Reportagens

Ampliação de complexo viário ameaça um dos últimos fragmentos florestais urbanos em Manaus

O bairro Tarumã abriga mais de 35 etnias indígenas, e inclui a APA Tarumã/Ponta Negra e a Área de Preservação Permanente da Cachoeira Alta do Tarumã, ambas ameaçadas por obras do Governo do Amazonas

João Felipe Serrão ·
12 de maio de 2022 · 2 anos atrás

As árvores e cachoeiras dividem a paisagem com máquinas e concreto. Andar pelo bairro do Tarumã é como passear pela dimensão contrastante que Manaus parece ser formada. A maior metrópole da Amazônia vive em expansão desordenada, e o avanço da urbanização vem tomando as últimas áreas de preservação ambiental dentro da capital amazonense.

O Tarumã é uma das poucas reservas naturais da cidade que abrigam espécies como o Sauim-de-Coleira e outros animais ameaçados de extinção que já foram muito prejudicados por outras obras, que aceleram a perda dos habitats deles.

A região abriga também um dos últimos igarapés limpos da cidade de Manaus, o igarapé Água Branca, tributário da bacia do Tarumã-Açu.

A área florestal no entorno das Cachoeiras do Tarumã compreende um dos cinco principais fragmentos florestais urbanos e o último cinturão verde da cidade de Manaus, além de integrar o Corredor Amazônia Central e a Reserva da Biosfera da Amazônia, área de relevância mundial.

Foto: Reprodução / Água Branca Online
O principal objetivo da Reserva da Biosfera da Amazônia Central é o da conservação dessas porções estratégicas de cobertura florestal, de imensa biodiversidade. Foto: RBMA

Duplicação do Anel Sul

Toda essa riqueza está ameaçada por conta das obras que fazem parte da implementação do complexo viário Anel Sul, sob responsabilidade do Governo do Amazonas. A construção contempla cerca de 8,7 quilômetros com serviços de terraplanagem, drenagem e pavimentação.

A segunda fase de implementação do Anel Sul foi iniciada em junho de 2021 e compreende um trecho que vai da Ponte do Tarumã até o Quarto Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta IV).

Segundo o Governo do Amazonas, o objetivo é que a intervenção facilite o deslocamento entre a zona oeste e a zona norte da capital, desafogando o trânsito e reduzindo a circulação de veículos pesados nas áreas centrais da cidade.

A linha em azul representa o trecho em processo de duplicação da Estrada do Tarumã/Avenida do turismo na segunda fase de implementação do Anel Sul, que vai da Ponte do Tarumã (Ponto A) até o Cindacta 4 (ponto B). A Cachoeira Alta está identificada pelo ponto vermelho. Fonte: GoogleMaps

De acordo com a relação de contratos de obras e serviços de engenharia da Secretaria Estadual de Infraestrutura e Região Metropolitana de Manaus (Seinfra), o valor global do contrato do Anel Sul é de R$ 102.472.901,81.

O Governo previa a entrega da obra para o final de 2021, o que não ocorreu.

Impactos Ambientais

Tão grande quanto a construção, são os impactos consequentes da ação do Governo. De acordo com denúncias formalizadas em órgãos competentes do Estado por moradores do bairro, as obras de duplicação da Estrada do Tarumã/Avenida do Turismo apresentam uma série de irregularidades, tais como: 

  • A ausência de Estudo de Impacto Ambiental e Estudo de Impacto de Vizinhança que tenham consultado adequadamente os moradores do local afetado pelo empreendimento e do seu entorno. Procurado pela reportagem, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), disponibilizou apenas o Estudo Ambiental Simplificado do Anel Sul.
  • A realização de obras de terraplanagem em toda a área do Corredor Ecológico das Cachoeiras do Tarumã, gerando grande movimentação de terra ao revirar o solo, além da supressão irregular de cobertura vegetal no local, o que pode levar ao assoreamento das cachoeiras.
  • O estacionamento e a alocação de máquinas pesadas, como retroescavadeiras, em Área de Preservação Permanente (APP) às margens da Cachoeira Alta do Tarumã.
Margem da Cachoeira Alta ocupada com máquinas pesadas e produção de asfalto e concreto. Foto: Juliana Belota

Patrimônio Cultural

Não é só a diversidade de fauna e flora que está ameaçada no Tarumã. O bairro histórico é caracterizado pela ocupação de representantes de povos e comunidades tradicionais, como mestres de cultura popular, rezadeiras, parteiras, terreiros remanescentes de sítio, além de abrigar centros de religiões ayahuasqueiras amazônicas.

Mais de 35 etnias indígenas dividem o espaço e veem seu modo de vida ser ameaçado pela ideia de progresso do Governo do Estado.

