Reportagens

Tem predador no quintal

Quem acha que o sul do Brasil não tem nada a ver com o norte está errado. Nas matas gaúchas, felinos selvagens atacam ovelhas e tiram o sono de pesquisadores.

Renan Antunes de Oliveira ·
8 de abril de 2005 · 20 anos atrás

Atenção crianças do Sul Maravilha, de Floripa a Curitiba, de Caxias do Sul a Porto Alegre: cuidado que o leão pode pegar vocês. Pras do interiorzão gaúcho e Santa Catarina, em especial as freqüentadoras de escolas rurais: abram o olho no caminho do colégio porque o bicho existe mesmo e está solto no mato.

O aviso é necessário porque, apesar da crença geral de que grandes felinos só existem lá pros lados da Amazônia, a presença do puma está confirmadíssima na região Sul, pelo menos onde existir uma nesga de mato. Nos grotões, pros caboclos, leão, onça, leão-baio e puma são a mesma coisa.

Puma é um só. O nome parece daquele bicho de filme americano. Mas ele sempre existiu nas Américas, da Patagônia ao Canadá – andou uns tempos sumido, mas estava era recolhido ao pouco verde que existe.


Alícia estava caçando ovelhas, seu alimento favorito na região. A foto foi capturada através de um equipamento montado pelo biólogo Peter Crawshaw. Uma câmara com flash, uma isca e um equipamento com raios infravermelhos – quando o bicho cruza o raio a câmara dispara.

Peter está acampado no parque desde 2001 tocando o projeto Conservação do Puma no Sul do Brasil, criado por ele mesmo. O estudo faz parte do Centro Nacional de Pesquisa de Predadores Naturais e tem o apoio do Ibama. É o irmão menos conhecido dos projetos Tamar (para tartarugas-marinhas) e Peixe-Boi.


Os fazendeiros da região travam com os felinos uma guerra surda e feroz – ao contrário do Pantanal, onde onceiros fazem da caça um esporte, os criadores de ovelha atacam os pumas para salvar seus rebanhos. E sem armas, com veneno – como o puma tem o hábito de enterrar parte da presa para comer mais tarde, o veneno é colocado na ovelha abatida.

Este tipo de guerra suja já tinha acabado com a onça pintada, extinta desde os anos 70. Dizem que a última onça gaúcha está empalhada num bar em São José dos Ausentes, muito propriamente conhecido como “Bar da Onça”.

Sem a grande predadora, de lá para cá a vida do puma ficou mais fácil. Ele herdou todo território de caça, foge dos humanos, se embrenha cada vez mais alto nas serras. Peter acredita que hoje 500 deles vivam por ali, nas encostas, descendo ao litoral pelos corredores criados com as áreas de preservação – cada vez mais perto do homem.

Como predador no topo da cadeia alimentar, o puma come tudo que vier abaixo – ele teme o homem porque o bípede geralmente é maior, exceto as crianças. O almoço deles são as lebres, simpáticos animaizinhos nocivos à agricultura que, apostamos que esta você não sabia, não são nativos. A lebre foi importada da Argentina há décadas para uma experiência, adaptou-se aos campos gordos do Brasil e nunca mais voltou.


Quando os criadores envenenam as carcaças, eles matam não só pumas, mas também as jaguatiticas e os graxains, aumentando o desequilíbrio: as lebres, que se multiplicam como coelhos, viram praga nas zonas sem predadores. Daí a importância da pesquisa do Ibama.

Para entender melhor a bicharada Peter ainda precisa capturar animais como Alícia, botar um colar magnético no pescoço e seguir seus passos. Ele vai espalhar armadilhas com laços de aço, pra pegar pumas pela pata. Ao contrário de lobos, que roem o próprio osso para escapar, os felinos esperam a chegada do caçador: eles sabem que com três patas nunca poderão sobreviver, então acham melhor pagar pra ver.

