O terceiro dia dos “Seminários Bússola” do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), nesta quarta-feira (8), foi dedicado à construção de cidades mais resilientes às mudanças climáticas. Segundo os participantes, os efeitos das mudanças climáticas, sentidos desproporcionalmente pelas populações mais vulneráveis, devem ser enfrentados com medidas que passam pelas soluções baseadas na natureza, assim como uma maior atenção à infraestrutura de bairros periféricos.
“Uma das coisas que me deixa mais indignada é o desmonte de uma legislação ambiental que foi pioneira no mundo. O Brasil foi exemplo pro mundo inteiro na década de 1980”, lembrou Cecília Herzog, urbanista e professora da PUC-Rio. “A gente está vendo o desmonte disso tudo, tanto a nível federal quanto a níveis estadual e municipal. E o evento no Sul incorpora isso em todos os níveis. Porque ele vem do federal, desse Congresso que vem desmontando a legislação federal, que era exemplar. E o Rio Grande do Sul, esse governo, simplesmente acabou [com a legislação ambiental], abrindo espaço pra acabar até com o bioma do Pampa”, criticou.
Para a também urbanista Gisele Brito, coordenadora de Direito a Cidades Antirracistas do Instituto Peregum, os efeitos sobre as populações mais vulneráveis são culpa de um planejamento urbano que as ignora propositalmente. “É muito importante a gente olhar pras mudanças climáticas como algo essencialmente atravessado pelas desigualdades. Mas é muito comum a gente olhar isso como um problema da falta de planejamento, mas isso é uma ilusão. As cidades não são mal planejadas, elas são planejadas para ser exatamente como são”, afirmou.
Ao longo de toda a semana, o IDS reúne uma série de especialistas para o compartilhar suas visões sobre o papel dos municípios frente às mudanças do clima, norteando o debate para as próximas eleições. As transmissões acontecem até esta sexta-feira, no canal do instituto no YouTube, sempre das 18h às 20h.
Para ontem, além de Herzog e Brito, foram convidados Gil Scatena, consultor ambiental e gerente técnico para a América do Sul do ICLEI – Governos Locais para a Sustentabilidade, e Gesmar Santos, físico e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Eles abordaram assuntos como adaptação das cidades e o combate ao racismo ambiental.
Depois desse, a semana será fechada com os temas “Democracia, Diversidade e Dados”, ainda hoje, e “Economia Verde, Equidade e Empregos”, amanhã. As discussões apresentadas vão resultar na elaboração da Bússola 2024 do IDS, um guia com o objetivo de apontar caminhos para o debate de enfrentamento à emergência climática nas eleições de outubro – assim como já feito pelo instituto em 2022.
Soluções baseadas na natureza como forma de mitigação
Para Cecília Herzog, vivemos hoje os resultados de um “efeito cascata” fruto de décadas de descaso com o clima. “Eu estou profundamente indignada, até por estar batalhando nisso. Tenho perdido as batalhas – muitas, e ganhado outras. Na minha cidade, o Rio de Janeiro, onde morei muitos anos, tudo o que eu aprendia eu queria aplicar na cidade, e não conseguia. Então sou expert em frustração e barreiras”.
“Consegui enxergar com uma concretude absoluta a importância da natureza na cidade. Não só na cidade, mas, como sempre, meu foco foi a cidade. Mas na cidade, no entorno da cidade, nas bacias que alimentam as cidades. E eu acho que isso tudo está completamente concretizado no evento no Rio Grande do Sul. Tudo o que eu tenho pesquisado se materializou, todos os meus pesadelos. Em tudo o que eu estudava eu ficava pensando em como prevenir o que está acontecendo agora”.
“Ter políticas ambientais é muito importante, mas mais do que políticas, é compromisso. Ter um compromisso dos governantes que vão assumir. As pessoas que vão eleger precisam ter essa consciência de qual é o programa, e depois cobrar também, porque eu acho que é outra coisa extremamente importante”, frisou.
Para Herzog, as soluções baseadas na natureza são importantes para ajudar a minimizar tragédias como a que acontece no Rio Grande do Sul. “Tem que pensar na bacia como um todo, ir ‘segurando’ a água onde ela cai. Então vale desde grandes áreas de conservação de fragmentos de vegetação até ‘telhados verdes’ nas cidades”, para que as cidades se transformem em “esponjas”. “A gente tem que ter um olhar ecossistêmico, e pensar também em agricultura na cidade, porque a agricultura urbana também é um tipo de solução baseada na natureza importantíssimo, e dá mais resiliência com relação à segurança alimentar”, citou.
