Foi diante de um pôr do sol magnífico, que coloria de laranja as formações rochosas e as árvores da Caatinga, no Parque Nacional da Serra das Confusões, no Piauí, que o casal Letícia Alves e Dennis Hyde tiveram um estalo sobre como os parques, que por definição pressupõem o turismo, eram destinos ignorados pela maioria dos brasileiros. E não era por falta de beleza ou atrativos, disso a paisagem do sertão piauiense não deixava dúvidas. Essa semente de curiosidade germinou na pergunta, “mas afinal, quantos parques nacionais existem hoje no Brasil?”. E a resposta – que diga-se de passagem não foi tão simples de achar – causou uma surpresa que foi motor para uma ambiciosa jornada que começava a ser planejada ali. Atualmente existem 75 parques nacionais no país, distribuídos em todos os estados brasileiros, com exceção de Alagoas. E em junho de 2021, os dois deram início à expedição Entre Parques BR, com o objetivo de conhecer todos eles.
De carro, mini trailer, barco, bicicleta ou a pé em trilhas, Letícia, psicóloga, e Dennis, economista, rodaram mais de 100 mil quilômetros pelo país. Juntos viram cada quilômetro e cada parque transformar o outro, em movimentos maiores que os de locomoção entre os destinos e que, após o retorno para casa – em outubro de 2024, depois de três anos e 5 meses – ainda estão sendo digeridos e percebidos.
Movidos pela curiosidade por esses parques desconhecidos, sobre os quais havia tão pouca informação disponível, eles cumpriram não apenas a missão de visitar todos os 75, mas de disponibilizar as informações sobre eles – como acessar, o que fazer, dicas e fotos – a partir de suas percepções e experiências na viagem, tudo compartilhado no site do projeto. Nesse esforço, os dois viraram verdadeiros porta-vozes dos parques nacionais do Brasil, reconhecidos pelo próprio Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão gestor das unidades de conservação federais.
De volta a São Paulo, onde eles moram, o casal conversou com ((o))eco durante uma caminhada em outro tipo de parque – o urbano Ibirapuera, no coração da metrópole paulistana – sobre a viagem, as histórias e transformações, e os próximos caminhos possíveis para continuar, de um modo ou de outro, nos trilhos dos parques e da conservação da natureza.
Confira a entrevista completa:
((o))eco: Não tem como começar essa entrevista sem perguntar sobre como surgiu a ideia de percorrer todos os parques nacionais brasileiros.
Letícia: A ideia surgiu a partir de uma viagem que a gente fez de férias em 2018, quando a gente ainda morava em São Paulo e trabalhava nas nossas carreiras iniciais. Nós visitamos três parques nacionais: a Serra da Capivara, a Serra das Confusões [esses dois no Piauí] e a Chapada das Mesas [no Maranhão]. E nós ficamos muito impactados nessa viagem, não só pelas belezas e pelas singularidades de cada um desses três parques, mas com toda a questão da falta de informação e principalmente da falta de visitação. Quando a gente estava na Serra das Confusões, vendo um pôr do sol maravilhoso, perguntamos pro Jadiel, que era quem estava nos guiando, quantas pessoas tinham visitado o parque no último mês e ele respondeu duas. E essas duas pessoas éramos nós dois. Então saímos desse lugar de achar que era um privilégio enorme, que era uma delícia estarmos só nós dois ali, para pensar que havia alguma coisa muito errada de estarmos só nós dois. Porque aquele lugar era lindo demais, maravilhoso demais e importante demais, para que todas as outras pessoas não conheçam.
Dessa semente se seguiram três anos de planejamento até a expedição começar, em junho de 2021. Quão difícil foi achar as informações sobre os parques nessa etapa?
Dennis: No momento em que começamos a pensar nisso, a primeira coisa que fomos procurar era quantos parques nacionais tinha no Brasil. E essa informação não estava organizada. Você dava um Google e ele completava assim: “quantos parques têm nos Estados Unidos”, “no Canadá”, e não tinha no Brasil, né? Havia informações difusas, notícias antigas, mas não havia nada atualizado. Então nós fomos buscar no site do ICMBio e contamos um por um. E fomos inclusive entender o que era o ICMBio, porque também não tínhamos esse conhecimento. E nós fomos contar e havia informações dos parques indicando aqueles que estavam abertos ou fechados pra visitação.
