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Mudanças climáticas impõem desafios ambientais ao Pantanal

Maior área úmida do mundo, bioma passa por transformações e encara os mesmos problemas ambientais da Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica, aos quais está interligado.

Ana Lúcia Azevedo ·
10 de outubro de 2022 · 2 anos atrás

Mudanças climáticas impõem desafios ambientais ao Pantanal

Maior área úmida do mundo, bioma passa por transformações e encara os mesmos problemas ambientais da Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica, aos quais está interligado.

Por Ana Lúcia Azevedo

Fotos e Vídeos: Márcia Foletto

Azul é o céu. Verde é a mata. Branco estampa a areia das praias. Rosa pinta a paisagem, seja nas asas dos colhereiros ou nas copas dos ipês em flor. Mas o Pantanal onde Enilza da Silva nasceu e se criou mudou. A beleza continua a imperar, mas a pescadora artesanal reconhece no cenário sinais de ameaças à natureza e ao seu modo de vida.

Dona Nilza, como ela é conhecida, tem 51 anos e mora num remanso, numa das incontáveis curvas do Rio Paraguai, nas cercanias do Morro Pelado, em Cáceres, Mato Grosso. A região é conhecida pela abundância de peixes, que sustenta a pesca e o turismo.

Ali a vegetação de Cerrado do contíguo planalto parece mergulhar nos alagados e se fundir aos campos flutuantes. Mas as lentas águas do Paraguai seguem seu caminho planície abaixo por um leito mais seco e assoreado. Chove menos e esquenta mais. 

“O rio mudou muito nos últimos anos. Está assoreado, com menos água, mesmo fora da estação seca”, lamenta ela. 

Matas que nunca haviam queimado com intensidade arderam até virarem cinzas em 2020 e deixaram em seu lugar os escombros de árvores e o silêncio dos bichos que se foram e não retornaram.

“Depois do fogo, muitos bichos sumiram. Aqui tinha tanto bicho. Apareciam onças, antas, mutuns, macacos. Agora é raro. Tentamos salvar os animais, fizemos aceiros para segurar as chamas, demos comida e água, mas não bastou”, conta a pescadora, que mora numa casa sem paredes, protegida apenas por tela contra mosquitos, os únicos animais que dona Nilza e sua família realmente temem.

Ela ainda chora ao lembrar dos gemidos de dor das onças e dos gritos de desespero dos macacos engolidos por labaredas. As queimadas de 2020 mataram em todo o Pantanal pelo menos 17 milhões de vertebrados, segundo um estudo publicado na revista Scientific Reports, liderado por Walfrido Moraes Tomas, do Laboratório de Vida Selvagem da Embrapa Pantanal, localizado em Corumbá (MS).

Um aperto no coração do Brasil  

Eixo central do Pantanal, o Rio Paraguai, como os bichos, tem sido calado. Ano a ano, a areia se acumula e fecha as muitas bocas do rio. É por elas que entra a água que no período de cheia amplifica baías e espalha a vida.

No quintal da família de pescadores, há ninfeias e aguapés; cambarás amarelos, espécie de árvore da Amazônia; piúvas, os ipês-roxos, da Mata Atlântica; e mais distante, numa cordilheira (área não inundável), palmeiras acuris e paratudos, os ipês-amarelos tão característicos do Cerrado. Plantado à beira do Rio Paraguai e nas bordas dos chapadões do planalto, o quintal de dona Nilza é uma síntese, miniatura, dos desafios do Pantanal. 

Com 151 mil km², o bioma é o menor do país e ocupa 1,8% do território nacional, nos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

A fragilidade de um éden interconectado

Maior planície inundável do mundo, o Pantanal é Patrimônio Nacional pela Constituição de 1988 e Reserva da Biosfera da Unesco. É uma área de acumulação e purificação de água e centro de manutenção de biodiversidade.

Mas é consenso na ciência que não se pode pensar no Pantanal sozinho, isolado. Ele está no coração do Brasil, é influenciado pela Amazônia e depende umbilicalmente do que acontece no Cerrado do planalto, onde estão as mais de 4.000 nascentes dos rios, destaca Marcos Rosa, coordenador-técnico do MapBiomas. O certo é pensar na Bacia do Alto Paraguai (BAP), que inclui o planalto, de onde vem a água e na planície, por ela alagada.

