Com um atraso de mais de 40 anos sobre a Venezuela e de quase 20 anos sobre o Brasil, o Peru finalmente estabeleceu, no mês de maio, seu Ministério do Meio Ambiente. Está longe de ser o ideal e já está recebendo muitas críticas que começaram antes de ter seu primeiro ministro nomeado. Dizem ser anticonstitucional, pois foi estabelecido por decreto legislativo em não por lei do Congresso como manda a Constituição e, pior, parece ter nascido com alguns defeitos sérios. Mas, de qualquer modo, não cabe discutir que é um passo à frente para um país que até pouco era, sem dúvida, um dos mais atrasados da América Latina na gestão do meio ambiente. Em termos administrativos estava atrás até da Bolívia. Nesta nota se discute o fato, as circunstâncias em que esse Ministério foi estabelecido e as suas probabilidades de ter êxito e, assim mesmo, o significado que essa ação tem para o Brasil.
Não pode se falar que tudo o que se refere ao meio ambiente é atrasado no Peru. Esse país foi pioneiro na América Latina no manejo da fauna selvagem; começou tarde a estabelecer áreas naturais protegidas, porém em quatro décadas recuperou todo o tempo perdido e, sob diversos parâmetros, está mais adiantado que a maior parte dos seus vizinhos; não teve sucesso em fazer plantações florestais industriais, como o Brasil e o Chile, mas é muito bom na promoção de florestas cultivadas em terras de comunidades camponesas e cooperativas; o desenvolvimento do segmento do ecoturismo ou turismo na natureza é notável e mais antigo que, por exemplo, no Brasil e; em termos de manejo de florestas tropicais, está tão atrasado como todos os outros países tropicais do planeta. No que definitivamente tinha e ainda tem um atraso notável é no tratamento integral do meio ambiente. Apenas dispunha de um Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAM) criado em 1994 por exigência dos bancos multilaterais, que era apenas de ornamento, sem qualquer poder real. De fato, nem sequer conseguiu, nos seus 13 anos de existência, elaborar uma verdadeira estratégia nacional de meio ambiente, muito menos fazê-la aprovar pelo governo ou executá-la.
Porque aconteceu isso num país relativamente grande e que tem progressos adequados nas mais diversas áreas e inclusive em algumas tão relacionadas ao meio ambiente como as mencionadas nas linhas acima? A principal explicação parece ser que o boom ambiental do começo dos anos 1990, no Peru, foi dominado por uma cúpula de jovens intelectuais brilhantes, embora totalmente inexperientes nos temas que discutiam com aparente destreza e com grande poder de convencimento. Mais ainda, essa cúpula de patrícios de classe média alta limenha, era na sua maioria egressados da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Peru, onde um ótimo professor havia criado uma espécie de escola ambiental desde os anos 1980. Eles se agruparam numa organização não governamental, a Sociedade Peruana de Direito Ambiental, que alcançou, por mérito próprio, uma grande capacidade de captação de fundos internacionais. Aos pouco, sua estratégia foi copiada por outros grupos de advogados egressados dessa e de outras universidades. Não foi difícil para eles, em geral brancos e bonitos, cultos e socialmente bem relacionados, se colocar no topo da pirâmide de cidadãos que trabalhavam no tema ambiental, passando acima dos muito mais rústicos e bem menos comunicativos grupos dominados por biólogos, engenheiros, geógrafos, físicos, sanitaristas e outros profissionais, quase todos formados em universidades públicas, os quais conheciam bem melhor a realidade ambiental nacional.
Esses grupos, através das suas instituições e aproveitando-se bem da criação do CONAM, dominaram durante as últimas duas décadas praticamente todos os processos de formulação da legislação ambiental peruana, incluindo o Código de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais, a Lei Orgânica de Aproveitamento dos Recursos Naturais, a Lei sobre Conservação e Aproveitamento da Diversidade Biológica, a Lei do Sistema Nacional de Avaliação do Impacto Ambiental e até a última versão da Lei Florestal, entre outras. Também monopolizaram os meios de comunicação com suas opiniões sempre ponderadas e bem apresentadas, embora muitas vezes se referissem a uma realidade que estava longe da do mundo lá fora. Não seria justo deixar de reconhecer que essas correntes do ambientalismo propuseram e fizeram muitas coisas importantes e valiosas, das quais se destaca sem dúvida ter difundido o tema. Mas o denominador das suas intervenções em todos os campos mencionados foi seu caráter predominantemente declarativo, sem ferramentas que permitam uma aplicação efetiva dos princípios enunciados. Esse caráter utópico e teórico, que impregnou toda a legislação dos anos 1990 e 2000, tem levado a nação a um descontrole considerável das suas responsabilidades ambientais. O povo e o próprio governo ficaram perplexos ao constatar que a proliferação de leis maravilhosas não evitou que o entorno natural e urbano esteja cada dia mais degradado.
A criação do Ministério do Meio Ambiente obedece, como antes a do Conselho Nacional do Meio Ambiente, a uma poderosa pressão externa. Na verdade é uma condição para a aprovação do Tratado de Livre Comércio com os EUA e, inclusive, foi estabelecido por decreto com base dos poderes legislativos excepcionais que foram concedidos ao executivo para esse fim. No entanto, diferentemente dos casos anteriores, o governo não outorgou um papel de protagonista para preparar o texto legal, ao grupo de advogados antes mencionados. Ao contrário, convidou a um dos ambientalistas mais destacados do Peru, que é um biólogo. Ele aceitou o convite apesar do prazo peremptório de três a quatro meses fixado pelo governo de Alan Garcia. Ante a falta de um rol protagonista e com o pretexto de que a decisão de fazer o trabalho num lapso tão curto prejudicaria a qualidade, os mencionados grupos dominantes do ambientalismo se retiraram da mesa de trabalho e deixaram a outros a responsabilidade da lei que estruturou o Ministério do Meio Ambiente.