E na hora que fomos elaborar um roteiro, queríamos separar, irmos primeiro nos abertos e depois nos fechados, porque o fechado seria mais difícil, né? Não sabíamos nem se ia dar. Só que a gente se deparou com o fato de que tinha [parque] fechado do lado do aberto, ou perto. E aí a gente falou “não vamos rodar o Brasil inteiro e ter que voltar de novo para cá, vamos bater na porta”. E seguimos com essa atitude, de chegar nas cidades e bater na porta do ICMBio. E nós sempre fomos muito bem recebidos. No final, não tem nenhum parque verdadeiramente fechado para visitação. Todos eles estão acessíveis de alguma forma e são acessados por algumas pessoas. A maioria por turistas, mas também por atividades ilegais, né? E talvez trazendo os turistas a gente consiga inibir essas atividades ilegais, mas foi uma construção, pegando informação daqui e de lá.
E particularmente sobre a Região Norte, a gente se segurou, em termos de ansiedade, porque a gente não tinha ideia nenhuma do que esperar. Nós mal sabíamos nomear os parques, por onde chega, dá para ir de carro ou só dá pra ir de balsa. E nós deixamos essa grande “nuvem” da Amazônia para o final propositalmente, pra podermos aprender com os parques e construir relacionamentos e foi a coisa mais acertada mesmo que a gente fez.
Quais foram os parques mais difíceis de “achar”?
Dennis: Eu posso falar de dois. Um deles é o Parque Nacional das Sempre-Vivas, que fica no meio de Minas Gerais e é um parque que se você colocar, não sei hoje, mas se você colocasse na época no Google, para achar no mapa, ele não achava. Só que eu sabia que ele [o parque] era perto de Diamantina, era a melhor informação que tinha, porque no site do ICMBio falava alguma coisa de Diamantina. Então eu comecei a ligar em Diamantina e perguntar “Oi, você conhece o parque nacional? Você já foi?”. E a galera das pousadas, falava que não tinha parque nacional ali. Até que eu insisti tanto – eu sou insistente (risos) – que teve um cara que falou que ia perguntar pro gerente, para eu ligar no dia seguinte. E eu liguei no dia seguinte e ele falou “ó, confirmei com o gerente, esse parque não existe, você deve estar falando do Biribiri [parque estadual], mas esse Sempre-Vivas não existe”. E como é que a gente fez? Nós fomos até lá e batemos na porta do ICMBio, fomos super bem recebidos e abrimos as portas.
Pesquisa em Instagram, pesquisa por localização, ver um cara que bateu uma foto num lugar e ir atrás – eu faço tipo de coisa, sou obstinado (risos).
E o outro é o Parque Nacional Nascentes do Lago Jari, no Amazonas. Ele fica na beira da BR-319, que é uma estrada que liga Manaus a Porto Velho [Rondônia]. Metade dessa estrada, tipo 400 km, são de terra e é um pavor atravessar durante a época de chuvas porque são atoleiros infinitos e nós queríamos evitar passar por ali. E ele é colado na 319, mas não tem nenhuma trilha, nenhum acesso por ali.
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E a gente então foi conversar com o ICMBio e o próprio ICMBio fica muito longe e não faz uma visita frequente a esse parque e eles não tinham como trazer uma informação com relação ao uso público. Aí eu fui procurar no mapa por onde que acessaria o parque por rio. Aí achei uma cidade que chama Tapauá. Liguei para lá, pruns dois ou três lugares, e perguntei se alguém conhecia um barqueiro, como é que chega lá. “Ah, você chega de barco vindo de Manaus”. E nós já estávamos em Porto Velho, não íamos voltar para Manaus. Então comecei a procurar “barcos Rio Purus” e aí comecei a ligar para todos eles. Eles só davam a informação cinco semanas antes, nós tínhamos que nos planejar com 2, 3 meses de antecedência, porque eram distâncias enormes. Criei uma planilha de barcos. Achamos uma pessoa em Tapauá que tinha uma voadeira e que não conhecia o parque, então no final emprestou para uma outra pessoa, que conhecia, e fomos. Saímos de Porto Velho, fomos de carro pela Transamazônica, um dia de viagem até Lábrea, que é o fim da Transamazônica, lado oeste. Passamos dois dias lá. O barco demorava de 2 a 4 dias, dependia. Na ida foram dois dias e meio, na volta quatro dias e meio.