Joilson Karapanã mora desde os anos  70 no Tarumã. Ele conta que a relação com o ambiente tem mudado por conta da poluição causada pela urbanização. “Eu nadava nesse rio [Tarumã], tirava meu patauá, tirava açaí com meu finado pai. Hoje a gente não pode fazer mais isso. A gente anda pela nascente do igarapé, a lama dá na cintura. O peixe toma água lá em cima, que vem já poluída por conta do chorume das grandes empresas, e a gente pega esse peixe e come. Isso causa muito impacto para nós que somos indígenas. Eu sinto na pele a mudança, tanto ambiental, quanto climática, social e cultural”, destacou Joilson.

O indígena concede entrevista a ((o))eco na escolinha em que dá aula de Nheengatu, língua nativa da família tupi-guarani.

Ao lado dele está a professora Cláudia Baré, liderança indígena que também mora há bastante tempo no bairro. Cláudia conta que mesmo provocando grandes impactos, a população tradicional não foi ouvida sobre a construção do Anel Sul. “A gente não participa dessas coisas. A gente fica sabendo depois que começa”, criticou a professora. O Estudo de Impacto de Vizinhança é uma exigência prevista na Lei Municipal 1.838/2014 para implantação de empreendimentos de significativo impacto urbano-ambiental.

“Infelizmente esse desrespeito com o indígena sempre houve. Pouca coisa a gente pode fazer porque essas pessoas têm contato com o governo e com autoridades”, enfatizou Cláudia.

Lutana Kokama é a cacique geral da comunidade Parque das Tribos, localizada no Tarumã. De acordo com ela, as obras do Anel Sul afetaram o dia a dia da comunidade: “Para nós piorou. Nós estamos na parte de baixo, as obras estão na parte de cima. Tudo o que acontece na parte de cima impacta a gente aqui. Nós,  como indígenas, gostamos de pescar e nadar no rio. A gente não pode mais pescar no rio, porque tá poluído. O peixe tem gosto de diesel”, finalizou a cacique.

Problema antigo

Na avaliação do presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Tarumã-Açu, Jadson Maciel, antes mesmo da duplicação do Anel Sul, o local já vinha sofrendo com problemas ambientais: “O espelho d’água já estava poluído. O progresso chegou e esses recursos foram degradados. Os outros estados têm interesse em cuidar das águas, aqui a gente tem interesse em avançar em um progresso, mas passando por cima de todos esses recursos naturais”, afirmou.

Ainda de acordo com Jadson, as recentes obras do Governo têm acentuado o processo de degradação ambiental no Tarumã: “Já está causando um impacto muito grande. Ele [Anel Sul] está passando pelos corredores ecológicos. Tem uma fauna muito grande, com diferentes animais e do jeito que está indo, tudo isso provavelmente vai se degradar. O Estado, falando em nível nacional, deixa primeiro os recursos se acabarem, para depois querer resgatar. A gente sabe que é o contrário, a gente tem que preservar antes de acabar”, concluiu Jadson.

Jadson recentemente conseguiu aprovar junto com o comitê, o Plano de Bacia Hidrográfica do Tarumã, para tentar impedir a destruição total do rio. Foto: Arquivo Pessoal

Legislação ambiental

De acordo com o Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus, a APA do Tarumã faz parte da macrounidade Tarumã-Açu, que compreende “grande parte da bacia leste do igarapé Tarumã-Açu dentro da área urbana, inserida na APA do Tarumã/Ponta Negra, com presença significativa de fragmentos florestais, de estímulo à baixa densificação, relacionada à proteção dos recursos naturais, à valorização da paisagem e à promoção de programas e projetos de integração da área urbana”.

Para o uso e ocupação do solo na área, a legislação pede o controle das atividades e dos empreendimentos potencialmente poluidores que provoquem risco à segurança ou incômodo à vida urbana.

De acordo com a Lei Municipal n° 672, de 2002, as Unidades de Estruturação Urbana (UES) Tarumã e Cachoeira Alta são voltadas para a “preservação do ambiente natural e ocupação horizontal de média densidade”, além de “incentivo à densificação com cuidados ambientais”.

Apesar da lei autorizar atividades de caráter residencial, comercial, de serviços e industrial, as atividades industriais são restritas ao Tipo 1 (que “não oferecem riscos à segurança nem incômodo à vizinhança e não provocam impactos significativos, ao ambiente, à estrutura e à infraestrutura”) e Tipo 2 (“podem oferecer incômodo eventual ou moderado à vizinhança”), sendo permitidas, deste último tipo, apenas as atividades voltadas para turismo e lazer.