“A maior ameaça ao Pantanal está fora dele, no planalto, que não tem a proteção do mesmo arcabouço legal. Sem as águas do planalto, o Pantanal deixa de existir, já passou da hora de integrar a proteção da bacia”, afirma Gustavo Figueirôa, diretor de Engajamento e Comunicação do Instituto Socioambiental da Bacia do Alto Paraguai SOS Pantanal, organização que participa do mapeamento e monitoramento do bioma.

“O aumento do desmatamento na Amazônia diminui o volume de água dividido com o Pantanal. A construção de barragens no planalto retém a água que fluiria para a planície pantaneira. O uso dos rios como hidrovias reduz a capacidade de transbordamento para a planície. O solo mais seco, o desmatamento, a introdução de novas culturas (principalmente soja), o intenso uso do fogo e a pronunciada falta de chuva são as grandes ameaças à segurança hídrica do bioma”, resume o capítulo sobre ameaças ao Pantanal na mais completa obra sobre sustentabilidade global, o monumental “The Palgrave Handbook of Global Sustainability” (Springer Nature), obra de referência internacional.

Principal autora do capítulo, Solange Ikeda-Castrillon, do Centro de Estudos em Limnologia, Biodiversidade e Etnobiologia do Pantanal da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), enfatiza que integração é a palavra de ordem para entender o Pantanal e seus desafios: “É preciso uma visão da interdependência de planalto e planície, do meio ambiente e da cultura pantaneira. São indissociáveis. Leis, processos de licenciamento e estudos precisam contemplar essa ligação”, frisa Ikeda.

“A maior ameaça ao Pantanal está fora dele, no planalto. Sem as águas do planalto, o Pantanal deixa de existir”, afirma Gustavo Figueirôa, da SOS Pantanal

Mais calor e menos água

Sinais que pescadores experientes como dona Nilza enxergam na natureza cientistas transformam em números que permitem avaliar o tamanho da mudança, identificar suas causas e propor soluções.

O Pantanal é uma das regiões da Terra que mais esquentou: de 3 a 4 graus Celsius em quatro décadas, enquanto a média do planeta é de 1,2ºC. É um dos literais pontos quentes (do inglês hotspots) de aumento da temperatura do planeta, destaca a meteorologista Renata Libonati, coordenadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ).

As consequências das mudanças climáticas se fazem sentir no regime hídrico (aumento da seca, redução da vazão dos rios e do pulso de inundação) e na biodiversidade. 

A segurança hídrica nunca esteve tão ameaçada numa região cuja existência e o ritmo são determinados pela água. Análises do MapBiomas mostram que a superfície de água do Pantanal diminuiu 29% em três décadas. 

Nada menos que 16% da massa d’água do Pantanal Norte foi perdida apenas nos últimos dez anos, revelou pesquisa do grupo de Solange Ikeda-Castrillon

O período de inundação também diminuiu de seis para três meses, concentrado em dezembro, janeiro e fevereiro. E da inundação depende o fluxo de nutrientes que alimenta o Pantanal, explica Eduardo Reis Rosa, coordenador do mapeamento do MapBiomas.

“O Pantanal é onde a questão hídrica se tornou mais presente. Hoje o desafio é mostrar que sem cuidar do planalto não existe Pantanal e que a economia precisa do meio ambiente”, destaca Angelo Lima, coordenador de Mobilização Social do Pacto pela Restauração do Pantanal, movimento que reúne sociedade civil, poder público e setor privado.

Fogo no reino das águas

A partir de 2019, o Pantanal passou de paraíso natural a recordista de desastres. É, proporcionalmente, o bioma mais afetado por queimadas: 30% dele queimou em 2020 contra a média histórica de 8%, revelam dados do Lasa. E, de todos os biomas brasileiros, o Pantanal foi o que mais queimou, proporcionalmente, nos últimos 36 anos: 57% de seu território já pegou fogo pelo menos uma vez no período, segundo o MapBiomas.

As queimadas de 2020 destruíram uma área de 4 milhões de hectares, o equivalente a um terço do Pantanal. Libonati destaca que 43% da área atingida pelos incêndios de 2020 nunca havia queimado antes. É uma vasta área de alagados e florestas do Pantanal Norte, mais influenciada pela Amazônia e vulnerável ao fogo.

“Não se tratam de projeções. São mudanças que já nos afetam, com tendência de agravamento”, frisa Libonati.

Cerca de 40% do Pantanal são cobertos por vegetação savânica, de Cerrado, que depende do fogo para o seu desenvolvimento. Normalmente, o fogo no Pantanal ocorria de maio a junho, em focos de pequena intensidade e extensão. Esses pequenos incêndios ajudam a abrir caminho para o desenvolvimento da vegetação de Cerrado. Porém, o período de incêndios se deslocou para a época mais seca e quente, de junho a outubro, e as queimadas se tornaram mais intensas e frequentes.

