Reportagens

Não deixe rastros: como minimizar os impactos da recreação em áreas naturais

Princípios Leave No Trace, para reduzir impactos de atividades na natureza, começam a ganhar força no Brasil junto com aumento da visitação de unidades de conservação

Duda Menegassi ·
14 de novembro de 2024

“Deixe somente pegadas, tire apenas fotos, leve só memórias”. Normalmente pintada à mão em tabuletas de madeira instaladas ao lado de trilhas ou no acesso de uma cachoeira, essa mensagem simplifica um conceito fundamental quando o assunto é turismo na natureza: o mínimo impacto. Com o aumento da visitação em unidades de conservação e outras áreas naturais, a discussão sobre como diminuímos – literalmente – nossa pegada sobre estes espaços têm ganhado cada vez mais força no país.

Importado dos Estados Unidos, onde já é uma política pública bem enraizada em parques nacionais e promovida pelo próprio governo, o Leave No Trace – que pode ser traduzido livremente para “não deixe rastros” – é um conjunto de sete princípios pensados com o objetivo de orientar os visitantes em áreas naturais a reduzirem seus impactos e virou uma das principais referências no assunto. Aos poucos, liderados por empresas como a Outward Bound Brasil, que oferece cursos de capacitação nos princípios, o conceito vem ganhando força e se espalhando no país.

“O turismo em áreas protegidas e unidades de conservação tem crescido no Brasil e na medida em que a gente percebe isso, nós realmente precisamos prestar atenção na educação e na qualificação desse visitante. Esse visitante precisa entender como ele vai visitar, onde ele vai, as atividades que ele vai fazer. E pensar em mínimo impacto durante atividades de recreação em ambientes naturais tem a ver com preservar a experiência de gerações futuras e o direito da sociedade viver e interagir com esses espaços naturais”, explica o instrutor de Leave No Trace da Outward Bound Brasil (OBB), Álvaro da Matta.

Em 2023, as unidades de conservação federais registraram um recorde de 23,7 milhões de visitantes. Apenas os parques nacionais, especificamente voltados para recreação e turismo, somaram 11,8 milhões de visitas no último ano.

Felipe Pimentel, que também é instrutor Leave No Trace da OBB, lembra que as primeiras certificações nos princípios do país ocorreram há cerca de duas décadas, mas há cerca de dois anos a procura pelo tema, assim como a oferta de cursos, deu um salto. “Tem muito mais gente interessada, a informação está circulando muito mais”, pontua. O instrutor ressalta, entretanto, que como não há um centro Leave No Trace no Brasil é difícil de compilar o número de instrutores já formados para ter uma real dimensão desse crescimento.

O instrutor da OBB, Felipe Pimentel, durante curso de capacitação de instrutores Leave No Trace. Foto: Marina Gomes

As unidades de conservação mais visitadas são a Área de Proteção Ambiental (APA) da Baleia Franca, no litoral de Santa Catarina, local famoso para observação de baleias; o Parque Nacional da Tijuca, floresta no meio da metrópole do Rio de Janeiro, onde estão alguns dos maiores pontos turísticos da cidade; o Parque Nacional do Iguaçu, lar das Cataratas, em Foz do Iguaçu (PR); e o Parque Nacional de Jericoacoara, de dunas e lagoas paradisíacas no Ceará. 

Uma diversidade que reflete a variedade de destinos, contextos e atividades possíveis de turismo de natureza e que devem ser levados em conta na hora da visitação.

Não à toa, planejamento é o primeiro princípio da lista. O que inclui conhecer as regras da área que será visitada, entender as atividades que serão realizadas, se for realizar uma trilha, entender as possíveis dificuldades do percurso, os equipamentos que serão necessários e até mesmo o seu próprio condicionamento físico. 

“Um equipamento adequado às condições locais reduz a possibilidade de enfrentar situações de sobrevivência, em que a segurança pessoal deve ser priorizada em detrimento da conservação da área”, destaca trecho da cartilha Leave No Trace produzida pela OBB.

Pensar bem no que levar, inclui alimentos e água, tanto para evitar problemas quanto para reduzir, por exemplo, o peso e o lixo gerado, em especial durante trilhas mais longas e áreas mais remotas.

Planejar abrange também a compreensão sobre a necessidade ou não de contratar guias ou de usar GPS.

Os impactos do mau planejamento são facilmente visíveis em casos de grupos que se perdem em áreas de montanha, por exemplo, e saem da trilha, passam por áreas que deveriam ficar intocadas, fazem pernoite – e às vezes até fogueiras – em áreas sensíveis e, além de tudo, demandam recursos humanos e financeiros dos órgãos públicos para mobilizar pessoal e até helicópteros para o resgate.

É importante também pensar onde montar o acampamento em casos de pernoite. A orientação para o menor impacto possível é concentrar as atividades em rotas e locais de uso já estabelecidos e priorizar descansar em pontos de solo compactado ou em rochas para evitar a expansão da área impactada. “Bons lugares de acampamento não são construídos, são encontrados”, orienta a cartilha.

Já em áreas menos frequentadas ou intocadas, onde não há zonas definidas de uso, a estratégia indicada é espaçar as atividades para diminuir as chances de criar impactos duradouros.

Além disso, o ideal é sempre acampar a pelo menos 60 metros ou mais de rios e nascentes para reduzir a possibilidade de contaminar a água.

O guia de turismo e um dos fundadores da Rede Brasileira de Trilhas, Anderson Ribeiro, reforça ainda o papel dos órgãos gestores nessa equação para zonear os usos e orientar os visitantes visando minimizar os impactos para conservação da natureza. “É importante fazer um diagnóstico para identificar potenciais áreas mais sensíveis, como nascentes, para avaliar se os visitantes poderão ou não ir nesse local. Além disso, uma sinalização bem feita é uma ótima estratégia para manter o visitante numa única trilha, evitando atalhos e um maior impacto”, reforça Anderson, que também é coordenador geral do Caminho de Rio das Ostras.