E uma vez lá no parque, como foi? Havia pelo menos alguma placa sinalizando que vocês tinham “entrado” na unidade de conservação?
Dennis: Não, nada. Nós ficamos numa pousadinha, era um lugar onde não tinha nenhuma infraestrutura turística. Nós levamos atum, pão, porque não comemos carne bovina, e era super difícil de ter o que comer. E aí uma vez lá, nós contratamos essa pessoa que conseguiu um barco emprestado, nos levou ali pelo Igarapé do Jacinto, entramos no parque, demos um rolê de barco e foi tudo que a gente conheceu do parque. Nós fizemos tudo que o parque poderia nos oferecer. E o barco quebrou, o cara conseguiu consertar com um grampo. É duro.
Letícia: E a gente se deu conta, de que não sabíamos nem fazer as perguntas corretas. Com a cabeça de paulistano, nós perguntávamos uma coisa e vinha uma resposta completamente diferente. Tipo isso, quanto tempo demora? Não sei, pode ser de 2 a 4 dias. Como essa pessoa não consegue nos dar essa resposta? Nós não conseguíamos entender, porque a realidade é tão diferente e nós éramos tão ignorantes em termos de Amazônia. E quando você chega ali em Tapauá, a cidade é inteirinha abastecida por esse barco, de material de construção, gasolina até comida mesmo. Então o tempo vai demorar de acordo com quanta carga tem para descarregar ao longo do caminho. Às vezes você vai ficar uma noite inteira descarregando, outra vez vai ter menos carga. Nós fomos comer um sanduíche e o queijo só chegava no barco do dia seguinte, então não tinha queijo. São realidades muito diferentes.
Dentro das suas próprias limitações, o próprio ICMBio foi muito parceiro nessa empreitada. E vocês tiveram esse momento, após a conclusão do 75º parque, de dar essa devolutiva ao órgão ambiental sobre o que vocês viram nas unidades de conservação. Como foi essa relação e esse momento?
Letícia: Nós recebemos realmente muito apoio do ICMBio. Eles sempre nos receberam muito bem. E acho que foi um trabalho de aproximação muito pessoal, porque nós íamos bater na porta, literalmente, das pessoas, então acho que teve uma coisa gostosa em que nós conseguimos desenvolver um relacionamento com os analistas, pessoalmente, não com o órgão como um todo. Essa relação com o órgão veio depois. Mas essa relação pessoal, de entender a realidade do que é ser um funcionário público desta autarquia e de você realmente entender o quanto eles são sobrecarregados e o quanto essas pessoas têm um amor à causa absurdo, muitas vezes em condições de trabalho difíceis.
Dennis: Sim. E nós combinamos de ir para Brasília no final da expedição porque a gente queria conversar com o ICMBio, levar a nossa visão, como se fosse uma conclusão da expedição. Nós fomos no dia 31 de outubro e fomos recebidos pelo presidente e pela diretoria do ICMBio. E apresentamos nossa visão, algumas melhores práticas em termos de uso público que nós vimos e achamos que podem ser difundidas por outros parques, também levamos alguns riscos em atividades que estão relacionadas direta ou indiretamente ao turismo e que nós achamos que elas precisam ser revistas, questões que nos preocupam sobre bem-estar, em especial dos servidores, que são muito ameaçados em alguns locais, e também levamos um pouco do que a gente começou a criar.
Foi super bacana a discussão, vão haver alguns desdobramentos. Vamos sedimentar essa conversa em planos de ação. E isso foi de manhã e de tarde nós fizemos uma apresentação super longa, está no YouTube, foram 3 horas e pouco, que foi um bate-papo em que estavam convidados servidores do ICMBio do Brasil inteiro. Contamos dos parques, trouxemos algumas boas práticas, dentro de uma visão nossa, né? Porque é interessante, eles conhecerem a visão do visitante. Eles ficam muito imersos no dia a dia, na fiscalização e tudo mais e é legal você ouvir sobre o seu trabalho de outro ponto de vista.
Inclusive, vocês começaram a expedição em junho de 2021, ainda durante o governo Bolsonaro, uma época em que os órgãos ambientais estavam sob muito ataque. Como foi isso?
