Os impactos dos arrastões se somam aos de outras pescarias e ameaçam de extinção a vida marinha. Pesquisadores apontam que regular a prática traz benefícios ecológicos e econômicos. Países já limitam a atividade defendendo seus recursos naturais. Mas o arrasto ainda engrossa os prejuízos e os crimes ambientais no Brasil.
A conservação global da vida marinha pede um freio na matança imposta pela pesca de arrasto. Ela responde por metade do desperdício mundial, mas contribui com menos de 20% da produção pesqueira. Algumas capturas jogam fora 14 quilos de pescado para cada quilo descarregado dos barcos, contam especialistas. Mas a situação pode ser bem pior.
Pós-doutor em Oceanografia pela Universidade Federal de Rio Grande e chefe do Departamento de Biologia Marinha da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Marcelo Vianna recorda de casos em estuários e lagoas em contato com o mar onde até 50 quilos de animais são perdidos para o aproveitamento de apenas um quilo de pescado.
“Os alvos do arrasto mudam ao longo do tempo conforme disponibilidade de recursos e correntes marinhas. Muitos peixes pequenos e sem valor comercial são capturados devido à grande variedade de espécies de países tropicais. Inúmeros animais morrem afogados no convés ou esmagados nas redes. Poucas espécies resistem até voltar ao mar”, explicou.
Um estudo publicado em 2018 na revista ScienceDirect contabilizou que a pesca de arrasto devolveu ao mar 437 milhões de toneladas de pescado nos últimos 65 anos. Na ponta do lápis, US$ 560 bilhões em recursos foram jogados fora, estimou o trabalho.
No Brasil, mais de 400 mil toneladas de vida marinha foram descartadas entre 2000 e 2018 apenas nos estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo, avalia a ong Oceana. A redução nas capturas do arrasto é sentida desde os anos 1980, empurrando a frota mar adentro em busca de cardumes.
A chacina preocupa sobretudo quem mais depende dos recursos para sobreviver. Quase 113 mil famílias habitam 44 reservas extrativistas, áreas de proteção ambiental e outros territórios tradicionais nos 9,2 mil km de litoral brasileiro. Pesca, arrasto de praia, coleta de mariscos e de caranguejos predominam nas reservas.
“O arrasto escasseou a lagosta, a sardinha e a corvina no Nordeste e em outras regiões. Peixes, tartarugas e botos mortos pelas redes enchem as praias. Mas os empresários não enxergam que isso é ruim para eles mesmos e não querem restrições. Daqui a pouco não terá pescado para ninguém”, alertou Maria Aparecida Ferreira, da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos Extrativistas Costeiros Marinhos.
Conter os arrastões pode beneficiar inclusive áreas protegidas, ameaçadas pela pesca excessiva, poluição e outras pressões humanas. Tais impactos reduziram em até 60% a vida marinha nas bordas em relação ao interior desses espaços, em vários pontos do globo, revela um estudo publicado em julho na revista Nature.
Mas as redes ameaçam formações ainda mais especiais, alerta a doutora em Biologia Beatrice Padovani, professora na Universidade Federal de Pernambuco. “O arrasto sempre impacta o piso marinho. Fundos moles, de areia ou lama, se recuperam mais rápido, enquanto fundos duros, de esponjas e corais, podem levar décadas ou até centenas de anos, ou não se recuperar jamais”.
Os estragos emitem tanto carbono quanto todos os voos comerciais realizados no mundo, mostra estudo publicado em março na Nature. Os sedimentos marinhos são grandes depósitos do gás, que amplia o efeito estufa, aumentando a temperatura média planetária. China, Rússia, Itália, Reino Unido, Dinamarca, França, Holanda, Noruega, Croácia e Espanha respondem pela maioria do carbono liberado pelo arrasto de fundo.
Pente Fino
Há cerca de 5.225 barcos de arrasto registrados no Brasil. Sete em cada dez (por volta de 3.700) atuam no Sul e Sudeste. Arrastões também são intensos no litoral da Amazônia. A pesca se concentra no país todo em menores profundidades, mostra um sistema oficial de rastreamento por satélites. Essas áreas são habitadas por crias de muitas espécies.
Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação contam que apenas 2,4 mil (9,4%) dos 25.618 barcos pesqueiros cadastrados pelo governo são monitorados por satélites. Desde 2014, o governo concedeu R$ 13,8 milhões em subsídios para compra de combustível à frota.
Apenas 632 barcos de maior porte são acompanhados eletronicamente, ou 12% dos arrasteiros. A movimentação dos demais é desconhecida. O programa brasileiro que acompanha pesqueiros por satélites não é público e nem está integrado a iniciativas mundiais de monitoramento, como o Global Fishing Watch.
A cegueira facilita pescarias ilegais. Um relatório de 2019 da fiscalização ambiental federal traz 1.039 infrações ligadas a pescarias de espinhel, emalhe, linhas, potes, redes de cerco e de arrasto. O levantamento não discrimina os crimes dos arrastões.
O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) alegou não ter capacidade para extrair em tempo hábil de seus registros os delitos da pesca de arrasto na última década, como solicitado pela reportagem. Afirmou, ainda via Lei de Acesso à Informação, que divulgar os dados comprometeria o combate à criminalidade.
