Há poucas semanas foram divulgadas informações de que madeireiros peruanos haviam invadido, outra vez, o território brasileiro e que a intervenção oportuna das autoridades nacionais havia detido a ação ilegal, inclusive capturado alguns dos operários. Desta vez, o caso chamou a atenção pelo fato de que os meios usados pelos invasores eram consideráveis. Com efeito, uns dias depois se soube que a equipe pertencia a uma empresa de grande porte, que operava dentro da mais completa “legalidade”, com concessão florestal e plano de manejo aprovados pelo Inrena (o Ibama do outro lado) e, ainda mais, que contava com a mais prezada certificação florestal internacional, respaldada pelo Forest Stewardship Council (FSC) o que lhe dá acesso a mercados de madeira muito privilegiados. Então, como é possível que uma empresa deste nível estivesse roubando madeira do país vizinho?
A certificação florestal, também conhecida como “selo verde”, é uma nobre idéia lançada nos anos 1980s e desenvolvida nos anos 1990s para respaldar a utopia do manejo florestal sustentável, especialmente nas florestas tropicais, onde esta prática tem sido raramente aplicada. Como bem se sabe, muitos pensam que o uso sustentável das florestas é a única possibilidade de manter seus benefícios para as gerações futuras, pois, “no caso de não ser utilizadas não teriam valor para a sociedade” e, consequentemente, seriam destruídas e substituídas por atividades agropecuárias. Essa teoria é a base da legislação florestal de quase todos os países tropicais do mundo. De fato, ela está funcionando nos paises desenvolvidos, de clima temperado e frio. Mas, até agora, nunca funcionou em países em processo de desenvolvimento. Neste contexto, a certificação florestal deveria ser uma ferramenta complementar à implantação dos mecanismos legais que ordenam praticar manejo florestal sustentável, ou seja, aplicar planos de manejo que garantam à perpetuidade a geração de bens e serviços ambientais da floresta.
O FSC, que está formado principalmente por comerciantes e usuários de madeira, todos muito importantes, trabalhou arduamente de 1990 a 1993 desenhando o conceito e colocando-o em prática. Em termos simples, trata-se de oferecer um serviço voluntário de verificação da qualidade do manejo aplicado pelas empresas que exploram a floresta, que seja suficientemente exigente como para que os compradores de madeira e seus produtos tivessem certeza que, usando esta matéria prima, não contribuiriam ao desmatamento ou à exploração destrutiva e/ou ilegal de florestas. A verificação é feita através de empresas especializadas avaliadas e creditadas pelo FSC. Obviamente, o FSC também desenvolve outras ações para estimular o interesse pela qualidade do manejo, em especial, ampliando sua pressão nos mercados consumidores e nos produtores de madeira e promovendo a adoção pelos governos das medidas legais e institucionais necessárias. Em 1998 o FSC reclamou ter já mais de dez milhões de hectares de florestas certificadas e, claro, muito mais na atualidade. Preciso é ressaltar que a certificação é praticada tanto em florestas manejadas naturais como nas artificiais e que, ademais, se realiza por igual em países desenvolvidos, bem como no resto do mundo. O FSC é hoje o selo verde mais reconhecido com ações em mais de 75 países e em todos os continentes. Ademais, transformou-se numa organização formal, com sede na Alemanha e representações em diversos países, inclusive no Brasil. Atualmente, os negócios com produtos certificados geram a movimentação de mais de 5 bilhões de dólares por ano em todo o globo. Portanto, como era de se esperar, agora existem algumas réplicas de instituições certificadoras como o FSC e, obviamente, também há uma pequena legião de empresas certificadoras credenciadas por uma ou outra matriz (selo) em muitos países.