Letícia: Isso é uma coisa interessante mesmo para falar. Porque nós batíamos na porta e demorava mais ou menos uma hora de conversa até as pessoas se sentirem confortáveis o suficiente para conversar com a gente, para saber quem são esses desconhecidos que bateram na nossa porta querendo conhecer o parque. Havia um cuidado enquanto a gente ia conversando, trocando, e todo mundo que a gente realmente encontrou e que entendeu o que nós estávamos querendo fazer e que estávamos no mesmo lado, pelas unidades de conservação, para somar e fortalecer enquanto sociedade civil, rendeu uma conversa e uma construção muito bacana. E eu acho que tem uma força. Cada ator tem o seu papel. Você, como jornalista está fazendo um papel, nós, como sociedade civil, estamos fazendo um outro papel. E os analistas estão fazendo outro. E é importante você somar, né?
Como psicóloga, inclusive, como foi essa leitura da saúde mental dos servidores? Você viu diferença entre as equipes dos parques mais e menos estruturados, por exemplo?
Letícia: Claro que tem especificidades. Tem algo que é comum, que é a sobrecarga. E o quanto isso afeta o bem-estar das pessoas, de maneira geral, dos servidores. A questão da sobrecarga de trabalho nós vimos em todos os lugares, mesmo os parques mais estruturados ou não. Mas quando a gente começa a falar das regiões mais isoladas há um diferencial muito grande que é o tamanho das cidades e o quanto essas pessoas estão deslocadas não só dos seus lugares de origem, mas muitas vezes são vistas como inimigos. Essas pessoas chegam numa cidade para fazer um trabalho e a cidade inteira se revolta contra elas. Independente de saber quem elas são ou não, porque elas chegam com a farda, a camiseta e já são tachadas. Isso acaba fazendo com que as pessoas fiquem muito isoladas, porque você acaba só convivendo com o seu grupo de trabalho, então você vai ter uma dificuldade muito grande de encontrar momentos de lazer com pessoas que possam te tirar da ideia do trabalho, que é super importante.
E você tem o que eu acho que é uma violência muito velada. Nós temos profissões que são já reconhecidas pelo quanto essas pessoas estão expostas a uma violência, tipo policiais, quem trabalha com desastres… E nós temos as pessoas que trabalham com o meio ambiente, que são submetidas inúmeras vezes a situações de violência, algumas por serem ameaçadas pessoalmente ou por estarem num ambiente que está sendo o tempo inteiro destruindo e você está nesse nesse dia a dia, e isso não é, no meu ponto de vista, contemplado com a real seriedade.
Vocês acreditam que isso tem reflexos na visitação enquanto parte da gestão?
Letícia: Acho que sim. Nós escutamos muito de servidores que nos recebiam e pediam desculpa, porque não tinham braço para dar atenção o suficiente ao uso público. Porque as pessoas acabam tendo que apagar incêndios, alguns literais, outros simbólicos, mas é essa sobrecarga absurda – uma sobrecarga de trabalho e mental – em que você vai resolvendo o que é urgente, o que é para ontem, o que precisa acontecer. E muitas vezes o uso público acaba sendo o último da lista.
Um parque tem potencial de transformar e vocês foram em 75. Como vocês foram sendo transformados nessa jornada?
Letícia: Acho que nós temos respostas diferentes (risos). Eu consegui colocar em palavras recentemente o que hoje eu entendo que é a minha maior transformação. Eu acho que isso pode se alterar porque eu ainda acho que a gente vai digerir essa expedição durante muito tempo e talvez as transformações ainda estejam por vir, mas hoje o que eu consegui colocar em palavras é que o meu mundo ficou maior. Eu entendo hoje que existem outros seres, além dos humanos, que fazem parte. Eu sou psicóloga, a minha vida inteira atendendo pessoas e olhando para as pessoas e eu tinha um olhar muito menor para os seres que compartilham a Terra conosco.
A partir do momento em que a gente é exposto o tempo inteiro a uma floresta, árvores que eu não sabia nem nomear e que de repente você vê de novo e você começa a reconhecer, você aprende qual que é o nome, você vê de novo numa outra trilha e você sente essa familiaridade, que você vê bichos que eu nem sabia que existia, sei lá, jaratataca. É tipo um gambá nativo do Cerrado. A primeira vez que eu vi foi um estranhamento.