“Uma coisa é o fogo sazonal localizado, outra são as queimadas mais intensas e recorrentes. Contra elas não há resiliência”, observa Libonati. 

Estudos do grupo de Libonati mostraram que só 5% das queimadas são naturais, causadas por raios e quase sempre no verão. Os 95% restantes são provocados por ação humana, intencional ou não. Em 2020, em plena estação seca, 100% dos incêndios foram causados pelo homem.

Árvores queimadas pelo grande incêndio de 2020 podem ser vistas por quem passa na Rodovia Transpantaneira, que liga o município de Poconé a Porto Jofre, área do Parque Estadual Encontro das Águas. Foto: Márcia Foletto

A maior velocidade de desmatamento do país

Dados do MapBiomas revelam que o Pantanal é o bioma brasileiro com a maior área média de área desmatada por alerta (97,2 hectares) e com a maior velocidade média de desmatamento do Brasil. São 78 ha/dia (ou 78 mil m2/dia) de áreas desmatadas, sendo 48,6% de florestas, 30,8% de savana e 17,7% de campos naturais.

O desmatamento que antes ficava nas bordas, no planalto, agora avança pela planície. Desmatadores se aproveitam da seca que deixou vulneráveis áreas antes alagadas e que, dessa forma, são transformadas em pasto e, num segundo momento, em plantação.

De 1985 a 2021, a área de pastagens cresceu 2,9 vezes e hoje ocupa 16,2% do bioma. Um estudo liderado por Ciomara Miranda, do Instituto Federal do Mato Grosso do Sul, em Aquidauana (MS), projeta que em 2030 a área de vegetação densa (arbórea e arbustiva) poderá estar reduzida a 14%, com consequências para o clima, a água e a biodiversidade. Hoje, segundo o MapBiomas, as florestas cobrem 32,6% do Pantanal.

O Pantanal é ainda afetado pela devastação da Amazônia, que explodiu desde 2018 e só nos primeiros oito meses de 2022 registrou a maior taxa de desmatamento em 15 anos, com 7.943 km² de florestas derrubados, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). 

“O Pantanal é filho da Amazônia. As chuvas que caem na Bacia do Rio Paraguai e que formam o Pantanal vêm pelos rios voadores a partir da Floresta Amazônica”, salienta Walfrido Moraes Tomas, da Embrapa Pantanal.

Ataque de cupins

É nesse cenário que os governos do MT e do MS têm licenciado a construção de portos e de PCHs (pequenas hidroelétricas) no Rio Paraguai e tributários. Figueirôa enfatiza que agora grandes projetos, como o do Tramo Norte (trecho de Cáceres a Corumbá) da hidrovia do Paraguai, são licenciados em pedaços, o que reduz as exigências legais e facilita a aprovação. É o que especialistas chamam de cupinização do Pantanal. 

“Só se considera o dano local de portos e PCHs, mas o estrago é geral, em toda a bacia hidrográfica. E se o impacto na escala da bacia continuar a não ser considerado, vai matar o Pantanal”, alerta Steve Hamilton, professor da Universidade Estadual de Michigan (EUA) e estudioso há 30 anos da hidrologia do Pantanal, onde já morou.

A Bacia do Rio Paraguai está bastante afetada com as variações climáticas. O rio está com a vazão reduzida, o que dificulta a navegação. Mesmo assim, há vários projetos licenciados para portos e PCHs. Na foto, o porto no Rio Paraguai na Cidade de Cáceres, no Mato Grosso. Foto: Márcia Foletto

Uma análise de Hamilton considerou que “o Tramo Norte da hidrovia no Pantanal é particularmente vulnerável à interrupção da navegação devido aos baixos níveis de água. Mesmo na ausência de mudanças climáticas, anos ocasionais de níveis mais baixos de água tornarão a navegação difícil ou impossível, e espera-se que as mudanças climáticas tornem esses anos secos mais frequentes e severos”. 

Porém, os danos causados pelo escavamento de canais para a navegação já estará feito e reduzirá a oferta de água para a planície, criando zonas mortas.

Basta navegar pelo Paraguai para perceber a inviabilidade e o dano que portos podem causar ao rio que literalmente cria o Pantanal. “Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água corre entre pedras: liberdade caça jeito”, ensinava Manoel de Barros (1916-2014), o maior poeta do Pantanal. 

