Era final de tarde, em agosto do ano passado. Valdemar Clemente voltava para a sede da Fazenda Barra Bonita I, em Três Lagoas, no interior do Mato Grosso do Sul, quando no caminho uma cena chamou sua atenção. Completamente branco, era um tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) que tinha acabado de cruzar seu caminho. Ele ainda não sabia, mas aquele se tratava de um registro inédito de tamanduá-bandeira com a condição genética que caracteriza o albinismo.
Surpreendido pela cena, ele e outro colega, que juntos encerravam o expediente como encarregados, desceram do trator onde estavam e começaram a tirar fotos do animal. Publicado na internet, foi questão de tempo até o registro chegar à Polícia Militar Ambiental (PMA) do Mato Grosso do Sul. “Essas imagens chegaram ao conhecimento da PMA de Três Lagoas, que contatou o ICAS (Instituto de Conservação de Animais Silvestres) de Campo Grande”, conta a ((o))eco o encarregado da fazenda.
No primeiro contato, o instituto apresentou a intenção de monitorar o mamífero.“[Se tratava do] primeiro registro científico de tamanduá-bandeira albino no mundo”, também relata a ((o))eco o médico veterinário Mário Alves, que atua com animais em vida livre no ICAS, através do projeto Bandeiras e Rodovias – iniciativa que desde 2017 realiza estudos de conservação e monitoramento do tamanduá-bandeira no Cerrado sul-mato-grossense, assim como elabora medidas de mitigação contra colisões veiculares entre a espécie.
Com fotos e vídeos do tamanduá, pesquisadores montaram uma equipe de campo na fazenda, que tinha o objetivo de instalar um colete com GPS no tamanduá, justamente para poder acompanhar o seu comportamento na natureza. Uma semana depois, no entanto, veio a notícia triste. “No último dia, a equipe já cansada e quase desistindo, nós da fazenda fomos dar uma mão para tentar encontrar o tamanduá. Para nossa alegria e tristeza, encontramos o animal, porém morto”, relembra Clemente. A suspeita era que o animal tivesse sido predado por um animal selvagem. “Ali é uma área que tem registro de onça-parda”, comenta Alves.
Os pesquisadores, então, voltavam para Campo Grande (MS). O estudo com o mamífero nem tinha começado e já estava encerrado. Pelo menos era o que pensava a equipe do ICAS até agosto deste ano, quando exatamente um ano depois desse primeiro registro os veterinários foram surpreendidos com a notícia de que outro tamanduá-bandeira albino tinha sido visto na fazenda.
“Um dos nossos funcionários viu um tamanduá filhote sendo carregado pela mãe, e parecia ser albino, mas não deu para filmar. Não demos muito crédito, até porque tínhamos a certeza que o único albino a onça havia comido”, relata o encarregado.
A dúvida não durou muito porque dias depois outro funcionário disse ter visto o mesmo tamanduá-bandeira albino na Fazenda Barra Bonita I, mas dessa vez ele tinha tirado fotos. Estava confirmada então a segunda ocorrência da condição genética entre o mamífero. E mais que isso: no mesmo estado, no mesmo município e na mesma fazenda.
Quando foram informados sobre o achado, os pesquisadores do ICAS não acreditaram. “Foi uma surpresa. Lá em 2021 a gente tinha expectativa de já começar esse monitoramento”, relembra o médico veterinário. Mas tanto era verdade que dias depois eles já estavam na fazenda com uma nova equipe para encontrar o tamanduá. “Nesse mesmo período, a aparição do filhote albino com a mãe ficou mais comum. Sempre encontrávamos ele nos campos”, conta Clemente sobre a espera do retorno do ICAS à fazenda.
Diferente da primeira, desta vez não levou muito tempo para o encontro com o Alvinho, nome que o filhote recebeu na fazenda por conta da cor. No mesmo dia, com a ajuda de outros funcionários da fazenda, os veterinários encontraram o tamanduá-bandeira caçando, com a mãe próxima a ele cerca de 300 metros.
Oportunidade rara
“Foi realmente surpreendente, porque não é fácil encontrar um bicho em uma fazenda. Eles viram o animal, [mas] às vezes depois você não consegue mais ver. Felizmente a gente conseguiu encontrar ele com a ajuda do pessoal”, comenta Alves.