A partir do momento que você vê esses bichos e troca olhares com esses bichos, você começa a se relacionar com esses outros seres. E hoje para mim, eu sinto que o meu mundo está maior porque existem esses outros seres. Isso para mim foi a maior transformação hoje.
Dennis: Eu ainda não tenho isso tão bem organizado como a Lê, são mais ideias que estão sendo formuladas nesse momento. Ela fala que o mundo dela é maior, acho que ela pensa talvez de forma mais profunda. Eu penso no mundo menor, em termos de extensão mesmo. Como a gente percorreu tudo isso de carro, de barco, eu sei a distância que tem daqui pra Amazônia porque eu percorri ela inteira de carro. E tem essa sensação, a Amazônia está aqui do lado. A sensação anterior é que era um outro mundo porque você pega um avião para chegar e parece que você entra num mundo que não está conectado com o seu. E ao fazer isso por terra, você fala, cara, a Amazônia está ali. Agora eu entendo o que está acontecendo, a fumaça, como é que ela chega, e tudo mais.
A outra coisa é essa questão romantizada. Quando a gente saiu para expedição teve uma pessoa que falou “Ah, mas vocês têm uma visão muito romântica”. E a minha vontade era falar “romântico nada”. E hoje eu consigo dizer que era romântica. Que era o que eu tinha, né? Eu saí com uma visão romântica de visitar todos os parques nacionais e curtir todos os parques nacionais e eu nunca imaginei, a gente não previu isso para o futuro, de trabalhar com conservação, que é o que nós estamos fazendo hoje. Nós estamos divulgando os parques, tentando juntar pontas, porque nós entendemos que o chamado era esse.
O chamado, que era de visitar os parques, virou um chamado de que a natureza está gritando e eu não estava ouvindo porque estava sentado, fazendo um outro tipo de trabalho, que tem a sua importância, mas hoje eu acho que esse aqui é mais importante. Eu preciso me educar mais, me envolver mais ainda… Acho que passa um pouco por aí, passa pela ignorância, como a Lê falou, e hoje a gente se reconhece como uma parte da natureza. Antes eu não sabia nem dizer o que era isso. Eu não entendia o que era a natureza, que é quase uma religião, não no sentido religioso, mas no sentido de você acreditar que tem um poder aí que a gente desconhece.
E também na nossa relação. Eu sou uma pessoa muito objetiva, eu trabalhava em banco, eu aprendi a trabalhar de uma certa forma. E nessa expedição a gente se relacionava por 24 horas por dia. No começo foi difícil, né? Nós não rodávamos na mesma vibe de trabalho. Era vibe de casal, mas a de trabalho era outra. Cada um com seu ritmo, forma de ver e de fazer. Eu mais rasa e mais ampla, ela mais profunda e mais limitada. Ela faz uma coisa muito bem feita. Eu faço 40 coisas mal feitas. E tudo bem, nós aprendemos a nos complementar nisso e respeitar os tempos.
O Entre Parques se tornou mais do que uma expedição para todos os parques nacionais. Como vocês têm desenvolvido esse lugar de porta-voz dos parques e quais os próximos passos?
Dennis: Nos últimos meses, nós conseguimos captar alguns recursos financeiros de terceiros, de apoiadores e de marcas apoiadoras, e nós nos questionamos sobre o melhor uso para esse dinheiro e uma das coisas foi doar uma parte pro Instituto Ekos. Eles têm um Acordo de Cooperação no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu [Minas Gerais] e eles terminaram a Trilha do Janelão, com parte desse recurso que nós conseguimos trazer. Nós conseguimos elaborar, confeccionar e transportar placas que estão sendo levadas agora pro Parque Nacional Monte Roraima, para poder sinalizar o parque e trazer a educação ambiental. Nós conseguimos fazer o projeto Parque Ao Lado, em que a gente patrocinou a ida de 40 crianças ali de Ponta Grossa, da área rural, para visitar o Parque Nacional de Campos Gerais, receber um lanche, uma caneca, acompanhadas de um guia incrível.
