Reportagens

Influência tóxica: como as redes sociais impulsionam a posse ilegal de silvestres

Crimes banalizados e debates distorcidos mascaram riscos à biodiversidade, à saúde humana e à integridade da legislação

Aldem Bourscheit ·
9 de julho de 2025

Comentaristas e sites da maior rede de mídia do país difundiram abaixo-assinados pela devolução de um felino selvagem à uma “influenciadora” e reacenderam a polêmica sobre pessoas mantendo e expondo animais selvagens, como se fossem domésticos.

Em abril, uma jaguatirica foi apreendida pelo Ibama em Uruará, no interior do Pará. Segundo o órgão, ela estava mal alimentada, tinha bicho-de-pé, ferimentos e não tinha os dentes caninos esquerdos. A fiscalização diz que uma influenciadora tentava lucrar explorando a imagem do animal nas redes sociais.

“A situação odontológica do animal revela que ele teve privação nutricional nos primeiros meses de vida, o que poderá repercutir negativamente no momento em que for avaliada a possibilidade de retorno à natureza”, detalha o Ibama.

Na época, as multas aplicadas à infratora somaram R$ 10 mil, por aprisionar e explorar o animal silvestre. Ela também deveria retirar todas as imagens e vídeos do espécime das redes – o que ainda não fez, conferiu ((o))eco –, com pena de novas multas em caso de descumprimento.

A jaguatirica é reabilitada num Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas), no DF. Se tudo correr bem, ela pode voltar à natureza. No entanto, canais da maior empresa de mídia do país, o Grupo Globo, comentaram abaixo-assinados para que o animal volte à quem o mantinha ilegalmente.

O rebuliço gerou reações do chefe do Centro, Júlio Montanha, que esclareceu que a jaguatirica não foi resgatada. “O animal foi caçado”, afirmou. Ele lembrou de um vídeo onde a própria influenciadora admite que seu cachorro encurralou a mãe da jaguatirica e levou o filhote até seu marido.

Coordenador de Biodiversidade do Instituto Ampara Animal, Filipe Carneiro analisa que termos como “resgatado” e “adotado” para animais silvestres capturados ou mantidos ilegalmente sugerem uma situação legalizada e transmitem a impressão equivocada de que eles estão bem cuidados. 

“No entanto, muitos desses filhotes são caçados ou retirados da natureza após a morte das mães e acabam sob os cuidados de pessoas sem preparo técnico ou autorização legal”, ressalta. 

Diante disso, Montanha (Ibama) destaca que a família deveria ter seguido a legislação e procurado imediatamente uma autoridade ambiental ou policial para que a jaguatirica fosse atendida corretamente. “Infelizmente isso não foi feito”, ressaltou. O resultado foi um animal adoentado exposto em mídias eletrônicas.

A jaguatirica vítima de maus-tratos foi atendida por equipe do Ibama, após ser apreendida no Pará. Foto: Ibama / Divulgação

Descaminhos digitais

Apesar do episódio danoso à saúde e bem estar do animal, a influenciadora tenta reavê-lo na Justiça e os abaixo-assinados para que ele volte ao cativeiro paraense já somam mais de um milhão de nomes. 

Diante disso, Carneiro (Ampara Animal) destaca que muitas campanhas digitais – veiculadas livremente por plataformas buscando audiência – são movidas mais pela emoção do que por razão, ciência ou legislação e influenciam indevidamente debates sobre o destino de animais silvestres. 

“Essas mobilizações não devem pautar decisões judiciais ou ambientais. Órgãos competentes devem seguir a lei e diretrizes de conservação da biodiversidade, mesmo diante de pressões públicas baseadas em vídeos e likes que distorcem a realidade”, ressaltou.

O equilíbrio de florestas, rios e campos depende diretamente da fauna nativa, destaca Marcelo Oliveira, especialista do WWF-Brasil. No entanto, ele alerta que, fora desses habitats, essa mesma fauna pode representar riscos sanitários. “Há o potencial de transmissão de doenças entre animais e seres humanos”, lembra.