Levando-se em conta o anterior, é realmente curioso e preocupante que a empresa peruana surpreendida roubando madeira no Brasil seja certificada pelo SFC. Mas, isso não tem sido uma novidade, já que outros casos foram internacionalmente denunciados, por exemplo, no Congo, Guiana e Rússia e que até países florestais muito desenvolvidos, como a Noruega, aparentam estar defraudados pela opção. No nível menos público, entre gente da profissão florestal de qualquer país da África, Ásia ou América Latina, se conhecem e comentam inúmeros outros casos onde a certificação florestal, por qualquer selo, é motivo de sorrisos sardônicos e de escárnio. É óbvio que algo não está funcionando bem. É palpável que a boa vontade de uns, outra vez, apenas foi útil para maior lucro de outros, os mesmos bandidos de sempre, disfarçados de empresários.
O que não funciona bem não é relacionado com a certificação de plantações florestais. Nelas, é muito fácil confirmar e checar o cumprimento efetivo do conjunto de regras reconhecidas internacionalmente. Tampouco, salvo exceções, é problema seu uso nas florestas temperadas dos países desenvolvidos, onde a legislação florestal é geralmente bem obedecida e onde o divórcio entre a aplicação desta e os requerimentos da certificação é mínimo. O problema está nas florestas naturais dos trópicos úmidos onde, de uma parte, a legislação florestal é letra morta e, de outra, porque nessas condições constatar qualquer fato pode se transformar em uma odisséia e onde, enganar até profissionais muito bem qualificados, pode não ser tão difícil para quem domina a área e os meios de fazê-lo. Ainda mais porque o conceito de manejo florestal sustentável está muito relaxado, até para o SFC e, como já escrito em outros artigos nesta mesma coluna, está sendo substituído pela extração florestal de baixo impacto que é, sim, uma exploração mais benigna, embora não implique necessariamente na prática de um manejo sustentável. E isso sem mencionar que muitas vezes cabe duvidar da capacidade e honestidade de algumas das empresas certificadoras e, ainda mais, dos seus funcionários de campo, em geral jovens inexperientes e mal remunerados.
A certificação florestal deve garantir que a madeira utilizada em determinado produto é oriunda de um processo produtivo manejado de forma ecologicamente adequada, socialmente justa e economicamente viável e no cumprimento de todas as leis vigentes. Para confirmar o cumprimento dessas pautas o FSC, assim como outras organizações tem desenvolvido um conjunto de princípios que se expressam através de “critérios e indicadores de sustentabilidade” (C&I). Embora existam diferenças entre os C&I desenvolvidos por diferentes agências, todos têm o mesmo propósito e, na verdade, se parecem muito. No terreno, os C&I se transformam em listas de verificações, algumas bastante complexas, a serem realizadas com periodicidade pelos inspetores das empresas creditadas. Os indicadores de maior dificuldade de levantamento são, precisamente, os mais importantes, pois são os que se referem à sustentabilidade ecológica e aos serviços ambientais da floresta.
Várias agências internacionais, como o Departamento Florestal da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e a Organização Internacional da Madeira Tropical (OIMT) têm promovido, durante os últimos 15 anos ou mais, a aplicação de critérios e indicadores de sustentabilidade como uma forma de garantir o uso sustentável e a conservação da floresta. Esses esforços têm-se traduzido essencialmente em financiamentos multinacionais ou doações bilaterais para países tropicais, em especial na África e na Ásia. Com estes recursos se está testando a aplicabilidade dos C&Is e se está analisando como transformá-los em normas de aplicação obrigatória. A conclusão geral é que a aplicação de C&Is é desejável, mas que falta muito caminho por percorrer para que isso seja realidade. Praticamente em todos os países tropicais se estima que os C&Is requeiram adaptações nacionais e regionais e que, de qualquer forma, ela depende de reformas legais e, em especial, do equipamento das administrações florestais dos países tropicais que, na atualidade, nem sequer são capazes de supervisar minimamente a legalidade da origem da madeira.