Para o pesquisador, o estudo, que teve início em setembro após a instalação do colete em Alvinho, é inédito por vários motivos. O primeiro deles se deve ao fato de não se tratar pura e simplesmente de um registro de tamanduá-bandeira albino. “Existem muitos registros de albinismo em outras espécies? Existem. Mas é muito raro um projeto que consiga a oportunidade de acompanhar o desenvolvimento do indivíduo”, diz ele.
“Você registrar a ocorrência do albinismo é uma coisa, [mas] o que a gente está propondo é seguir esse animal no passo a passo dele, no desenvolvimento”, completa o médico veterinário, ao enfatizar que os resultados do monitoramento devem servir para entender como mamíferos albinos, no geral, se comportam e se desenvolvem.
O segundo motivo tem a ver com o registro em si, que segundo o ICAS dá sequência ao de 2021, considerado o primeiro registro científico do mundo de um tamanduá-bandeira albino. “Já tem registros de tamanduá-mirim [com albinismo], que é aquele espécie menor, [mas] o tamanduá-bandeira de agora é o segundo registro”, explica Alves.
A possibilidade consanguínea
Desde que recebeu o colete, o comportamento de Alvinho vem sendo acompanhado pelos pesquisadores. A cada 15 dias, o filhote recebe a visita presencial de um médico veterinário, que ajusta o seu colete. Isso porque o mamífero está em fase de crescimento. “Eu vou lá ver se está tudo bem com ele, se ele ainda está com a mãe ou se já começou a explorar o cerrado de maneira independente”, conta o pesquisador.
Preliminarmente, a equipe do ICAS considera a hipótese de que Alvinho seja irmão do tamanduá encontrado no ano passado. Ou seja, também filhote da mesma mãe. O fato da reprodução dos tamanduás-bandeira ser anual, somado a coincidência do segundo registro ter acontecido exatamente um ano depois do primeiro, sustenta essa possibilidade, que ainda deve ser confirmada a partir de exames laboratoriais.
“A gente não pode afirmar isso cientificamente, mas é uma hipótese forte. Foi na mesma fazenda, exatamente no mesmo pasto”, pondera o médico veterinário.
Se confirmada a hipótese, passa-se então a investigar a possibilidade de que a mãe dos tamanduás-bandeira possa ter algum gene que esteja propiciando a ocorrência de albinismo. “Mas isso vai ser corroborado com prova genética. A gente já enviou amostras genéticas da mãe e dos dois filhotes para o Laboratório de Bioquímica e Genética Aplicada da UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos)”, comenta.
Tamanduá-bandeira: características e ameaças
O tamanduá-bandeira é um mamífero que pertence à ordem Xenarthra, a mesma a qual pertencem os bichos-preguiça, tatus e também outras espécies de tamanduá, como os tamanduá-mirim, que são uma espécie menor, e os tamanduaí. Original do continente sul-americano, quando ele ainda não era conectado à América do Norte, a ordem dos Xenarthra tem no tamanduá-bandeira o seu maior representante. “Um indivíduo adulto de vida livre pode chegar a pesar 40, 45 kg”, conta Alves.
De hábitos crepusculares, o comportamento do mamífero é muito influenciado pela temperatura. Fugindo do calor, ele prefere sempre as horas mais frescas do dia, como o começo da manhã e o final da tarde, para procurar comida, que nesse caso não é um cardápio qualquer. É na verdade muito especialista. “O único alimento deles são as formigas e os cupins. É um animal de 40 kg que se alimenta só de formiga e cupim”, acrescenta o pesquisador.
Quando não está procurando comida ou caminhando pela vegetação, ou, ainda, se não está fresco o suficiente, o animal dorme nas horas que são mais quentes do dia. “Ele deita e usa a cauda para cobrir o corpo e termo regular ali de certa maneira. A coloração também tem uma finalidade de proteger, de camuflar ele”, explica ele.
Com registros históricos desde a Guatemala até o sul da América do Sul, o mamífero, porém, apresenta declínio em sua população e, além disso, é considerado Vulnerável tanto pela lista vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional da Conservação da Natureza (IUCN, da sigla em inglês) quanto pela Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção, atualizada em junho pelo Ministério do Meio Ambiente.
