Apontada como a maior fronteira de expansão agropecuária do Brasil, a região entre o Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – o Matopiba –, é alvo de acelerada devastação da vegetação nativa, muitas vezes sobre terras de posse cinzenta e baixa fiscalização.
Nesse cenário, uma fazenda nos municípios piauienses de Canto do Buriti e Pavussu desmatou 13,7 mil ha em três meses, mostra alerta atualizado em abril do MapBiomas. Foi o maior registro desde o início do monitoramento, em 2019. O sistema aponta que a derrubada começou em novembro passado.
Além disso, documentos obtidos pela reportagem indicam que a área deverá abrigar 43 mil cabeças de gado. A Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (Semarh) informou que o desmate tem autorização. O mesmo segue em curso.
Com base em imagens satelitais, a geógrafa Débora Lima, pós-doutora pela USP e parte do grupo de Estudos Críticos do Desenvolvimento Rural do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), estima que o desmate já passa de 30 mil ha.
“Isso é mais que o dobro do alerta inicial”, ressaltou a especialista. Na prática, as perdas saltaram de uma área similar a de 19 mil para 43 mil campos de futebol, ou pouco maior que o território da capital Belo Horizonte (MG).
Além da velocidade, registros rurais analisados por ((o))eco mostram que o desmate ocorre em terras atribuídas a Maribel Schmittz Golin, associada à massa falida da Fazendas Reunidas Boi Gordo, grupo envolvido em um dos maiores escândalos financeiros e fundiários do país.

Castelo financeiro de areia
Naquele “consórcio de bois”, cotas de propriedades e rebanhos foram vendidas a investidores desde meados dos anos 1990, mas o esquema faliu em 2004 em meio a denúncias de pirâmide financeira, ocultação de ativos e uso indevido de terras. Na época, 32 mil pessoas perderam o equivalente a R$ 4 bilhões.
Relatórios da falência mostraram que terras públicas e privadas registradas em nome da Boi Gordo foram repassadas a pessoas físicas e jurídicas próximas do grupo econômico, muitas vezes sem registro válido ou com certidões produzidas fora do processo judicial.
Em documentos anexados à mesma ação de falência, o nome da gaúcha Maribel Schmittz Golin surge vinculado à exploração ou posse de parte de várias fazendas da metade sul do Piauí, apurou a reportagem.
Os MPs de São Paulo – onde a Boi Gordo era registrada – e do Piauí investigaram desvio de imóveis da massa falida, fraudes e grilagem. Algumas propriedades ligadas ao grupo tiveram registros bloqueados por usarem documentos invalidados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).


Grande corrida pela terra
Doutora em Sensoriamento Remoto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e professora da UFPI, Giovana de Espindola descreve que, desde os anos 1980, o agro se expande firme e forte no estado, sobretudo para a produção de soja exportada à Ásia.
“Satélites mostram grandes desmates na chegada de novos proprietários e aberturas graduais em áreas consolidadas”, descreveu.
Segundo ela, a agropecuária é impulsionada principalmente por investidores de fora do estado, como da Região Sul, de São Paulo, Goiás e Mato Grosso. “Há também a participação crescente de capital estrangeiro, sobretudo da China, França e Inglaterra”.
Estudos de pesquisadores da UFPI, UFSC e Incra indicam que a terra se tornou um ativo financeiro para fundos e corporações transnacionais, o que intensifica a concentração fundiária e os conflitos agrários. “Esse processo ameaça a sobrevivência de comunidades tradicionais e indígenas”, destacou Espindola. A biodiversidade também sofre. “Entre o Cerrado e a Caatinga, o Piauí abriga espécies endêmicas ainda em catalogação, muitas já ameaçadas pela conversão de florestas em lavouras”.


Outro desenvolvimento possível
O MapBiomas aponta que a Caatinga perdeu 9,25 milhões de ha nos últimos 40 anos, ou 14% da vegetação original – uma área comparável à de Portugal ou duas vezes a do estado do Rio de Janeiro. A agropecuária foi o principal motor dessas perdas, somada agora à expansão de usinas solares e eólicas.
Esse cenário se reflete no Piauí. Enquanto fechávamos a reportagem, uma operação em curso do governo estadual tinha aplicado R$ 23 milhões em multas por crimes como desmate ilegal de 5,8 mil ha em fazendas de municípios como Cajueiro da Praia, Milton Brandão, Bom Jesus e Currais, inclusive no sul do estado.
“O combate ao desmatamento ilegal vem possibilitando a redução de áreas exploradas sem autorização”, disse José Renato Araújo Nogueira, gerente de Fiscalização da Semarh. “As ações de monitoramento são realizadas de forma contínua através de imagens de satélite atualizadas”.
Já Espindola avaliou que a expansão agrícola e energética pode ir na contramão das metas para reduzir as emissões e “agrava fortemente os riscos climáticos em regiões semiáridas”.
Na visão dela, desviar dessa perigosa rota exige mais do que repressão, pede melhorias legais e normativas. Investir em sensoriamento remoto, bases de dados e validação do Cadastro Ambiental Rural fortaleceriam a proteção socioambiental e alternativas menos danosas de desenvolvimento.
“O Cadastro no estado ainda têm muitas falhas, como sobreposição de áreas, baixa validação e pouco controle sobre reservas legais e áreas de preservação permanente”, destacou. Um painel federal mostra 108 cadastros no estado com análise de regularidade ambiental concluída.
Tentamos contato com Maribel Schmittz Golin por meio de telefones e emails de empresas ligadas a seu nome e também do Grupo Golin, mas não fomos bem sucedidos até o encerramento da reportagem. O canal segue aberto.
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