Como bem se sabe nenhuma nova legislação florestal, tem alterado o fato que quase toda a exploração florestal tropical é ilegal e social, econômica e ecologicamente danosa. Tanto é assim que, poucas semanas atrás, o delegado de um importante país madeireiro da África, participante de um evento regional, simplificou o assunto da aplicação de C&I no seu país dizendo: Como podemos avaliar algo que nem existe? Referia-se, evidentemente ao manejo florestal. O responsável de um projeto de teste de aplicação de C&I na Amazônia brasileira explicou, em outro evento regional, que sua maior dificuldade foi encontrar sequer uma empresa que tivera um plano de manejo razoável que fosse razoavelmente aplicado e que mantivera alguma estatística mínima das suas intervenções no bosque. É, com efeito, impossível pretender avaliar ou medir sofisticados indicadores de sustentabilidade onde nem sequer se aplica um plano de manejo. Ou seja, a distância entre a louvável intenção dos promotores da aplicação dos C&I e a realidade é desproporcionadamente grande.
A situação do manejo florestal no Peru é deprimente. O país tem como o Brasil, uma “das mais modernas legislações florestais do mundo” que, lá como aqui, não serve praticamente de nada e, pior, tem agravado muito o problema ao permitir explorações sobre enormes extensões de floresta. Os planos de manejo são feitos apenas para cumprir com as normas e, inclusive quando são de qualidade aceitável, os empresários fazem literalmente o que desejam, pois ninguém do Inrena vai inspecionar seriamente a exploração. Por exemplo, é bem conhecido que aproveitam qualquer descuido para roubar madeira de lei em terras indígenas, áreas protegidas e, se possível, também na concessão do vizinho ou, porque não, no país vizinho.
Deve-se compreender que, pela teoria florestal, um verdadeiro plano de manejo deveria ser um documento só, que inclua: uma avaliação de impacto ambiental, um estudo de viabilidade técnica e econômica, um plano de gestão da floresta de longo prazo e, para cada ano, um plano de extração de baixo impacto. Todos esses elementos são partes fundamentais de um verdadeiro plano de manejo que deveria, assim mesmo, incorporar todos os critérios e indicadores e sua própria certificação através de seu mecanismo de monitoramento e avaliação, sem desmedro de uma certificação independente. É realmente incompreensível como, ao invés de se fazer bem um verdadeiro plano de manejo, suas partes são desengatadas, separadas e vendidas como peças soltas que nunca poderão funcionar harmoniosamente. Esta situação é agravada porque a administração florestal dos países tropicais, que deve supervisar a aplicação dos planos de manejo, não tem condições para cumprir suas funções e é alastrada e minimizada na voragem caótica e corrupta que domina a conquista de novos territórios, como a Amazônia ou as selvas da África Central e Borneo, para mencionar apenas os principais.
De outra parte, aplicar seriamente um plano de manejo, em um bosque natural tropical úmido, é muito caro. São enormes e diversos os investimentos necessários em estudos, equipamento, infra-estrutura e treinamento. Os empresários florestais sérios, e existem, não podem aplicar planos de manejo quando 95 % ou mais de seus competidores não aplicam nenhuma regra a não ser a de lucro fácil e rápido e onde o governo não faz nada sério para evitar isso. Certificar a qualidade do manejo também é caro. É impossível que os C&Is e a certificação florestal resolvam o que nem as leis, os regulamentos e as administrações florestais dos países tropicais conseguiram após quase um século de intentos frustrados. O problema é de ordem ou, melhor, de desordem social. Não é um problema técnico nem, na sua essência, econômico, pois a exploração florestal sustentável pode, perfeitamente, dar lucro.
Por tudo isso, a única possibilidade de se conseguir manejo florestal de verdade nos trópicos é uma mudança drástica na atitude da população e dos seus governantes, com relação aos espaços a serem “conquistados” onde se criem as condições para que, pelo menos a maioria das empresas, cooperativas ou comunidades que exploram a floresta, não possam escapar da legislação em vigor. Há que se aplicar efetivamente planos de manejo bem feitos. Neste caso existiria menor probabilidade de maus empresários usarem a certificação apenas para enganar e ganhar mais e, de outra parte, as certificações independentes seriam realmente uma forma na qual estas empresas pudessem se sobressair. Seria um mundo quase ideal. O risco é que, como vão as coisas, quando a sociedade despertar, a situação das florestas naturais estará tão ruim que, provavelmente, o pouco que subsista deva ser preservado como ouro em pó.
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