O Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) trabalha, neste momento, em uma proposta de regulamentação da rastreabilidade individual de bovinos no país. A medida é vista como alternativa ao hoje falho sistema de rastreabilidade por lotes usado no Brasil e viria para garantir maior qualidade sanitária e ambiental da carne produzida internamente.
Para entender melhor a proposta e seu status dentro do Executivo, ((o))eco ouviu empresas do ramo da carne, organizações de pesquisa, secretários do MAPA e o próprio ministro Carlos Fávaro. A conclusão é que, até que a rastreabilidade individual seja de fato implementada no Brasil, muitos obstáculos terão de ser superados, como resistências do setor e divergências sobre sua funcionalidade dentro do próprio governo.
Discussões iniciais
É consenso entre os principais países exportadores e importadores de carne bovina que a rastreabilidade por identificação individual dos animais é fundamental para aumentar a segurança sanitária e alimentar e promover respostas mais rápidas e efetivas no controle e erradicação de doenças infecciosas dos rebanhos. Ela também seria peça essencial no rastreio de ilegalidades ambientais ligadas à cadeia da carne, como o desmatamento.
Tanto é que Austrália, Argentina, Uruguai, Chile, Canadá e países da União Europeia já implantaram sistemas de rastreabilidade individual em 100% de seus rebanhos.
O Brasil, líder global na exportação de carne bovina, ainda engatinha na questão. Apesar de o assunto circular há décadas no setor, somente agora em 2023 o governo brasileiro começou a adotar medidas concretas para a implementação de um sistema em grande escala.
Em 12 de janeiro, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) lançou uma Tomada Pública de Subsídios sobre a proposta de regulamentação de controles aplicados à rastreabilidade da cadeia produtiva da carne bovina e de búfalos. A tomada recebeu propostas até 24 de março.
((o))eco teve acesso ao questionário usado na Tomada Pública, no qual o MAPA pedia que os participantes respondessem questões como a efetividade dos métodos de identificação coletiva de animais hoje empregada, se o Brasil deveria adotar um sistema de identificação individual, quais os maiores obstáculos à adoção de tal sistema e qual seria a estratégia mais adequada para seu processo de implementação, entre outras.
Questionado, o MAPA informou por e-mail, no dia 2 de maio, que os técnicos do Ministério estavam analisando as contribuições e que “ainda não há posicionamento oficial quanto ao resultado da Tomada Pública de Subsídios”.
Circula no meio, no entanto, a informação de que um sistema nacional de rastreabilidade individual será implementado, com numeração também nacional e única (sem repetição). Ainda não está definido qual órgão seria responsável pela gestão do sistema, se o próprio governo, uma empresa privada, organização do terceiro setor ou uma entidade formada por vários atores.
O que se sabe é que o governo teria papel fundamental na regulamentação da proposta.
Embates já iniciados
A Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura – que reúne cerca de 300 representantes do setor privado, financeiro, academia e sociedade civil em prol de uma economia de baixo carbono – foi uma das respondentes da Tomada Pública de Subsídios do MAPA.
A organização defende que o fortalecimento da rastreabilidade nas cadeias produtivas é uma medida fundamental para desassociá-las do desmatamento ilegal e que o controle da qualidade ambiental da carne precisa passar por melhorias urgentes.
“O sistema de rastreabilidade da cadeia de bovinos e búfalos é limitado, por restringir-se predominantemente à identificação coletiva dos animais, e baseado em um método obsoleto, a marca a fogo, de efetividade reduzida e prejudicial ao bem-estar dos animais. Além disso, está baseado exclusivamente no controle fitossanitário [sic] de rebanhos, desconsiderando importantes informações socioambientais referentes à localidade de origem dos animais”, disse, em nota.
A Coalizão também sugeriu ao MAPA que o processo seja conduzido de forma gradual e por uma organização com trânsito entre todos os atores e elos da cadeia produtiva, ancorado em uma política nacional de rastreabilidade instituída pelo governo federal e com amplo envolvimento do setor produtivo.
Já a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) não encara o assunto com tanta urgência. Sua proposta é que o sistema seja voluntário e com prazo mínimo de oito anos para adaptação dos produtores rurais.
“O Mapa deixou claro que implantará a rastreabilidade individual. Com o entendimento de que isso é um caminho sem volta, nós da CNA decidimos fazer uma proposta baseada nas necessidades do pecuarista para que seja de fácil implantação, com tempo suficiente, adesão voluntária e que tenha seus custos reduzidos ao máximo”, afirmou, no dia 20 de abril, o presidente da Comissão Nacional de Bovinocultura de Corte da CNA, Francisco Olavo Pugliesi de Castro.
Segundo a CNA, o pecuarista é que deve estar no centro das discussões e o novo sistema teria que trazer “benefícios” ao setor. “Se ele [pecuarista] não visualizar qualquer benefício, sua adesão fica prejudicada, afetando toda a cadeia”, diz a entidade.
Para Paulo Barreto, pesquisador sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), a proposta da CNA pode significar uma postergação infinita do pecuarista em aderir ao sistema.