“A divulgação e a análise desses dados podem levar a previsões de locais e períodos de execução de ações fiscalizatórias, vindo a facilitar a organização da frustração de ações de fiscalização, pela retirada antecipada de elementos comprobatórios das localidades a serem fiscalizadas e facilitar a organização e contratação de represálias, emboscadas contra agentes de fiscalização”.
Governistas também são envolvidos em supostos ilícitos. Jair Bolsonaro foi multado em 2012 por pescar em uma área protegida no Rio de Janeiro. Já na Presidência da República, forçou a exoneração do servidor que o autuou. Em 2019 e no mesmo estado, uma empresa da família do secretário de Aquicultura e Pesca, Jorge Seif Júnior, recebeu multa por pescaria ilegal.
Enquanto isso, o Executivo Federal adotou um programa das Nações Unidas tentando reduzir impactos do arrasto de camarão, como fizeram Colômbia, Costa Rica, México, Suriname e Trinidad e Tobago. A iniciativa quer melhorar legislação e controle, reduzir a captura massiva de espécies junto com os alvos das pescarias, melhorar condições de trabalho e ampliar a divulgação pública de informações.
“O governo quer usá-la sem resultados científicos sobre a redução efetiva da captura acidental (bycatch) no país. O governo trata um projeto como política pública e que, na realidade, não sairá do papel. Não há nenhuma intenção dos arrasteiros de se regularizar e falta vontade política para reformar de vez esta indústria”, reclamou Luís Gustavo Cardoso, professor e doutor em Oceanografia pela Universidade Federal de Rio Grande (FURG).
Controle Vantajoso
Especialistas brasileiros mostraram que limitar os arrastões no litoral do Rio Grande do Sul ampliaria receitas de armadores e de indústrias em R$ 34,1 milhões. Já a arrecadação estadual com impostos do setor pesqueiro subiria R$ 3,5 milhões, passando de R$ 600 mil para R$ 4,1 milhões anuais, um aumento de quase 600%.
Os cálculos de cientistas da FURG miravam o bloqueio dos arrastões numa faixa de 22 quilômetros do litoral, desde 2018. Mas a prática foi liberada por liminar do Supremo Tribunal Federal em 2020. Agora, segue suspensa até que o governo implante medidas para redução de impactos.
Saiba Mais em Brasil naufraga no controle da pesca de arrasto.
“O arrasto sobre berçários de peixes próximos à costa causa grandes estragos. São afetadas sobretudo espécies de renovação lenta, como tubarões e raias, capturadas indiscriminadamente pelas redes. A regulação da prática tinha disparado o repovoamento da vida marinha, inclusive de interesse comercial”, destacou Manuel Haimovici, doutor em Biologia pela Universidade de Buenos Aires.
A melhora foi sentida pelos pescadores. Coordenador do Fórum da Lagoa dos Patos – grande massa de água doce conectada ao mar, no sul do país –, Nilmar Conceição afirma que os 3 mil trabalhadores ligados à entidade aprovaram a interrupção dos arrastões. Cerca de oito em cada dez quilos de suas capturas são vendidas aos estados de Santa Catarina e de São Paulo.
“A grande maioria pesca para sobreviver. Até o bloqueio, passamos 5 anos quase sem camarões e com poucas tainhas e corvinas. A oferta de peixe aumentou muito com a proibição. A pesca de arrasto é a nossa dor de cabeça. Prejudica a entrada e a movimentação de larvas e crias para dentro da lagoa. Retomar os arrastões será um retrocesso”.
Já em nível global, 19 países ou regiões proíbem ou restringem o arrasto – Palau, Indonésia, Sri Lanka, Serra Leoa, Belize, Japão, Ilhas Maurício, Arábia Saudita, Ilhas de Açores, Canárias e Madeira, Chile, Nova Zelândia, Hong Kong, Filipinas, Peru, União Europeia, Estados Unidos e Canadá. As regras buscam proteger 34 milhões de km² de mar, equivalentes a duas vezes a área da Rússia.
As medidas reforçam ações contra o roubo de peixes e outros animais de cada país por frotas estrangeiras. O crime é mais comum em águas menos quentes e mais ricas em pescado de maior porte. Países sul americanos são vítimas recorrentes de barcos com bandeiras de nações asiáticas e europeias.
“A China representa mais de 70% da presença estrangeira em águas internacionais, seguida por Coréia, Taiwan e Espanha. Esse é o principal problema para a conservação em alto mar, afetando a produção local e os preços internacionais. O conflito é permanente”, destacou Eduardo Pucci, diretor da Organização para a Proteção dos Recursos Pesqueiros no Atlântico Sul.
Via Lei de Acesso à Informação, a Marinha informou que 4 embarcações estrangeiras foram flagradas em águas nacionais desde 2012. Duas tinham bandeiras japonesas e as demais da Venezuela. Um dos barcos foi apreendido no início do ano no estado do Amapá (Amazônia), com 15 venezuelanos e 3 toneladas de pescado ilícito.
A Secretaria de Aquicultura e Pesca não atendeu aos nossos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem.
Esta reportagem foi produzida com o apoio do Wilson Center e da Internews’ Earth Journalism Network
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