E dona Nilza que vive no rio sabe bem disso. Ela e o marido resgataram em agosto os ocupantes de uma lancha de apenas quatro lugares, encalhada bem no meio do rio, que nesse ponto não chegava a meio metro de profundidade.

“O Pantanal é filho da Amazônia. As chuvas que caem na Bacia do Rio Paraguai e que formam o Pantanal vêm pelos rios voadores a partir da Floresta Amazônica”, salienta Walfrido Moraes Tomas, da Embrapa Pantanal.

Um ataque à fonte de alimentos

A proliferação de barragens das hidrelétricas, principalmente das pequenas (PCHs), afeta a vazão e o fluxo da água dos rios que permitem a existência do Pantanal. 

Na bacia hidrográfica do Alto Paraguai há 47 hidrelétricas em operação. À exceção de quatro, todas são PCHs. Há ainda outros 138 projetos em construção ou planejados, segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA).

As barragens reduzem a água disponível para o Pantanal, afetam o pulso natural de inundação ao qual estão adaptadas a fauna e a flora pantaneiras e impedem a migração de peixes.

Estudo liderado por Ibraim Fantin, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Recursos Hídricos da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), alerta que as hidrelétricas projetadas para o Pantanal podem reduzir em 62% o fluxo de sedimentos transportado pelos rios.

Publicado na revista científica Frontiers in Environmental Science, o trabalho diz que essa redução impactará na oferta de nutrientes que alimentam a base da cadeia de vida pantaneira.

“Uma vez instaladas, o impacto será irreversível, com consequências para a pesca e o turismo”, adverte Fantin.

Em sua casa aberta para a mata e o rio, dona Nilza espera que os bichos voltem. Quer de novo a algazarra dos macacos, as cores das araras e a magia das onças. Também gostaria que populações tradicionais, como as comunidades de pescadores, fossem ouvidas nas decisões que definem o rumo de suas vidas.

Em tempo de mudança climática, o bioma que se costuma considerar um paraíso e que pode voltar a queimar como o inferno está à mercê de decisões alheias à natureza.

“Seja em relação às mudanças climáticas, à construção de hidrovias e hidrelétricas ou ao uso do fogo, a ação humana é que vai determinar o destino do Pantanal”, salienta Renata Libonati.

Cientistas desafiam terreno hostil, jacarés e cobras para restaurar bosques de flores e água

A natureza imprimiu em cor e esculpiu na madeira das árvores a marca da tragédia climática no Pantanal. A memória da seca e das queimadas históricas de 2020 permanece acesa num dos lugares mais remotos e inacessíveis do bioma, a Estação Ecológica de Taiamã, em Cáceres, no Mato Grosso. E é lá que cientistas buscam o segredo para restaurar paisagens, água e vida.

Berçário de aves e peixes, a unidade de conservação federal é uma ilha fluvial relativamente pequena, tem 11.555 hectares, tamanho de uma fazenda pantaneira de médio porte. Mas se torna um lugar de vastidões selvagens porque nela o Rio Paraguai escavou um labirinto de meandros, baías e corixos, que se enrosca em si mesmo pelos campos inundáveis e parece não ter fim. Taiamã é uma lembrança viva dos pantanais de outrora, que assombravam, amedrontavam e encantavam as pessoas que lá se aventuravam.

As cicatrizes do fogo estão nos abobrais, bosques compostos por uma única espécie de árvore de flores de intenso cor-de-abóbora e, por óbvio motivo, chamada de abobreiro (Erythrina fusca). Os abobrais em flor têm a cor do fogo. Dos abobreiros consumidos pelas chamas, restaram cinzas e os troncos calcinados. Quando o fogo se foi e a fumaça se dissipou, fileiras de árvores mortas em pé emergiram na paisagem e lá permanecem.

Água há por todo lado, mas não bastou em 2020 para segurar o fogo que queimou 35% da área da UC, diz Solange Ikeda-Castrillon, que estuda o impacto das queimadas e a restauração do Pantanal. A cientista explica que o fogo se propagou pelo batume, a miscelânea de plantas aquáticas flutuantes característica das margens pantaneiras e dominante em Taiamã. Extinto na superfície, continuava a arder por baixo.

Trabalho de restauração da vegetação da Estação Ecológica de Taiamã, coordenado pela professora Solange Ikeda (na foto em primeiro plano), pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). A área foi devastada pela queimada de 2020. Foto: Márcia Foletto

Casamento da floresta com o oceano

O clima está em mudança no mundo e no Pantanal isso se manifesta na intensificação e no aumento da frequência de extremos de seca e do calor. Combinados, eles criam as condições para queimadas mais devastadoras, como as que ocorreram em 2020, destaca José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), considerado um dos cientistas mais influentes do mundo.

