Reportagens

Papo de onça

De uns anos para cá, voltou a ser comum ouvir rugido de onça no Pantanal. É sinal de abundância do felino na região e oportunidade única para quem tenta se comunicar com elas.

Manoel Francisco Brito ·
1 de novembro de 2006 · 18 anos atrás

Luzinete Gonçalves, ou Nêga (foto), como ela mesma prefere, pesca profissionalmente nos rios e corixos do Pantanal desde os 8 anos de idade. Hoje, perto dos 40, deu azar na vida e comanda 8 homens num barco que apelidou de Titanic. Nêga não se incomoda muito por ser forçada a conviver diariamente com a possibilidade de um naufrágio. Reclama mais da falta de um banheiro feminino e da intranqüilidade do sono a bordo. A quantidade de onças pintadas que ouve esturrando todas as noites não a deixa dormir. “Tem hora que fica uma barulheira danada, assustadora”. Ela conta que isso é recente. “É de uns anos para cá. Antes, não tinha tanta onça por aqui”.

Relatos como esse colocam um sorriso no rosto do biólogo Peter Crawshaw, um dos maiores especialistas do Brasil em felinos. A freqüência e quantidade de esturros, rugidos para os menos familiarizados com o assunto, é um sinal de abundância de jaguares. E Crawshaw, que é funcionário do Ibama e está desde julho no Parque Nacional do Pantanal Matogrossense fazendo um levantamento preliminar sobre a situação da população local de onças, anda pela área de ouvidos bem abertos.

Apenas 4 felinos, todos do gênero Panthera – o tigre, o leão, o leopardo e o jaguar (nossa onça pintada) – rugem sobre a face da Terra. A onça parda, por exemplo, mesmo com todo aquele tamanho, só mia. “Ela é como um gato que cresceu demais”, diz Crawshaw, que por força de seu ofício, adora escutar esturros de onça. Ele e sua assistente de campo e esposa, a bióloga Micheline Vergara, registram, num caderno, cada rugido que ouvem pelas margens dos espelhos d’água do Pantanal. Crawshaw, entretanto, não se contenta apenas em ouvir e contar esturros. Ele é também uma espécie de virtuoso na arte de dialogar com onças.

Experiência

Crawshaw imita muito bem a vocalização de uma pintada. Que o diga o imenso jacaré – parte freqüente da dieta dos jaguares na região – que boiava tranqüilo na Baía do Burro, um braço do rio São Lourenço. O biólogo esturrou próximo dele uma, duas vezes. Na quarta vez, o bichão já estava visivelmente ressabiado. Virou-se e encarou o esturrador. No quinto esturro, ele teve um chilique. Levantou a cabeça para fora d’água, urrou e foi saindo da área de fininho (foto). Emitir o som de um rugido de onça não é misterioso. É preciso roncar forte e alto, lá no fundo da garganta, com a boca aberta. O “olá” básico também não parece ser difícil de reproduzir.

Basta soltar um ronco longo, seguido de uma dezena de curtos, emitidos no ritmo de uma respiração ofegante, finalizados com um novo ronco longo, cujo som vai baixando à medida que o fôlego se esgota. Difícil é convencer a onça de que você é uma onça. Deve haver algum segredo na modulação dos roncos por que, nas poucas vezes em que tentei, felino nenhum respondeu. Mas quando é Crawshaw quem esturra, não é raro, desde que haja uma onça por perto, escutar uma resposta. Num início de noite de domingo em outubro, ele e Vergara saíram para esturrar às margens do São Lourenço. Duas atenderam ao seu chamado, em lados diferentes do rio. “Um macho e uma fêmea”, diz.

Como é que ele sabe? Anos de experiência auditiva. “O esturro do macho de pintada é mais grave, mais lento e pausado. O da fêmea é pouco mais agudo e a série de roncos (roufenhos) é mais rápida, o que dá à sua vocalização um tom impaciente”, explica Crawshaw, que está sempre buscando maneiras de aprimorar sua capacidade de esturrar melhor e propagar o som mais longe. Para se fazer escutar a distância, ele está sempre de olho em qualquer objeto que possa servir de caixa de ressonância. Ele vinha utilizando uma pequena junta de cano em ângulo de 90º com pouco menos de 2 centímetros de diâmetro. Mas ultimamente, anda experimentando com métodos de amplificação (foto) desenvolvidos por alguns dos bambas do esturro no Pantanal.