A classificação indica que, em um futuro bem próximo, a espécie enfrenta um risco elevado de extinção da natureza, caso nada seja feito para reverter a tendência de declínio. “No Uruguai, El Salvador, Guatemala, essa espécie já desapareceu. Então, embora ele pareça comum em algumas áreas, que nem Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, onde as pessoas o observam com uma certa facilidade, ele é um animal ameaçado de extinção e no Brasil ele tem extinções locais também”, esclarece o médico veterinário.
Já entre ameaças, ronda o tamanduá-bandeira a perda de habitat, que se configura como um risco para a maioria das espécies ameaçadas de extinção. O Cerrado, por exemplo, onde Alvinho foi encontrado, chegou a 2021 com pouco mais da metade (53,1%) de sua área coberta por vegetação nativa. Apenas nos últimos 37 anos, esse que é o segundo maior bioma do País perdeu 27,9 milhões de hectares de vegetação nativa, o que corresponde a uma redução de 21% comparado a área que o bioma tinha de vegetação nativa em 1985. Os dados são do último levantamento do MapBiomas.
“É o desmatamento e conversão em pastagem, principalmente, e monocultivo”, explica Alves. Confirmando esse cenário, ainda segundo o MapBiomas, a área ocupada por atividades agrícolas no Cerrado cresceu de 4 milhões de hectares em 1985 para 25 milhões de hectares no ano passado, um aumento de 508%. A maior parte desse aumento corresponde ao plantio de soja (20 milhões), que alcançou 10% da cobertura total do bioma. “Com isso, o bicho não tem mais grandes fragmentos de cerrado para sobreviver”, enfatiza o pesquisador.
Na sequência, também figura como uma ameaça para a espécie a morte por atropelamento. O risco é confirmado por artigo publicado neste ano na revista científica Journal of Comparative Pathology, da Science Direct. Na publicação, pesquisadores analisaram lesões traumáticas causadas por colisões veiculares em mamíferos selvagens neotropicais do Brasil.
O estudo, que também considerou cinco espécies classificadas como Vulnerável pela lista vermelha da IUCN, indica que o tamanduá-bandeira ocupou a primeira colocação, como a frequentemente mais atingida por atropelamento. “O atropelamento é realmente uma ameaça que pode causar extinções locais para essa espécie”, alerta o médico veterinário, que é também um dos autores da investigação.
Alvinho e os desafios do albinismo
“Existe uma teoria ecológica que diz que os bichos albinos de vida livre tendem a ser menos adaptados à natureza. Por isso, optamos por realizar um estudo de monitoramento que irá nos possibilitar compreender se de fato eles são mais suscetíveis ao sol, calor, frio e predadores”, comenta a pesquisadora Nina Attias, bióloga que também atua no ICAS.
Entre ameaças provocadas pela degradação da natureza e a ausência de características próprias e naturais do tamanduá-bandeira, impõe-se diante de Alvinho, então, desafios que podem se tornar múltiplos à sua sobrevivência.
Até onde o pequeno tamanduá-bandeira albino deve ir e que estratégias de sobrevivência deve desenvolver depois que se desgarrar (processo de se tornar independente) por completo da mãe é a resposta na qual o estudo busca chegar. E para isso, não são permitidas interferências diretas, mesmo que se saiba que o filhote corre riscos. “Pois estaríamos influenciando nos processos ecológicos naturais e, como conservacionistas, sabemos que isso não é bom para as espécies ou para o ambiente”, conclui Attias.
Sem sua coloração natural, que varia entre preto e branco, com variantes de marrons e cinzas, por exemplo, Alvinho pode enfrentar dificuldade para prosperar em ambientes quentes, onde a espécie naturalmente está adaptada. “A preocupação que surge com animais albinos em ambientes tropicais é o aumento da exposição UV (ultravioleta) em uma pele tão sensível, que é a pele albina, que tem zero melanina”, complementa Alves.
Por isso, o mamífero pode acabar tendo que se esforçar mais do que um indivíduo não albino para se desenvolver. Ao mesmo tempo em que o torna único, essa rara característica entre a espécie também se converte em dificuldades, como a de se camuflar diante do perigo que por vezes é a vida selvagem: “Na paisagem do Cerrado, ele é um ponto branco que chama muito atenção”, finaliza o médico veterinário.
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