Áreas de uso já consolidado são sempre a melhor opção para concentrar impactos em um único local quando se tratam de áreas muito frequentadas. Foto: Marina Gomes

Descarte corretamente os resíduos e o lixo

Por mais que o princípio pareça óbvio para muitos visitantes de áreas naturais, lidar com seus resíduos de forma responsável vai muito além de levar de volta as eventuais embalagens plásticas. Os próprios alimentos e restos de comida como cascas, ainda que sejam “orgânicos”, devem ser recolhidos pelo visitante, tanto por serem, em sua maioria, elementos que não pertencem àquele ecossistema como também pelo risco de atrair animais e alimentá-los de forma inadequada.

Os “resíduos humanos”, por assim dizer, também devem ser levados em conta, com diferentes técnicas mais apropriadas de acordo com o contexto. Enquanto o xixi é praticamente estéril e de baixo impacto, as fezes podem causar um impacto muito maior no ambiente – inclusive visual – se feitas de forma irresponsável, em especial em lugares muito visitados que podem acumular verdadeiras “cagadas”.

Uma das técnicas é cavar um buraco de pelo menos 20 centímetros de profundidade e depois cobrí-lo – sem o papel higiênico, claro, que deve ser armazenado e levado de volta. É possível dispensar o papel e usar apenas folhas e galhos ou limpar com água – nesse caso, basta levar uma garrafa d’água e transformá-la em seu “bidê” portátil. Depois é só limpar a mão com sabão líquido e pronto. Genial.

Em solos rochosos e rasos, por exemplo, onde não é possível cavar, uma das alternativas é levar seu próprio tubo de dejetos (popularmente conhecido como shit tube). Nesse caso, o visitante armazena suas fezes no tubo durante a atividade e, ao voltar para uma área urbanizada, faz o descarte adequado. O instrumento também é recomendado em locais muito próximos de rios e nascentes, para evitar a contaminação do corpo d’água.

Em unidades de conservação famosas entre os montanhistas, como o Parque Nacional do Itatiaia, o Parque Nacional da Serra dos Órgãos, e na Área de Proteção Ambiental (APA) da Serra da Mantiqueira, o uso do equipamento já é obrigatório em algumas travessias.

O instrutor Álvaro da Matta pontua que é necessário ainda mais investimentos, seja de fontes públicas ou privadas, para promover a educação dos turistas de áreas naturais, em especial unidades de conservação, sobre o mínimo impacto. “É preciso pensar em como disseminar isso da maneira mais efetiva possível. Para que as pessoas se sintam empoderadas com esse conhecimento e não simplesmente educadas de uma forma autoritária. E que as pessoas entendam como visitar esses espaços e se sintam mais habilitadas a cuidar e entender que todas as atividades delas terão algum impacto”, reflete.

Placa no Parque Estadual de Ibitipoca, um dos mais visitados do país, alerta para condutas proibidas, como fazer cocô na área. Foto: Duda Menegassi

Respeito pelo próximo e por todos os seres

Os sete princípios incluem ainda outras regras de ouro, como respeitar a natureza e a vida selvagem; minimizar o uso e impacto de fogueiras (lembrando que em algumas unidades de conservação a prática é proibida); deixar o que encontrar – ou até melhor do que encontramos –, e evitar causar danos às árvores e plantas ou mesmo patrimônios históricos, como ruínas; e considerar outros visitantes e a comunidade local.

“Os ambientes naturais que temos no Brasil são riquíssimos e belíssimos, de um potencial imenso para o turismo, e há muitos benefícios da população se apropriar desses espaços, conhecer onde mora, ter um vínculo com esses espaços, que vão desde o desenvolvimento pessoal e da geração de renda até a promoção de saúde. Só que se a gente começa a entrar nesses lugares sem uma consciência de como utilizá-los, nós corremos o risco de esgotar esses locais e comprometer a experiência de gerações futuras. E é disso que o movimento Leave no Trace e do mínimo impacto trata. Da gente conseguir, através dessa educação do turista, preservar para essa geração e as próximas o direito de experiência e de colher os benefícios que os ambientes naturais no Brasil oferecem”, continua Álvaro.

Os princípios têm se difundido, principalmente entre guias de turismo de natureza. “Os guias são formadores de opinião, multiplicadores e tem um movimento bacana acontecendo de gente buscando informação”, destaca Felipe Pimentel.

Grupo durante realização do curso de instrutores Leave No Trace, da OBB, em Campos do Jordão. Foto: Marina Gomes

Em setembro, durante o curso de formação de instrutores nível 1 da Leave No Trace oferecido pela Leave No Trace, a turma, composta por dez alunos, tinha como perfil majoritário justamente os guias de ecoturismo. Havia ainda outros profissionais que atuam em áreas naturais e duas pessoas simplesmente interessadas a nível pessoal, que completavam o grupo. 

“Os cursos que a gente faz são muito para formação e para que as pessoas passem isso adiante e esse conhecimento seja disseminado”, reforça o instrutor da OBB. “São princípios, não são regras. O objetivo é estimular as pessoas a pensarem e debaterem esse tema. Cada atividade ao ar livre tem suas especificidades e o treinamento leva à discussão e a uma maior compreensão de como os princípios podem ajudar [a minimizar os impactos]”, completa Felipe.

A repórter foi convidada pela organização Outward Bound Brasil para participar do curso de formação de instrutores nível 1 da Leave No Trace, realizado em Campos do Jordão (SP), nos dias 28 e 29 de setembro.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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