Um deles é Marino Ferreira, um ex-peão que já matou muita onça e hoje trabalha temporariamente na Reserva Particular do Patrimônio Nacional (RPPN) do Acurizal, na fronteira sul do Parque. Ferreira esturra com o auxílio de uma casca de cabaça seca com dois furos, um de cada lado. O rugido sai dela alto e grave. Oélio de Arruda Falcão, o Fião, um funcionário antigo do Parque, desenvolveu uma caixa de ressonância baseada nos mesmos princípios, mas com uma forma diferente. Ao invés de redonda, ela é alongada. Trata-se de uma casca de porongo, outra fruta, igualmente seca e também com dois furos de cada lado. Ela tem um terceiro orifício, na parte de trás, por onde se ronca, como se fosse uma corneta. O caninho de Crashaw coube ali perfeitamente, o que parece ter lhe dado maior capacidade de variar a modulação de seus rugidos.

O melhor

Fião, aliás, parece ser um gênio da acústica perdido no meio do Pantanal. Recentemente, deu a Crawshaw um novíssimo amplificador de esturros, um pedaço grosso de bambu com uns 40 centímetros de comprimento. Fechado numa ponta e aberto na outra, parece um megafone rudimentar, com um buraco apenas na lateral, por onde se esturra. O som que ele emite é coisa para pintada nenhuma botar defeito (foto). Mas a perfeição sonora, infelizmente não garante a comunicação. Há esturros diferentes para situações diferentes, embora ninguém tenha certeza sobre o que eles querem dizer exatamente. Como na maioria das vezes os esturros de uma onça são apenas ouvidos à distância, sem uma visão direta do contexto em que ocorrem, sua tradução ainda tem muito de adivinhação.

O macho que respondeu naquela noite numa margem do rio São Lourenço, diz Vergara, fez um barulho “meio tímido”. “É como se ele estivesse dizendo: ei, tudo bem? O que você está fazendo aí?”, especula. Talvez fosse uma pintada jovem em dispersão, com medo de estar invadindo território de uma onça mais brava, que provavelmente, ante um potencial invasor de seu território, emitiria um rugido mais seguro de si, como se estivesse dizendo ‘não chega porque se não vai levar dentada’. A barulheira provocada por esturros de onça no Pantanal tem seu pico na época do acasalamento, por volta de fevereiro, no período da enchente. A região fica cheia de pintadas dizendo ‘vem cá meu bem’. Mas como lembra Crawshaw, não é raro que isso possa ser dito fora de época.

“Não há garantia de que eles só se acasalem neste período”, diz. Portanto, é bem possível que uma pintada ruja um ‘amor da minha vida’ num tom mais apaixonado em setembro, digamos, e isso seja interpretado como um esturro mais agressivo. Para aumentar a sua capacidade de entendimentos da linguagem das onças, Crawshaw está sempre prestando atenção aos esturros feitos por gente como Ferreira e Fião. “Eu mesmo ainda estou aprendendo com essa turma”, diz ele, que começou a esturrar atrás de pintadas há 28 anos. Seu sonho de consumo nessa área é sair uma noite dessas com Vicente, um índio Guató (foto) que mora numa barranca do rio Paraguai próxima ao Parque. Até os bambas do esturro na região reconhecem que, por ali, ninguém esturra como ele.

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Comentários 1

  1. Sildemy Oliveira diz:

    Como explicar um esturro que ouvi uma vez caçando com meu primo em uma área que não existem onças pintadas, más era um esturro de pintada que parecia muito próximo… com o cair da tarde encontramos uma carcaça bem fresca com sangue ainda no chão, nessa mesma área outra vez encontramos uma onça susuarana morta ??.

    Até hoje não entendo tudo isso.