O Decreto nº 22, de 04 de fevereiro de 2009, criou o Corredor Ecológico das Cachoeiras do Tarumã no município de Manaus. Ele é bem claro quando fala sobre o objetivo de “garantir a recuperação e manutenção da biota, facilitando a dispersão de espécies e a recolonização das áreas degradadas, bem como a manutenção das populações que demandam para a sua sobrevivência de áreas maiores do que aquelas áreas de preservação permanente”. Também é destacado na medida a necessidade de prevenir o assoreamento e a poluição dos cursos d’água afetados”

No Estudo Ambiental Simplificado (EAS) da  Duplicação da Estrada do Tarumã, no tópico sobre identificação dos impactos ambientais, a Seinfra conclui: 

“As características físicas e biológicas da água dos cursos d’águas locais encontram-se muito alteradas, devido a grande quantidade de esgotos e resíduos sólidos que são lançados. Desta forma, durante as atividades para execução das obras, deverão ocorrer maior transporte e acúmulo de sedimentos no leito do igarapé e poderá intensificar o seu assoreamento”. 

Sobre a fauna, o EAS afirma: 

Durante a execução da obra deverá ocorrer o desabrigo e exposição de algumas espécies, morte de animais por acidentes com redução da população, migração das espécies e dispersão.

Em nota enviada à reportagem de ((o))eco, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) informou que a obra se trata de uma via existente, com sistema viário pavimentado, transitável, registro de longa ocupação humana. “A duplicação da via gera pouco impacto ambiental, de baixa magnitude eventualmente produzida pela obra” e que a equipe técnica do Ipaam realiza o monitoramento periódico da duplicação da Estrada do Tarumã/Avenida do Turismo – Anel Sul. “A obra está sendo executada de acordo com o projeto aprovado, anuído pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas). A Secretaria de Estado de Infraestrutura e Região Metropolitana de Manaus (Seinfra) cumpre todas as medidas de controle ambiental que visam mitigar, minimizar e/ou anular os possíveis impactos gerados pela duplicação da via”, informam.

Ação popular

Juliana Belota é presidente da Associação de Moradores da Rua Caravelle, localizada no Tarumã. Ela foi responsável por uma Ação Popular que embargou as obras do Anel Sul.  

De acordo com a decisão do juiz Diógenes Vidal Pessoa Neto, da Vara Especializada do Meio Ambiente da Comarca de Manaus, “não há dúvida de que as atividades desenvolvidas pela Empresa Construtora e pelo Órgão Governamental constituem prática abusiva, que viola o direito ao meio ambiente devidamente equilibrado”.

Juliana questiona a condução dos órgãos públicos em relação ao bairro, que deveria ser destinado à preservação e à atividades de turismo e lazer: “A gente vê a instalação de inúmeros galpões de indústrias, como se o Tarumã fosse uma área reservada à ampliação do Distrito Industrial de Manaus. E a sociedade não discute. A gente tá falando da última orla preservada com mata ciliar da capital”.

Juliana ainda critica o ‘efeito cascata’ que o Governo desencadeia com o desmatamento em função das obras do Anel Sul: “A gente também faz um apelo ao poder público, para que não se instale uma usina de concreto às margens da cachoeira e não permita que a população parta para uma invasão em cima da cachoeira, porque estão vendo que o Governo está se apropriando, juntamente com indústrias clandestinas de todo tipo, então a população pula para dentro da margem da cachoeira”, denunciou. 

“A gente entende que essa é uma obra de conexão viária dentro da cidade e que o Governo tem necessidade de fazer. O que nós estamos questionando são alguns critérios e ilegalidades dentro da APA do Tarumã e que ações de compensações sejam discutidas”, concluiu a moradora do bairro.

Juliana conta que desistiu do processo, pois, juntamente com outras organizações envolvidas com a APA do Tarumã, vai protocolar uma nova Ação Civil Pública. Após a desistência, as obras retornaram.

Esse conteúdo é resultado da bolsa-reportagem concedida aos alunos do Minicurso de Jornalismo Ambiental, realizado por ((o))eco, Imazon e Fundação Amazônia Sustentável

  • João Felipe Serrão

    Estudante de Comunicação Social - Jornalismo na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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Comentários 1

  1. MURILO GUERRA DE OLIVEIRA diz:

    Infelizmente é isso mesmo este pessoal de meio ambiente ,e órgãos afins ,na maioria das vezes são prepotentes,criadores de dificuldades para vender facilidades, tenho propriedade rural ,uns dos primeiros a fazer georreferenciamento, até hoje 13/05/2022 não concluído sempre falta uma virgula etc,. Não há cidadão contribuinte buquê resista ,na mesma toada do judiciário ,!