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Do Proálcool ao Biodiesel 2

O entusiasmo em torno da produção de biodiesel não pode nos deixar esquecer da degradação causada pelo Proalcool. Amplos estudos de impactos são indispensáveis.

26 de novembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Poucos meses atrás publiquei, nesta mesma seção, um texto com o título “Do Proálcool ao Biodiesel: a história se repete”. Nela apontava o fato, muito curioso, de que parece existir absoluta unanimidade sobre as vantagens ambientais do biodiesel, apesar da óbvia semelhança desta iniciativa com a outra, tomada décadas atrás, que teve impactos ambientais muito negativos. É evidente que ninguém pode ter a pretensão de mudar o rumo dos acontecimentos através de artigos jornalísticos. Mas, levando em conta a importância do assunto e o fato de que, desde então, já foram publicadas mais de uma centena de notícias sobre o biodiesel, nenhuma das quais sobre seus impactos ambientais, retomo o tema, arriscando-me a ser chato. Mas, não importa.

A lista de prejuízos é enorme, e não se limita ao ecológico.

Embora mal documentado do ponto de vista acadêmico, existem poucas dúvidas sobre o fato de que a expansão da cana-de-açúcar, para produzir álcool combustível, foi o golpe de misericórdia para a Mata Atlântica, hoje reduzida à sua mínima expressão. A brusca expansão desse cultivo tem ocasionado múltiplos problemas ambientais, que incluem perda de biodiversidade, erosão de solos, deterioração de bacias hidrográficas e redução da qualidade da água, além da alteração de seus fluxos, aumento de incidência de catástrofes “naturais”, emissão de carbono na atmosfera, contaminação das águas e do ar, destruição de paisagens de alto valor turístico, perda do potencial pesqueiro em águas continentais e costeiras, etc. A lista de prejuízos é enorme, e não se limita ao ecológico. O impacto social da expansão da cana-de-açúcar tem sido muito negativo. A cidade se beneficiou, é verdade, com um combustível mais limpo. Porém o saldo positivo urbano não foi replicado na área rural, e o balanço ambiental geral é seguramente negativo para o país.

Se isso ainda não foi feito, e creio que não foi mesmo, um estudante de pós-graduação de qualquer disciplina acadêmica pode desenvolver, para o país como um todo, ou para qualquer estado onde a cana-de-açúcar ocupe extensão significativa, uma pesquisa tomando como hipótese que o Proálcool foi o principal ou um dos principais vetores da destruição acelerada da Mata Atlântica, desde seu lançamento até o momento em que alcançou seu ponto de equilíbrio. Para isso dispõe das excelentes informações estatísticas do IBGE e de material abundante, estatístico e de sensoriamento remoto, sobre o processo de desmatamento. O resto, os impactos negativos sobre o meio ambiente, é apenas conseqüência lógica. Se quiser sofisticar a tese, pode estimar a área ocupada pela cana-de-açúcar que nunca deveria ter sido desmatada, tratando-se de terras de preservação permanente. Ou pode estimar quantas toneladas de carbono foram emitidas na atmosfera pela queima dos resíduos de coleta. Ou, ainda, quantos metros cúbicos de vinhoto entraram nos rios dos vales principais. Garantem-se correlações altamente positivas entre os prejuízos ambientais mencionados e o desenvolvimento do Proálcool.

O passado é bom para aprender sobre as conseqüências dos atos humanos. Esse é um dos objetivos da História. A semelhança histórica entre a conjuntura que lançou o Proálcool e a que está lançando o Biodiesel é evidente e, outra vez, a história se repete, sem que nenhuma lição tenha sido absorvida. Os promotores do Biodiesel, para o qual já se dispõe até de recursos financeiros consideráveis, formam legião e já existem planos concretos no Nordeste, na Amazônia e até em estados relativamente pequenos como Rio de Janeiro, para cultivar mais soja, mamona e amendoim, entre outras oleaginosas. Até as usinas de álcool aderiram ao entusiasmo geral. Mais ainda, a Ministra do Meio Ambiente parece ter achado adequado liberar a soja transgênica para produzir biodiesel. Somando apenas algumas das informações noticiadas, já existem propostas para cultivar quase 1 milhão de hectares e para criar ao redor de 300 mil empregos novos.

Não obstante os indiscutíveis benefícios ambientais dos biocombustíveis, sobre os quais já se derramou muita tinta, é interessante especular sobre o que poderia ser negativo. Em primeiro lugar, se produzirá mais demanda por terras e, claro, mais desmatamento, principalmente na Amazônia, o que deverá ser adicionado à violenta e irrestrita expansão da soja e de outros cultivos sobre terras novas, também na Amazônia, para satisfazer a demanda dos países do Oriente. Isso requer estradas novas e melhores, o que acarreta outros problemas de ocupação desordenada de terras e invasão de territórios indígenas e de áreas protegidas. Desmatamento significa a eliminação absoluta da biodiversidade, mais ainda se a legislação não é respeitada (e, como bem se sabe, ela não é respeitada), incorporação na atmosfera de milhões de toneladas de carbono queimando madeira derrubada para “limpar a terra”. A agricultura de alta tecnologia significa contaminação de água, ar e solos. Os sedimentos e a contaminação gerados pela agricultura terminam sempre nos rios, que perdem seu potencial biológico. Os transgênicos significam, entre outras coisas, o aumento da capacidade dos cultivos para sobreviver em áreas onde naturalmente não se dariam bem, com o risco de expansão em terras pobres, como o Jalapão do Tocantins. Deve-se perguntar ainda quais serão as emissões indesejáveis das indústrias de biodiesel e onde serão dispostas. Mas existem, sem dúvida, muitas outras perguntas ambientais e sociais a serem feitas e que precisariam de resposta antes que fosse tomada a decisão, apadrinhada até por ministérios que deveriam ser a voz da prudência no Executivo, como Meio Ambiente e Ciência e Tecnologia.

É evidente que não seria a mesma coisa se o Biodiesel fosse orientado formal e exclusivamente para o aproveitamento de terras já dedicadas para a agricultura, atualmente subutilizadas. Nesse caso se evitariam muitos dos problemas mencionados. Porém nada dos discursos e notícias faz prever que essa é a intenção, nem que este seja um objetivo realista, sem incentivos especiais e uma rígida fiscalização. E ainda assim teria impactos ambientais a serem examinados.

É lamentável que, neste caso, se deixe de lado o que já é prática até no setor de turismo no Brasil, ou seja, realizar uma avaliação ambiental estratégica. Estas se diferenciam das outras na abrangência do exame, que não se limita aos impactos ambientais diretos e indiretos da obra ou da ação, mas que leva em conta todas as implicâncias compostas, adicionadas e potenciais derivadas da sua interação com outras obras, ações ou medidas. O lançamento do Biodiesel é um caso típico no qual uma avaliação ambiental estratégica é requerida. Possivelmente o Ministério do Turismo, que está trabalhando esse tema com relação ao fomento do turismo no Centro-Oeste, assessorará graciosamente o Ministério de Minas e Energia sobre como proceder.

Para concluir, repito o que já disse na coluna anterior sobre o assunto. O Biodiesel é muito provavelmente iniciativa muito boa para o país. Não cabe se opor a essa iniciativa, como tampouco é razoável se opor aos cultivos transgênicos. Mas, num caso como no outro, ademais do entusiasmo que geram os benefícios, deve-se conhecer os riscos para poder tomar, enquanto é tempo, as medidas corretivas.

*Esse texto foi editado em 02/06/2024 para repaginação

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