O cientista explica que a vulnerabilidade do Pantanal é extrema. O Pantanal depende do que acontece longe dele. Seu clima é resultado da umidade que entra da Amazônia e das frentes frias vindas do Sul, associadas ao Oceano Atlântico, a cerca de 1.500 quilômetros de distância. 

Marengo é o principal autor do estudo publicado na revista Frontiers in Water que mostrou que em 2019 e 2020 o Pantanal teve seu menor índice de precipitação (até 60% menor do que o normal para a estação chuvosa) e o maior índice de queimadas já registrados.

Pesquisas do grupo de Marengo sugerem que o Pantanal se tornará mais quente e seco, com um aumento de 5ºC a 7ºC na temperatura e 30% de redução das chuvas. 

Um sopro de vida

Ikeda-Castrillon está à frente do Projeto de Restauração da Biodiversidade, Conservação das Águas e Prevenção dos Incêndios das Áreas Úmidas do Pantanal – Estação Ecológica Taiamã. Executado pelo Instituto Gaia, o projeto reúne ONGs, universidades, comunidades e tem o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do Ministério do Meio Ambiente (MMA), do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF) e do Fundo Brasileiro para Biodiversidade (Funbio).

Um nome grande e numerosos integrantes e apoiadores para uma missão ainda maior. Restaurar florestas e campos é difícil, mas no Pantanal é como trabalhar em terra incógnita.

“Nos outros biomas você espera chover para plantar mudas e sementes. Aqui, quando chove, alaga. O que se faz? Estamos correndo contra o tempo para descobrir”, afirma Ikeda.

Os abobreiros formam bosques em que são dominantes, mas uma série de outras espécies arbustivas vivem em sintonia com eles. No Pantanal, cada espécie tem seu tempo certo de plantio e muitas espécies dependem de outras para se desenvolver. Umas precisam estar sob a água, outras fora dela. O fogo devastou todas de uma vez e agora os cientistas se aventuram nos labirintos de Taiamã em busca de sementes para que a restauração seja feita com plantas do mesmo lugar.

O ecólogo e pesquisador Joari Costa de Arruda segue à frente de um grupo de alunos em busca, por exemplo, de sementes de jenipapo, laranjinha-de-pacu e cássia-grande.

A cássia esbanja tanta exuberância quanto o abobreiro e sua copa se enche de cachos de flores rosa, corais e amarelas. Porém, diferentemente do abobreiro, ela não forma bosques. Enquanto o abobreiro suporta inundação de até 1,5 metro de altura, a cássia não cresce em áreas onde a altura da linha d’água passe de um metro. 

Trabalho de restauração da vegetação da Estação Ecológica de Taiamã, coordenado pela professora Solange Ikeda, pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). A área foi devastada pela queimada de 2020. Foto: Márcia Foletto
Trabalho de restauração da vegetação da Estação Ecológica de Taiamã, coordenado pela professora Solange Ikeda, pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). A área foi devastada pela queimada de 2020. Foto: Márcia Foletto

Mergulho no pantanal mais selvagem

Encontrar o equilíbrio para restaurar é a meta de Ikeda, Arruda e seus colegas. E é só parte da missão. Chegar ao abobral calcinado exige força, equilíbrio, fôlego e coragem. O batume afunda do nada. Não é solo para pés humanos. Um passo é na maciez da folhagem, que chega à altura dos olhos. O segundo é em falso, sobre uma cobertura flutuante, que cede ao peso do corpo e onde se afunda até acima da cintura. No passo seguinte, se tomba.

A água sob o batume não se vê. Se sente. Entre juncos, papiros e outras espécies vive uma imensidão de insetos, se escondem moluscos, se enroscam cobras, espreitam jacarés.  Não há pontos de apoio para as mãos. 

Um abobreiro alto e com folhas verdes, que literalmente rebrota das cinzas, não parece apenas imortal, parece inalcançável. Uma travessia de menos de 200 metros do barco até ele cobra o esforço de uma maratona. E é recompensado com a descoberta de que há esperança na desolação e junto dele outros abobreiros tentam sobreviver – há mudinhas e sementes de mais espécies.

A fusão de água e mata alagada de Taiamã abriga tesouros de biodiversidade, como a maior densidade de onças-pintadas do mundo (12 a cada cem quilômetros quadrados). Ali as onças aprenderam a pescar tamanha a fartura de peixes.  