Como antecipado, o novo Ministério nem é perfeito, nem é o ideal. A comissão que fez a proposta teve que desenvolver seu trabalho entre a forte tendência da autonomia absoluta das regiões e o centralismo exagerado que é tradicional no país. Também teve que enfrentar interesses políticos diversos, incluindo o radicalismo pseudo-ambiental de inspiração anarquista, que pretende eliminar a mineração de médio e grande porte, ignorando que a atividade garimpeira é muito pior em termos ambientais e sociais. Ainda teve de enfrentar o sectarismo e, por isso, o novo Ministério não terá responsabilidade direta sobre o manejo das florestas naturais, nem tampouco sobre a nova agência nacional de águas, proposta pela comissão, mas que foi exitosamente disputada pelo velho Ministério da Agricultura. Estes dois fatos são graves. De uma parte, o manejo das florestas naturais remanescentes deve ser feito com critério ambiental e não exclusivamente de produção. Outra coisa é o reflorestamento com fins industriais que, sem dúvida, corresponde bem mais ao rubro da agricultura que ao do meio ambiente. De outra parte, é absurdo outorgar a gestão da água ao setor que é seu maior consumidor e contaminador, ou seja, a agricultura. Também se alega, embora seja cedo para afirmá-lo, pois o texto legal não é claro, que as faculdades do novo Ministério serão fracas em relação ao licenciamento ambiental, que deveria ser a sua principal razão de existir.
Entretanto muita coisa boa também resulta evidente da leitura da nova lei. Por primeira vez na história do Peru, o tema ambiental estará representado ao mais alto nível do governo nacional e terá suas réplicas equivalentes nos governos locais. Dependendo das qualidades pessoais do titular, este poderá ter muita influência nas decisões do Conselho de Ministros, do Presidente da República, do Primeiro Ministro e dos demais ministros aos que poderá tratar de igual a igual. Sua presença nos meios de difusão massiva será muito maior que na atualidade, quando ninguém do alto escalão do governo representa o setor ambiental. Outra importantíssima decisão foi a de criar um Serviço Nacional de Áreas Naturais Protegidas para administrar, finalmente com autonomia, mais de 12 milhões de hectares de parques nacionais e de áreas de outras categorias, sem contar as que são provisórias e somam outros 6 milhões de hectares. Outras medidas de grande importância foram incluídas entre as responsabilidades do novo Ministério que num prazo igualmente peremptório de 3 meses deve ser operacionalizado, na base principalmente do mencionado CONAM e do Instituto Nacional dos Recursos Naturais (INRENA) que serão desativados e de recursos novos, prometidos no texto legal.
Também é diferente a escolha do primeiro Ministro do flamejante Ministério. Trata-se de Antonio Brack, o mesmo que presidiu a comissão antes mencionada e que é um personagem com uma história de vida e de lutas que compete com a de Marina Silva até na sua humilde origem amazônica. Mas, o amor e interesse de Brack pela Amazônia e pela natureza foram enriquecidos por longos anos de estudos de biologia incluindo um doutorado na Alemanha e por cinco décadas de trabalho de campo, como cientista, educador (incluindo um valente programa de denúncias pela televisão) e escritor (mais de 20 livros). Foi, ainda, responsável por projetos governamentais tão importantes como o manejo da vicunha e o desenvolvimento rural integral de uma vasta região da Amazônia peruana. Brack tem pavio curto; embora seja charmoso, não é muito diplomático e não é do partido do governo, nem de nenhum outro. Portanto, sua sobrevivência no poder é de prognóstico reservado. Mas, não se pode imaginar um Ministro com maiores qualidades que as que ele reúne. Sua pose, frente a dignitários do mundo participantes numa reunião internacional recente em Lima, foi excepcional, recebendo, no ato mesmo da sua investidura, oferecimentos de apoio ilimitado, por exemplo, da senhora Chanceler da Alemanha e de outros assistentes europeus ao ato.
O tema pode parecer pouco importante para o Brasil, mas não é. Nenhum outro país do mundo deve mais que o Brasil, estar preocupado pela gestão ambiental no Peru. Nada do que lá acontece é inócuo para o Brasil que recebe suas águas, sofre com o seu regime hidrológico, com a carga sedimentar das suas águas e com os seus contaminantes químicos, procedentes principalmente da mineração. Madeireiros ilegais peruanos e brasileiros rondam a fronteira comum e criam conflitos constantes; os índios passam de um lado ao outro a capricho dos seus interesses promovidos por madeireiros, garimpeiros, traficantes e caçadores e, de outra parte, os dois países têm responsabilidade iniludível sobre os últimos índios não contatados que lá moram e sofrem de agressões indescritíveis. Finalmente, os dois países têm, na região amazônica que compartilham um patrimônio biológico extraordinário, que não reconhece fronteiras e que não é possível “nacionalizar”. Por tudo isso e por mais ainda, o Brasil deve estar satisfeito da mudança que acontece no país vizinho. Mudança cujo ato inicial, diga-se de passagem, foi presenciada em Lima, pessoalmente, pelo Presidente Lula e por sua comitiva.
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