E em novembro, no 3º Congresso Brasileiro de Trilhas, lançamos o IASTRO. No começo da expedição, nós morávamos num trailer e olhávamos muito pro céu, porque a gente ficava muito pra fora, ao ar livre. E nós começamos a fazer perguntas, que horas nascia a lua, por exemplo, que estrelas eram aquelas, quais constelações… E viajando de um parque para outro, pensando como o céu seria diferente. E nesse processo conhecemos a certificação de céus escuros – a Dark Sky International – e que só tinha um parque brasileiro com esse selo, o Parque Estadual do Desengano [no estado do Rio de Janeiro]. E fomos entender os diferentes critérios e questionar se outros parques também não mereceriam esse selo. E fomos entendendo isso junto com o astrônomo Daniel Mello, que é uma das principais pessoas que trabalham com astroturismo nos parques. Nós já tínhamos calculado um índice com relação a poluição luminosa e climatologia, apresentamos para ele, que achou incrível porque não existia nenhum índice, que ele conhecesse, que calculasse esse potencial de forma mais massiva. Ele sugeriu que era importante acrescentar dados sobre infraestrutura turística e nós então consolidamos tudo isso numa fórmula matemática, com pesos diferentes para cada critério, que está aberta. E isso tudo dá uma nota, que é transformada numa classificação no IASTRO, feita a partir da ciência cidadã. Esse potencial precisa ser, claro, avaliado, mas isso ajuda os astrônomos a saber onde ir, que locais priorizar, e chamar atenção de empresas relacionadas ao astroturismo para esses destinos. Podemos inclusive pensar numa certificação nacional para observação de astros. Pelos cálculos do IASTRO, existem 35 parques nacionais com potencial maior do que o do Desengano. E isso pode ser trazido inclusive para diversificar o turismo e as atividades desenvolvidas em parques. Atualmente temos classificações disponíveis para os 75 parques, mas queremos expandir para parques nas outras esferas e até outras categorias de Unidades de Conservação abertas ao turismo. E isso inclusive pode ser usado para promover a proteção aos céus escuros, contra a poluição luminosa, e também estimular áreas protegidas a melhorarem sua infraestrutura turística para melhorar sua nota, numa competição super do bem.
E como é estar de volta, o que vocês, Letícia e Dennis, pretendem fazer?
Dennis: Nós precisamos agora balancear as coisas. Nós precisamos achar uma forma de nos sustentar financeiramente de novo. Mas nós começamos a fazer esses projetos pilotos e a gente acredita neles e quer fazer mais, e trazer os parques pro imaginário das pessoas.
Nós temos que achar o formato de como a gente consegue se sustentar trabalhando alguma coisa que esteja diretamente relacionada a isso ou nos sustentar em alguma outra coisa, mas que nos permita uma abertura pra tocar esses projetos em paralelo. Ou até mesmo criar uma fundação, um instituto, para apoiar os parques nacionais. E continuar advogando, pesquisando, visitando… é muito importante continuarmos visitando os parques. Eu quero voltar em todos. Nós fomos no Itatiaia há três anos, já tem novas trilhas, lá na Chapada dos Veadeiros também. É maravilhoso isso. Então ainda temos que achar esse balanço.
De forma imediata, nós temos uma exposição, que estamos preparando junto com o Instituto Semeia, que vai ser lançada em março de 2025 para um evento restrito e nós vamos ficar com esse material para que a gente possa expor onde a gente quiser e puder, desde que o visitante não tenha que pagar. O que para a gente é ótimo. Não sei se vamos conseguir algum tipo de remuneração a partir disso, mas se não der, vamos em frente, mas isso é uma das coisas que estamos fazendo.
Em paralelo, nós queremos estudar alguma coisa relacionada à conservação. Ecoturismo, ecopsicologia, porque nós não nos sentimos legítimos de falar dos assuntos. Por mais que a gente conheça, tem tanta pesquisa que já aconteceu, queremos complementar e criar em cima disso.
Letícia: Eu tenho um desejo muito grande também que é parar, no sentido fisiológico da coisa. Nesses últimos três anos e meio a cada 15 dias a gente mudava de lugar e ia reconhecendo as pessoas. Foi um movimento muito importante, que sacudiu um monte de coisa dentro de mim que eu nem sabia que estavam lá e que vieram à tona, e enquanto estava movimentando, elas continuavam chacoalhando, e agora, parada, sedimentada, acho que tem um trabalho de digestão. Até para eu conseguir delimitar, me reconhecer e me reencontrar. Porque nós convivemos 24 horas por dia, houve momentos em que nós estávamos tão conectados, tão juntos, que nós não precisávamos falar. Nós descobrimos que nos comunicamos telepaticamente, você acredite ou não (risos). E tem agora todo um trabalho inclusive de reconhecimento, de reintegração da nossa própria unidade. Até então era nós, o Entre Parques. Mas nós somos dois indivíduos e isso é muito bonito também.