Sinais dessa realidade já são registrados. Antes restrita à Amazônia, a febre oropouche foi registrada no Espírito Santo e no Rio de Janeiro. A expansão do vírus é ligada ao desmate e à crise climática. Ele é transmitido sobretudo pelo mosquito maruim e provoca febre e dores intensas, similares aos da dengue e chikungunya.

Ainda conforme Oliveira, os influenciadores que promovem a posse ilegal de animais silvestres podem estimular crimes como caça e tráfico. “As redes sociais são nichos globais para esses delitos”, constata. “Mas a legislação segue atrasada e sem mecanismos eficazes de controle nacional e internacional”, denuncia.

De acordo com a campanha “Se não é livre, eu não curto”, do WWF-Brasil e Ibama, só entre 2015 e 2021 foram confiscados 13 milhões de animais e plantas, de quatro mil espécies, em 162 países e territórios mundiais. Além disso, mais de 30 mil animais foram soltos em 2023 após passar por centros federais de reabilitação.  

Capivaras e outros animais também são alvo de influenciadores e criminosos. Foto: Valquiria Aldelita Ferreira / Creative Commons

Legislação relativizada

Desde 1967, a legislação federal define que os animais silvestres pertencem ao poder público e só podem ser mantidos sob aval dos órgãos ambientais. Descumprir essa norma prevê de multas à detenção, mas as punições ainda são brandas e insuficientes para coibir realmente os crimes contra a fauna.

“Já vi criminosos sendo liberados pela polícia antes de quem fez a autuação”, relata Marcelo Oliveira (WWF-Brasil). 

Contudo, a aplicação da lei também pode ser direcionada pelos debates públicos nas redes sociais, muitas vezes contaminados por polarizações políticas e desinformação, que acabam travando o avanço de políticas ambientais mais consistentes. Casos recentes evidenciam esses descaminhos. 

Em 2023, a apreensão pelo Ibama de uma capivara mantida em Autazes (AM) gerou R$ 17 mil em multas. A comoção pública foi apoiada por uma deputada e a Justiça Federal concedeu a guarda provisória da capivara ao influenciador que a mantinha.

Outra ação teve como palco o sítio de Nicole Bahls, em Itaboraí (RJ), onde a Polícia Federal e o Ibama apreenderam 2 macacos-prego, com documentos de origem falsificados. Como divulgou ((o))eco, o caso disparou uma operação contra o tráfico de animais silvestres, em março do ano passado.

As investigações apontaram que ao menos 120 macacos-prego – incluindo o ameaçado macaco-prego-de-crista – foram traficados pela quadrilha, além de centenas de outros animais nativos, como araras e papagaios, cervos e iguanas, que eram inclusive vítimas de maus-tratos.

Por essas e muitas outras que até a compra legal de animais silvestres, de criadores autorizados, é criticada pela Ampara Animal. Para a entidade civil, isso também estimula o consumo, maus-tratos, usos e abusos em redes sociais. 

Filipe Carneiro, coordenador de Biodiversidade da ong, explica que animais silvestres não são adaptados para conviver com pessoas, pois têm comportamentos e necessidades que só podem ser atendidas na natureza ou centros especializados. “Há milhões de cães e gatos para serem adotados no Brasil”, lembra. 

Diante disso tudo, é preciso conter o avanço da posse ilegal de animais silvestres atualizando a legislação brasileira, responsabilizando e controlando as redes e os influenciadores. Caso contrário, a conservação da fauna silvestre seguirá refém da desinformação e de apelos emocionais.

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

Leia também

Reportagens
1 de novembro de 2018

Comércio ilegal de guepardos continua através de redes sociais

Entre 2012 e 2018, 1.367 guepardos foram anunciados como disponíveis para venda em 906 postagens nas redes sociais, de acordo com análise do Fundo de Conservação para os Guepardos

Reportagens
12 de maio de 2015

Tráfico de animais silvestres: Maldade de estimação

Transformar um animal silvestre em pet, além de crime, é maldade. Para cada um que ganha um dono, nove morrem na captura ou no transporte.

Reportagens
3 de novembro de 2011

Impunidade e falta de preparo facilitam tráfico de animais

Leis brandas e operações sem frequência determinada colaboram para salto na supressão da fauna para comércio ilegal. Biólogos podem ajudar na tática de combate.

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.