“Eu tenho contato com muita gente que tá fazendo em áreas extremamente carentes. Eu gosto de trazer o Teto Verde Favela, lá do Rio de Janeiro, que em 16m² tem um teto verde no meio da Favela do Arará, em Benfica. O Cassiano, o Careca, é um cara genial, sabe? Ele tá levando isso, imagina todas as favelas com teto verde? A casa dele é 20ºC mais fresca que a do vizinho”, citou a palestrante. “E esse ano algumas vezes eu falei com ele, tava dando 60ºC lá. 60ºC não é uma temperatura de vida”, completou.
Planejamento de adaptação das cidades às mudanças climáticas
O consultor ambiental Gil Scatena, do ICLEI, lembrou que os impactos das tragédias “atingem de forma desigual aqueles que já estavam de forma desigual no território”. “Às vezes as pessoas acham que as mudanças climáticas vão ter um tempo, que vão ter um momento ali que, a partir daquele momento, virou. E não é isso, as coisas já estão acontecendo, o que a gente está vivendo são efeitos dos processos de mudanças climáticas”, avaliou o palestrante.
“Quando a gente fala em adaptação e resiliência, não é mais uma agenda do futuro. ‘Como nós vamos nos adaptar quando o clima mudar?’. Por mais esforço que nós devemos fazer, e temos que fazer, para diminuir o cenário de emissão de gases de efeito estufa, a gente já contratou, nessas décadas passadas, as mudanças climáticas. Elas já estão acontecendo”, alertou.
“A gente está vivendo cenários de mudança de clima para climas mais secos em alguns territórios do país, ampliando climas de semiárido. A gente está vivendo novos modelos de chuva em várias regiões do país, como infelizmente aconteceu no Rio Grande do Sul, como já aconteceu em São Paulo, como já aconteceu no Rio de Janeiro, entre outros territórios”, exemplificou. “Portanto, hoje, falar em adaptação, em nos adaptarmos a essa nova realidade, significa proteger vidas e reconfigurar, fazer um outro acordo com o território, com a ocupação do território”.
“Quando a gente fala em adaptação, a gente está falando dessa capacidade de reagir às mudanças climáticas de forma a entender que os regimes climáticos mudaram, os regimes de chuva, de seca, de temperatura, e que a gente precisa reorganizar esses territórios para que esse processo seja com o menor – se possível zero – prejuízo social possível, e econômico e material também. Porque esse drama que o Rio Grande do Sul está vivendo, além das perdas de pessoas, que são incomensuráveis do ponto de vista da dor, a gente também vai ter um impacto profundo na economia e no território gaúcho, que vão ecoar por um bom tempo e que vão trazer novos problemas sociais”, explicou.
Scatena frisou a importância do planejamento para a adaptação climática, e que estes tragam “planos de ação real”. “Nesse momento de desastre, nessa dor, muita gente vai falar ‘planos já foram feitos’ e tudo mais, mas acho que não é momento da gente jogar fora a responsabilidade da sociedade em repensar o futuro. E isso só se faz com o instrumento do planejamento. A gente deve cobrar se esse planejamento está sendo feito com as melhores informações, e ouvindo aqueles que estão no território, e se essas ações que os planejamentos trazem estão sendo executadas”, recomendou.
“Pelos dados do governo federal, quase 2 mil mil municípios estão em situação de risco. E qual é a capacidade técnica desses municípios para responder a isso? Desde a Constituição de 1988 pra cá, os municípios ganharam muita força na gestão do território, o que é muito importante e interessante, mas qual o poder instalado nesses municípios de dialogar com a sociedade que ali vive e conseguir lidar com informações complexas de mudanças climáticas?”, questionou.
“Então talvez isso seja algo que a gente deva pensar bastante, como os planos de governos, as novas propostas, vão lidar com essa ideia de reconfigurar essas cidades”, apontou o palestrante, lembrando da importância da integração entre o planejamento climático com outras áreas, como habitação, saúde e transporte. “A gente não pode fazer com que essa nova etapa de redesenhar as cidades para serem adaptadas e resilientes aprofunde processos de rechaço de parcelas da sociedade, com racismo, preconceito de gênero e outros tipos de preconceito. A gente tem uma oportunidade enorme, no Brasil, de transformar essa nova etapa numa etapa de investimento nas cidades, que é gerar emprego e renda e fazer a inclusão social que a gente tanto deve”, concluiu Scatena.
