra “não faz muito sentido”. “Ao invés de abrir novas frentes de expansão, deveriam resolver os problemas que já existem”, considera.
O titular da 6ª Secretaria Executiva Regional (SER VI) da Prefeitura, Maurílio Banhos, sai em defesa da ponte, que segundo ele vai trazer “avanços muito grandes” para aquela região da cidade. “Vamos ter maior fluxo de turismo. O turista que passar pela ponte vai acabar indo a um barzinho, a um restaurante, gerando emprego para o garçom, para a cozinheira”, argumenta. Banhos garante que, inaugurada a ponte, a Prefeitura vai intensificar a fiscalização contra agressões ao meio ambiente.
O Comitê Gestor do Programa de Despoluição do Rio Cocó diz não ser contra a construção da ponte, mas exigiu uma discussão do atual modelo. “Queremos reacender esse debate com a sociedade e mostrar que há tecnologia suficiente para não causar esses impactos ambientais”, afirmou Sheila Pitombeira, promotora de Justiça do Meio Ambiente. “Outro tipo de ponte pode custar mais, porém recuperar o ambiente é mais caro ainda”, avisa. Uma sugestão do ambientalista João Saraiva e do arquiteto Jorge Neves propôs um formato de ponte suspensa que, segundo Saraiva, “poderia servir como atrativo turístico, além de proteger o meio ambiente”. Para o advogado Daniel Pagliuca, da Comissão de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-Ceará), o preço não deve ser o fator decisivo numa obra dessa proporção.
“Quem critica não leu o projeto”, responde Ilca Braid, titular do setor de licenciamento ambiental da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Controle Urbano (Semam). Ela garante que todos os procedimentos adotados para a construção da ponte sobre o rio Cocó ocorreram “dentro da legislação”. Afirma que o local da ponte foi escolhido entre três alternativas, sendo esta a que causava menos impacto ambiental. “Altera (o meio ambiente), lógico. Mas dentre os impactos era o menor, o de mais viabilidade econômica e ambiental”. No relatório aprovado pelo Ibama e pelo Conselho Municipal do Meio Ambiente (Comam), constam como impactos o “desmatamento da vegetação e a perda do potencial florístico de pequena parcela do mangue”. Segundo Ilca Braid, o impacto seria causado no período da construção da ponte, mas depois “o ambiente se adequaria”.
A chefe do setor de licenciamento da Semam afirmou ainda que, durante audiências realizadas com o Ibama e o Comam, “não houve nenhuma manifestação de entidades ambientais”. “Eles (ambientalistas) não foram para as audiências, nem leram o projeto”, asseverou, rebatendo as críticas contra a obra. A ponte, de acordo com Ilca Braid, vai beneficiar a Praia do Futuro, o bairro de Sabiaguaba e o litoral leste do Ceará. Para ela, o empreendimento deverá induzir o desenvolvimento da região e impulsionar o setor turístico, gerando emprego e renda.
Na Justiça, a disputa promete ser longa. Em 27 de outubro passado, o Ministério Público Federal entrou com uma ação de improbidade administrativa contra o prefeito de Fortaleza Juraci Magalhães, o deputado federal Marcelo Teixeira, companheiro de Juraci desde sua primeira administração, e o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT). As acusações relacionam-se ao superfaturamento das verbas destinadas à construção da ponte. Uma alteração no projeto original aumentou em 112% o valor do orçamento inicial. O Ministério Público alega que o novo projeto não recebeu a licença ambiental do Ibama nem passou pela avaliação do DNIT. Também estão envolvidas duas empresas e as sociedades implicadas no esquema de licitações da obra.
A ação quer tornar indisponíveis os bens dos acusados e pede o ressarcimento integral do dano, além da perda de função pública e suspensão dos direitos políticos por 5 a 8 anos dos políticos acusados.
Em outra ação civil pública, apresentada na mesma data, o Ministério Público pede a suspensão imediata da obra e a regularização da situação por meio de uma nova licença ambiental.
*Max Krichanã é jornalista, especialista em Psicopedagogia e mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Trabalha no jornal O Povo.
**Colaboraram Gisele Dutra e Líbia Ximenes, da redação do O Povo.
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