Queremos focar agora em elementos diferentes. Eu tenho muito desejo de juntar a minha bagagem de psicologia com o mundo natural e a ecopsicologia – ciência que entende que não é possível separar a saúde individual da saúde do planeta, numa visão mais integral e política – acaba sendo um caminho óbvio nesse sentido.
Mas mais do que isso, eu acho que é me reconhecer e entender quem eu sou depois de tudo isso. A gente se povoou de alguma maneira por muitos elementos e por muitos seres e eu sinto hoje uma necessidade muito grande de ter um recolhimento para eu voltar a me entender enquanto indivíduo, voltar a entender quem é a Letícia depois de todo esse processo.
E como vocês percebem o impacto da expedição de vocês pros outros, para sociedade de forma geral?
Dennis: Isso é uma montanha-russa ao longo da expedição. Porque as redes sociais são necessárias, mas são difíceis. As redes abriram muitas portas para nós. Pessoas que nos conheciam, davam dicas, fazia pesquisa, isso foi muito legal. Mas a gente também se questionava se nós estávamos chegando nas pessoas e provocando alguma mudança. Recentemente, até por ideia da Lê, nós começamos a colecionar feedbacks positivos. Tem pessoas que nos acompanham e nós estamos levando felicidade, de alguma forma, para essa pessoa, mas que nós falamos para visitar algum parque e ela fala “não, estou bem assim, com esse bem-estar que vocês estão me trazendo”. Tem gente que fala “estou bem com o que vocês estão me trazendo e é educação ambiental, agora eu sei acessar outros lugares e instrumentos que eu não sabia, mas vou continuar parado na minha casa”. E tem gente que só precisava de um empurrão para visitar ou que já visitava e agora conhece novos parques. E, claro, tem o pessoal que já tinha muito conhecimento e que veio somar.
É muito legal ver isso, esses diferentes grupos de pessoas, cada um sendo tocado de uma forma. Eu espero mesmo que a gente consiga continuar de alguma forma. O Instagram não vai seguir no mesmo formato porque não vamos estar mais rodando, mas o que eu gostaria é de personificar de nós e deixar a persona no parque. Não é algo urgente, mas queremos achar essa fórmula para conectar as pessoas direto aos parques também.
Letícia: Eu fui me surpreendendo ao longo da expedição com esse retorno nas pessoas. Nós já nos questionamos muito sobre a efetividade desse trabalho nas redes sociais – porque dá muito trabalho – se nós estávamos conseguindo chegar nas pessoas e se estávamos passando a mensagem que queríamos. Às vezes até em dúvida sobre qual a mensagem que nós queremos passar. E eu acho que era mais cética sobre as redes e a capacidade de passar essas mensagens do que o Dê. Então topar essa exposição… e eu acho que só topei pelos parques, porque nós acreditamos muito neles e fui transformada por eles. Então eu sinto quase que eu devo isso a eles. E eu fui me surpreendendo com o tipo de comunicação que vinha das pessoas. Ver, por exemplo, que uma pessoa decidiu visitar um parque a partir do momento que ela estava vendo que nós estávamos no parque, isso deu muita força, mas é uma grande responsabilidade.
Nós saímos para expedição imaginando que ia terminar a expedição e pronto. Nós nunca imaginamos que era o começo de algo muito maior. É muito novo e surpreendente. Eu sinto uma necessidade muito grande de estudar para que eu me autorize a entrar nesse “lugar de fala”, digamos assim. Porque nós nos tornamos porta-voz, acho que sim, mas quero me apropriar melhor desse lugar para ter mais clareza, para não ser leviano. Quando nos vimos nesse lugar, com essa possibilidade de fazer pontes entre dois mundos, o que a gente pertencia antes de sairmos e esse novo mundo que estamos hoje, eu tomo isso com muita seriedade e responsabilidade.
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