As onças pescadoras de Taiamã são a primeira população de pintadas conhecida a basear a alimentação em peixes, segundo revelou estudo publicado ano passado na revista Ecology.  Armadilhas fotográficas as flagraram capturando piranhas-vermelhas, pacus, cascudos e cacharas. 

Mas as riquezas de Taiamã vão muito além de onças e pacus. Se contam em antas e ariranhas a milhares de garças, tuiuiús e taiamãs, nome pelo qual os trinta-réis são chamados no Pantanal e que dão nome à UC.

“Taiamã é uma joia e precisa ser protegida. O clima, os portos, as PCHs tudo conspira. Mas a natureza resiste”, afirma Joari Arruda.

Os exemplos de São Pedro da Joselândia

Nem todo o Pantanal cabe no idílio das paisagens de lagoas e praias de areias brancas. Há pantanais profundos, distantes dos rios e aonde só se chega por estradas de terra, que, quando não viram lamaçais, têm nuvens de poeira. Mas nem eles escaparam da queimada histórica de 2020. E é em lugares assim que estão em curso projetos inovadores de conservação e restauração do bioma. 

Inovam na proposta e na execução. Numa cultura em que a imagem dominante é a do peão, neles são as mulheres que produzem mudas e estão à frente da prevenção e do combate de incêndios.

“As queimadas de 2020 causaram um pavor que a gente não sabia existir, eram de quatro a cinco focos no mesmo dia. O fogo vinha pela copa das árvores, voava. Mas abriu os olhos dos pantaneiros para o perigo dos incêndios, mostrou que as coisas já não são mais as mesmas”, afirma Míriam Maria da Rosa Amorim, de 31 anos.

Míriam é uma liderança na comunidade de São Pedro da Joselândia, distrito de Barão do Melgaço, Mato Grosso. Situada a 60 quilômetros do porto razoável mais próximo e só acessível por uma estrada esburacada, a Joselândia tem pouco mais de mil habitantes, que vivem da pecuária e da agricultura familiar. 

A localidade de São Pedro da Joselândia foi uma das mais devastadas pelo fogo em 2020. Grupo de moradores formou uma brigada de incêndio, que passou a atuar no ano seguinte. Grupo também montou um viveiro de mudas nativas. Foto: Márcia Foletto

“Vivemos numa cultura muito fechada, isolada e abandonada pelo poder público. Sou mulher, mas combato incêndio, ando no mato atrás de semente. Isso não é visto com bons olhos por muitos, os homens não gostam, mas aturam. Sigo porque se a gente não começar, não vai melhorar nunca”, frisa ela. 

Na Joselândia, jacus e araras dividem o terreiro com galinhas; porcos com catetos e vacas com veados pequenos. As antas são bem mais raras, mas ainda há tamanduás, tatus e lobinhos (cachorros-do-mato). 

Em 2020, o fogo atingiu 90% da comunidade. O fogo calcinou piuvais, paratudais e cambarazais – bosque de ipês-roxos, amarelos e de cambarás (uma árvore de flor amarela em formato de castiçal).

A comunidade recebeu duas iniciativas. A primeira foi a estruturação, em 2021, de uma Brigada Pantaneira, iniciativa que teve à frente o Instituto SOS Pantanal, que no local fez parceria com a Associação Rural de São Pedro da Joselândia, doou equipamentos e deu treinamento de combate e prevenção de incêndios para moradores. 

A brigada da Joselândia foi a primeira das 24 que o SOS Pantanal capacitou no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul, em parceria com o Corpo de Bombeiros e o PrevFogo (Ibama). A brigada da Joselândia atuou com sucesso em debelar as queimadas de  2021 e este ano está a postos para qualquer necessidade.

Brigadas Pantaneiras. A localidade de São Pedro da Joselândia foi uma das mais devastadas pelo fogo em 2020. Grupo de moradores formou uma brigada de incêndio, que passou a atuar no ano seguinte. Na foto, Miriam Maria Rosa Amorim, e Terezinha de Jesus da Silva (de saia). Foto: Márcia Foletto

A segunda iniciativa é parte do projeto “Recuperação de Florestas Ribeirinhas Pantaneiras: beneficiando água, solo, peixes e populações do entorno da RPPN Sesc Pantanal”, chamado Aquarela Pantanal, integrado por numerosas instituições públicas e privadas e financiado pelo GEF Terrestre/Funbio. O projeto é apoiado pelo movimento Mupan (Mulheres em Ação no Pantanal) e pela ONG Wetlands International Brasil.