Os pumas vivem num território que começa em Lages, em SC, passa por São Joaquim e desce ao RS – portanto não é totalmente improvável que você vá ver neve ou participar da festa da Maçã e acabe na pança de um deles.

O registro histórico deles na região data dos primeiros tropeiros, aqueles que levavam mulas das charqueadas gaúchas para Sorocaba: eles tinham que fazer cercados com fogueiras à noite para afastar o que chamavam de tigres e leões-baio. Eram onças e pumas, que a caboclada da época do onça não sabia distinguir.

Aliás hoje em dia também é difícil. A onça pintada é o maior predador das Américas. Seu nome científico é Panthera onca, assim mesmo, sem cedilha. As onças pantaneiras podem pesar até 130 quilos. Crescem bastante porque comem caça gorda.

As onças da floresta são menores, mais leves, pesam até 60. Não cresceram porque a caça delas seriam os macacos, mas estes espertamente vivem nas árvores. Então elas se acostumaram com uma dieta mais pobre e encolheram, geração a geração. A pantera negra é a mesma onça pintada com problemas de pele. O jaguar é a onça, com nome trocado nas florestas dos povos de língua espanhola. Leopardo e leão só existem na África e em circos.

O puma é outra espécie, o segundo maior predador brasileiro. Onde tem onça, puma foge, porque ele pesa menos, entre 50 e 60 quilos, só os mais bem alimentados chegam a 70, no máximo. A vantagem que garantiu a sobrevivência do puma no Sul foi que eles são mais férteis em estado selvagem. Sua média é de dois filhos a cada ano e meio, 63 dias de gestação e o resto de amamentação.

Um macho precisa de três ou quatro fêmeas por território, que ele demarca com urina em caminhadas a cada duas semanas. A área é do tamanho necessário para que cresçam suas ninhadas. Os machos vivem até 15 anos, mas aos 10 começam a fraquejar. Quando deixam de dar aquelas caminhadas, os mais novos não sentem mais o cheiro da barreira e invadem, tomam suas fêmeas, os botam pra correr – sabe-se lá para onde vai um velho puma abatido.

Eles são animais noturnos. Podem caçar também na neblina. Depois que eles descobriram que as ovelhas ficam quietinhas e não reagem, desenvolveram toda manha para atacar as criações. Um puma comeria apenas 10 ovelhas por ano, tolerável para os criadores.

Mas uma ovelha daria para uma semana se puma tivesse freezer. A mente do predador está condicionada para matar. Ele associa sua corrida contra a presa como garantia de comida, guiado pelo instinto de sobrevivência. Se entra num curral mata todas as ovelhas que enxerga, até cansar – há relatos de 70 mortes num só lote. É aí que o fazendeiro pira e quer vingança, contrata caçadores, bota cães, cercas eletrificadas, espalha veneno.

A missão do Ibama agora é encontrar os pumas para protegê-los dos humanos. Quanto a este bicho a missão é educá-los. Por exemplo: puma foge do fogo, logo, fugiria da luz. Peter precisa ensinar os criadores a usar luzes para proteger o rebanho, salvando ovelhas e salvando pumas – deixando a briga deles pela sobrevivência por conta da natureza.

Leia também

Colunas
11 de novembro de 2024

As COPs sob o jugo do petróleo

Estamos revivendo nas COPs a velha fábula da raposa no galinheiro, onde os países mais envolvidos com a produção de petróleo sediam conferências climáticas em que um dos grandes objetivos é justamente eliminar os combustíveis fósseis

Notícias
11 de novembro de 2024

Sentados sobre petróleo, países se reúnem no Azerbaijão para discutir crise climática

“Nós devemos investir hoje para salvar o amanhã”, diz presidente da COP29, Mukhtar Babayev, que já foi vice-presidente de petrolífera estatal no país

Colunas
11 de novembro de 2024

A ciência precisa estar conectada com a cultura 

Se influencers e criadores de conteúdo convertem milhares de reais em compras, será que eles não engajam pessoas na pauta climática?

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.