Combate ao racismo ambiental
Gisele Brito, coordenadora de Direito a Cidades Antirracistas do Instituto Peregum, lembrou que, geralmente, a urbanização empurra as populações marginalizadas para áreas com pouca infraestrutura ou mais propensas a situações como alagamentos, como a beira de rios, por exemplo. “É muito importante pensar como os planos diretores organizam o desenvolvimento. Hoje, os planos diretores planejam a expansão imobiliária da cidade. Não pensam na infraestrutura habitacional, de saúde”, criticou.
Brito lembrou que, até pouco tempo, o orçamento de projetos como o Minha Casa Minha Vida não previam, junto com a construção das casas, a construção de uma infraestrutura conjunta. Dessa forma, populações marginalizadas acabaram empurradas para regiões afastadas, desestruturadas e mais vulneráveis aos extremos climáticos nas cidades.
Para ilustrar, a palestrante deu o exemplo de São Paulo, em que bairros ricos, como Pinheiros, que chegam a ter 95% de população branca, margeiam grandes rios da cidade, mas ainda assim não sofrem com os mesmos impactos de outros bairros mais pobres durante as cheias. “Mas com certeza a ocupação desses territórios teve impacto sistêmico”, apontou a urbanista.
“É muito importante a gente pensar em medidas que eliminem a vulnerabilidade nos territórios ocupados pela população negra, estabeleça a infraestrutura nesses territórios, mas que façam a mitigação, e que distribuam as externalidades negativas nos territórios brancos e territórios ricos. A gente não vai solucionar o problema das mudanças climáticas, ou diminuir risco à vida das pessoas, se a gente continuar querendo tirar a pessoa, na hora do caos, da beira de um morro ou rio, e dar R$ 300 pra ela. Ela vai voltar a morar numa área de risco, porque aquele recurso não é viável pra ela morar num lugar que não seja numa área ambientalmente vulnerável”, avaliou.
“A gente precisa muito ter dados racializados para enfrentar o racismo ambiental”, disse Brito. “É essencial que as políticas de adaptação levem em consideração e passem a incorporar nelas o impacto racial dessa transformação urbana e ambiental. Isso é muito importante para que a gente possa pensar sistemicamente no planejamento de como mitigar esses impactos”, concluiu a palestrante.
Universalização do saneamento no Brasil
Também na linha de combate às desigualdades e melhora na infraestrutura para populações marginalizadas, Gesmar Santos, pesquisador do IPEA, apresentou um estudo que lista desafios e oportunidades para a ampliação do saneamento básico nos municípios, principalmente nas comunidades. Segundo ele, muitas vezes o saneamento não é uma prioridade para os governos, o que é agravado por fatores como a dificuldade de acesso a orçamento para essas obras por parte dos municípios e o protagonismo do setor privado na área, que foca em negócios nas grandes cidades.
O pesquisador criticou a “marginalidade” da drenagem e manejo de águas da chuva e de resíduos sólidos nas políticas públicas municipais, e a falta de soluções alternativas por parte dos governos, citando as soluções baseadas na natureza. “As nossas soluções, principalmente, são obras, obras, obras. Menos gestão, menos conscientização e menos políticas de conservação e respeito à natureza”. Para Gesmar, o caso do Rio Grande do Sul é um “extremo”, mas a falta de políticas públicas contribui para inundações em todo o país.
O palestrante citou ainda dados de tratamento de água, mostrando que parte da água distribuída no país não passa por tratamento. “É um problema que afeta principalmente as comunidades mais pobres, as comunidades negras, quilombolas, indígenas, etc. As mais discriminadas, menos estruturadas economicamente”. Além disso, entre os municípios com tratamento de água em 2021, apenas 1.852 atendiam “integralmente” os padrões do Ministério da Saúde, enquanto 2.120 atendiam apenas parcialmente.
Apesar dos problemas, Gesmar apontou também oportunidades e caminhos concretos para a universalização do saneamento básico e do tratamento de água no país. De acordo com ele, o próprio apelo do tema e fatores como a governança democrática, o protagonismo das comunidades, mobilizações sociais, a regulação dos parâmetros de qualidade e tarifas sociais da água podem melhorar a situação.
“A Universidade Federal de Minas Gerais, em parceria com a FUNAI, fez um levantamento de centenas de iniciativas de soluções alternativas. E eu digo alternativas porque elas são as que estão resolvendo enquanto o estado se omite, para trazer soluções às comunidades. E essas soluções são alternativas, tem que ser alternativas. São feitas por parcerias, mas são financiadas também pelo Estado, por bancos, até por empresas. Parcerias com a comunidade, soluções inovadoras. Então creio que esse é o caminho para fazer a universalização, e o governo já retomou isso”, concluiu o palestrante.
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