No projeto de restauração, do qual Míriam é mobilizadora, as mulheres recebem bolsa-auxílio e capacitação. O projeto é o primeiro a produzir mudas de espécies pantaneiras em grande escala, com planejamento inicial de 40 mil.

Só na Joselândia, 20 mil já foram produzidas. As mulheres coletam sementes de mais de 30 espécies típicas da região, produzem as mudas e as encaminham para a vizinha RPPN Sesc Pantanal, que com 108 mil hectares é a maior reserva particular do patrimônio natural do Brasil. A RPPN, sediada em Poconé, teve mais de 90% da área afetada pelo fogo em 2020. Ela é o destino de 40 mil mudas do projeto.

“É duro, pelo serviço pesado e pelo machismo, mas a gente dá conta”, diz Miriam, de 31 anos. Ela quer que os filhos conheçam a paisagem de sua infância, que ano a ano vem sendo perdida. “Restaurar é distribuir o amor de mãe. Amor pela terra e por nossos filhos”, enfatiza ela, que mobiliza as mulheres da Joselândia em parceria com a amiga Terezinha de Jesus Gumercindo, de 33 anos. As duas combateram juntas o fogo e agora trabalham para que ele não volte.

Quando Miriam e Terezinha eram meninas, de janeiro a maio os campos ficavam inundados, os corixos se enchiam d’água e as crianças da Joselândia brincavam de mergulhar das árvores, enquanto os adultos pescavam.

O projeto é o primeiro a produzir mudas de espécies pantaneiras em grande escala, com planejamento inicial de 40 mil. Só em Joselândia, 20 mil já foram produzidas. As mulheres coletam sementes de mais de 30 espécies típicas da região, produzem as mudas e as encaminham para a vizinha RPPN Sesc Pantanal.

Há seis anos a água não chega perto da comunidade. Os filhos de Miriam, Nicolas, de 11 anos, e Sofia, 9 anos, não sabem o que é remar em canoa nem tomar banho de rio. 

“Está mais quente, muitas plantas sumiram, os bichos também. O fogo de 2020 só piorou o que a gente já via minguar”, diz Terezinha.

Ela mostra uma copaíba centenária num lugar conhecido como Corixo do Gregório. Há algumas poças e um fio d’água, mas nada que lembre o riozinho de outrora, do tempo da infância de Miriam e Terezinha, profundo o suficiente para cobrir os adultos e transformar galhos de árvore em trampolins improvisados. 

A copaíba testemunhou a alegria dos tempos de fartura de  água, viu a tristeza da seca e agora assiste ao recomeço. É dela que vêm as sementes coletadas no projeto e a sombra para alívio das amigas.

“Sofremos muito em 2020 e 21, aprendemos a fogo, no desespero. Mas aprendemos. Também estamos conquistando nosso espaço junto dos homens, nem à frente nem atrás, é do lado. Mulher pantaneira é guerreira e tem esperança. Fazia seis anos que não havia flores. Esse ano, choveu e floriu. Está cheia de flor a Joselândia”, diz Terezinha.

Ariranhas, as fiscais da natureza que agitam as águas do Pantanal

As águas dos rios pantaneiros correm com lendária lentidão e criam cenários onde parecem reinar silêncio e tranquilidade. Quase sempre é assim. Mas tudo muda quando há ariranhas na área. As maiores lontras do mundo vivem em permanente agitação. Onde tem ariranha, há algazarra e animação. E também equilíbrio ambiental, pois ariranha só vive em ambiente saudável, asseguram cientistas.

As ariranhas (Pteronura brasiliensis) já habitaram a Mata Atlântica e ocasionalmente são encontradas no Cerrado. Mas a caça e a degradação ambiental as levaram às raias da extinção. A espécie resiste apenas na Amazônia e no Pantanal, onde a população total é incerta, não mais do que 3.000 lontras gigantes. Elas chegam a 1,7 metro e podem pesar mais de 30 quilos.

“Elas são ótimas indicadoras de qualidade ambiental porque têm extrema sensibilidade a alterações causadas pelo ser humano”, destaca Caroline Leuchtenberger, especialista em lontras da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), fundadora do Projeto Ariranhas e professora do Instituto Federal Farroupilha, em Panambi, no Rio Grande do Sul.