“O pecuarista não está interessado. Não é ele que vai evoluir nessa agenda, isso eles deixaram claro. Se é voluntário, teoricamente o prazo é infinito, então pode ser nunca”, disse, em entrevista a ((o))eco.
Brinco na orelha
Atualmente, a rastreabilidade da cadeia da carne é feita por uma ferramenta chamada Guia de Trânsito Animal (GTA). A GTA é o documento oficial para transporte animal no Brasil e contém informações sobre origem, destino, finalidade, espécie e vacinas aplicadas.
Criada para fins sanitários – controle de vacinas – a GTA é atualmente a principal ferramenta usada para o rastreio ambiental do gado, ao ser cruzada com dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e imagens de satélite.
O problema é que, além de ser emitida para lotes de animais – e um lote pode ter bois de várias procedências – a GTA não é aberta ao controle social, tem se mostrado cheia de falhas e é altamente fraudável.
O único sistema oficial de rastreio individual que existe no país é o SISBOV. Mas, além de ser voluntário, ele também tem falhas, como explica Paulo Barreto, do Imazon.
“Um gado que nasceu no Acre, por exemplo, pode entrar no SISBOV somente quando chega a São Paulo, o sistema aceita isso, o que significa que e o gado pode ter nascido em área com desmatamento ilegal”, diz.
Num sistema organizado e robusto de rastreabilidade individual, cada bezerro, logo após o nascimento, receberia um brinco e um chip com numeração única. As informações seriam, então, inseridas num sistema informatizado, onde os dados sanitários e ambientais, como local de nascimento – estariam disponíveis às partes interessadas e integradas com outros sistemas, como o CAR e registros de produtores nas agências de defesa animal.
De acordo com o pecuarista Mauro Lúcio Costa, de Paragominas (PA), o investimento nesse sistema não chega, para o produtor, a 0,5% do custo de produção, considerando a arroba do boi gordo.
Rastreabilidade ambiental ou sanitária?
Com a crescente pressão de consumidores e o agravamento das questões ambientais no nível mundial, os mercados internacionais têm endurecido cada vez mais suas regras para importação de carne. Esse é o caso da União Europeia, que tem fechado o cerco sobre produtos ligados ao desmatamento ilegal.
A pecuária é hoje o maior indutor de desmatamento na Amazônia. Pastos para o gado cobrem cerca de 90% da área total desmatada no bioma, e mais de 90% dos novos desmatamentos são ilegais.
Apesar de a GTA ser o principal instrumento da rastreabilidade ambiental no país, seu uso para tal fim não é consenso nem dentro do governo.
Para Márcio Rezende Evaristo Carlos, secretário-adjunto de Defesa Agropecuária do MAPA, o objetivo da GTA é conhecer as transferências de animais entre propriedades para, num evento sanitário, realizar o rastreio da origem da ocorrência. Qualquer uso fora desse objetivo seria um “erro”, diz ele.
“As informações são declaratórias e isso foi criado ao longo de muitos anos, com base na confiança entre o produtor e o sistema. O que nos preocupa quando se diz ‘vamos usar a GTA para uma questão ambiental’ é que a gente perderá, provavelmente, [a confiança]. Se o produtor tiver alguma restrição em movimentar os animais, ele vai movimentar de qualquer forma, não vai nos comunicar e não vamos conseguir rastrear. Será um processo bastante deletério para um instrumento que foi criado na base da confiança. Por esse motivo nós entendemos que o uso de um instrumento que até hoje sustentou a questão de saúde animal para outra finalidade que não a sanitária, é um erro”, disse.
A reportagem conversou com o secretário-adjunto durante a IV Feira Internacional para a Indústria de Processamento de Proteína Animal e Vegetal (Expomeat), realizada entre 28 e 30 de março de 2023, em São Paulo.
Nesse contexto, a rastreabilidade individual, discutida mais recentemente, seria a solução para a questão ambiental, correto? Para a diretora de Cadeias Produtivas do MAPA, Fabiana Villa Alves, não é bem assim.
“A rastreabilidade, essa que abriu [a Tomada Pública de Subsídios] é só ligada à qualidade e sanidade do produto. O plano de rastreabilidade ambiental não é nosso papel, porque desmatamento ilegal é MMA, conservação de floresta é MMA [Ministério do Meio Ambiente]. A nossa parte é fomentar a pecuária sustentável. São algumas nuances que, na prática, não nos fazem ligar rastreabilidade com desmatamento”, disse, em entrevista a ((o))eco, no dia 27 de abril, por ocasião de um evento em São Paulo.
No mesmo evento, conversamos com o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, que discorda da visão. Quando questionado se a rastreabilidade individual poderia ser usada para controle ambiental, disse:
“Mais do que pode, ela deve ser […] Não tem outro caminho, não tem outra alternativa. A alternativa que temos é achar a melhor forma de criar esse sistema e dar o próximo passo.”
Segundo Fávaro, o MAPA não fará esse processo sozinho. Iniciativa privada e organizações sociais vão participar ativamente dessa construção, “para que, juntos, escolhamos um modelo que é fundamental para nossa pecuária”, disse.
Enquanto o embate segue, inclusive dentro do próprio governo, a floresta continua sendo dizimada sob a pata do boi.
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