Parque Estadual Parque das Águas, localizado em Porto Jofre, município de Poconé, Pantanal Norte, no Mato Grosso. Na foto, ariranhas. Foto de Márcia Foletto

O Projeto Ariranhas busca ampliar o conhecimento sobre as ariranhas e tem fomentado o turismo de observação dessas lontras no Pantanal. Devido a um ataque no zoo de Brasília, nos anos 1970, as ariranhas ganharam a fama de ferozes. Hoje, as ariranhas estão entre as espécies que mais sucesso fazem entre os turistas que vão ao Pantanal.

“O incidente de Brasília foi uma situação anômala, num ambiente confinado. Na natureza, as ariranhas não atacam se não forem provocadas. Estão entre os animais mais interessantes de se observar em seu ambiente natural”, diz a cientista.

Mas se houver muito ruído – não o delas, diga-se – e contaminação, elas vão embora. Ariranhas são do barulho. O mundo delas é feito de som. Elas brigam em altos brados, assobiam e dão uma espécie de risada umas para as outras, berram com jacarés. E saboreiam suas presas com sonoros e gulosos nham, nham, nham. Curiosas, emitem sons que mais parecem gritinhos de assombro.

Altamente sociáveis e comunicativas, vivem em grupos que podem chegar a reunir mais de dez animais. 

Elas fazem jus ao apelido de onças do rio, não pela ferocidade, mas pela determinação e audácia. Botam onças-pintadas para correr, não se intimidam e podem perseguir jacarés. Põem ordem nos rios e mantém sob controle a população de piranhas, um de seus pratos favoritos.

“Sem as ariranhas, as piranhas, que já são naturalmente abundantes, podem ter uma explosão populacional e devorar filhotes de espécies de peixes pantaneiros de interesse comercial”, observa Leuchtenberger.

As ariranhas comem praticamente apenas peixes. Só na seca, em caso de fome, podem recorrer a caranguejos e eventuais jacarés.

Trabalhos pioneiros integrados por Leuchtenberger identificaram um repertório de 15 sons diferentes e variadas interações sociais. Elas gritam para defender seu território – detestam invasões – e parecem discutir entre si, principalmente, se há comida em jogo. 

“As ariranhas são muito inteligentes e têm estratégias de grupo para se defender e caçar”, frisa Leuchtenberger.

Mas quando o assunto é comida, a vida em grupo se transforma e é cada ariranha por si. Quem pega um peixe não compartilha. 

Parque Estadual Parque das Águas, localizado em Porto Jofre, município de Poconé, Pantanal Norte, no Mato Grosso. Na foto, ariranhas. Foto: Márcia Foletto

É assim a vida do Três Irmãos, nome em alusão ao rio no Pantanal de Poconé, onde vivem as lontras gigantes e não as ariranhas do grupo específico, que são cinco e não três. O Rio Três Irmãos tem praias de areia branca, barrancos vermelhos e águas frescas e turvas, o ambiente ideal para as lontras exigentes.

Ao todo, diz Ailton Lara, guia e dono de pousada, há seis grupos em Porto Jofre.

Após perseguirem e expulsarem um jacaré de cerca de dois metros que tentava invadir seu território num barranco do rio, as ariranhas do Três Irmãos voltaram a sua rotina de pescadoras. E dela só saíram para tentar “convencer”, com um repertório variado de lamentos e exclamações, o macho dominante do grupo a dividir o muçum (uma espécie de enguia de água doce, também chamado de peixe-cobra) que havia capturado. Em vão. Ele comeu sozinho, a despeito da indignação das outras lontras.

As ariranhas passam 60% de seu tempo pescando e comendo – ingerem até 10% de seu peso por dia. Não é gula. É necessidade, para manter o grande gasto energético de sua vida semiaquática. Vão à terra somente para se refugiar e secar sua pelagem, que tem a maciez do veludo.

Paradoxalmente, os filhotes de ariranha não sabem nadar e são vulneráveis nos incêndios a morrer queimados ou afogados em tentativas de fuga de suas tocas. Em 2020 muitos filhotes morreram assim, com impacto ainda desconhecido sobre a população da espécie.

“As ariranhas são corajosas, não têm medo de nada. Mas não têm defesas contra o ser humano. É por isso que nós difundimos o conhecimento sobre essa espécie fascinante, que tem muito a nos ensinar sobre o equilíbrio ambiental”, enfatiza Caroline Leuchtenberger.

*Essa reportagem faz parte do especial Pantanal em Foco do ((o))eco e foi realizada em parceria com o jornal O Globo

  • Ana Lúcia Azevedo

    Ana Lucia Azevedo é repórter especial do jornal O Globo e cobre as áreas de meio ambiente, saúde e ciência há 33 anos.

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