Na última semana, na cidade de Lages, Santa Catarina, se realizou outra edição da Festa do Pinhão, iniciada em 1973. O pinhão, como todos sabem, é a fruta do pinheiro do Paraná ou araucária, uma bela árvore do sul do Brasil, ameaçada de extinção. É bom se fazer uma homenagem a essa espécie valiosa, mediante um evento que atrai algumas centenas de milhares de pessoas, que consumirão toneladas de pinhões e que movimentará vários milhões de reais em beneficio da economia local. Mas, semelhante festividade parece inconseqüente quando se sabe que, inclusive naquela região como em toda a sua área de distribuição, os remanescentes das florestas dominadas pelo pinheiro paranaense estão enfrentando uma situação precária, beirando o desaparecimento de seus maravilhosos capões em seu estado natural.
Restam apenas 150.000 hectares, na melhor das hipóteses, de matas de araucária, todas consideravelmente degradadas, no Brasil. Quer dizer mais ou menos o equivalente a apenas 100 lotes de 1.500 hectares por propriedade, de esses a serem doados ou regularizados aos milhares pelo governo para se fazer agricultura em outro bioma distante – a Amazônia.
O fato é corriqueiro. Existem inúmeras festividades que usam o nome de espécies de plantas ou animais extraídos da natureza, reconhecendo a sua importância excepcional para o homem, que apenas contribuem para aniquilá-los mais rapidamente. Outra coisa seria se, junto à promoção do consumo se fizesse uma campanha igualmente importante para sua conservação, ou seja, seu uso de modo sustentável. Entretanto isso é sonhar desperto. A copiosa propaganda da Festa do Pinhão nem menciona a necessidade de proteger a árvore que a sustenta. Quiçá uma que outra ONG consiga, com grande dificuldade e por esmola, um pequeno e escondido espaço para expor os motivos e a necessidade de se conservar a espécie. Disso não passará!
Continuando com o exemplo da araucária é bom se lembrar que, até o fim do século XIX e começo do século XX, as florestas dominadas por essa espécie ainda se estendiam sobre grande parte das regiões serranas dos estados do Sul. Foram destruídas pelo avanço da agricultura e da pecuária, quase sempre precedidas pela exploração florestal. Isso fazia sentido até certo ponto quando, ainda, podia se esperar o estabelecimento de um equilíbrio entre áreas agropecuárias e florestais. Porém esse ponto foi amplamente ultrapassado e, na atualidade, apenas subsistem pequenos relictos desses bosques e, o pior, é que nem essa situação precária é freio para os que, por uma razão ou outra, pretendem aniquilá-los. No estado de Santa Catarina a cobertura florestal natural cobria 78,7% do seu território ainda em 1912, mas, em 1995 apenas abarcava 17,4% e, no período entre 1990-1995 a cada ano se destruíram 12.600 hectares (3,6%) a mais. No Paraná a situação era pior, com uma destruição de 4,7% ao ano. Nem se sabe quanto a mais foi destruído desde então, mas, se apenas continuou sendo o que era na década passada, hoje a floresta com araucária é mesmo uma raridade.
Aliás, nem se precisa de estatísticas para confirmar o fato. Basta viajar nesses estados para presenciar o desastre ao vivo e direto. As florestas com pinheiro brasileiro estão sucumbindo à expansão dos pastos para bois e ovelhas e às intermináveis plantações do pinheiro vulgar (Pinus) e de maçã. A inconsciência sobre a realidade é tão grande que até os próprios donos de hotéis-fazenda, os que sobrevivem na base do turismo “ecológico”, acham que ainda tem “pinheiro de mais” apesar de que é evidente que os que sobrevivem são como uma triste mecha de frágeis cabelos brancos em uma calvície interminável e irreversível. Que fazer ante tanta ignorância? Como a gente não percebe que o esplêndido pinheiro paranaense está se acabando e que só poderá ser visto quando cultivado ou tristemente isolado, sem seus acompanhantes, ou seja, os seres vivos relacionados a ele por milhões de anos de co-evolução?
Poder-se-ia pensar que não importa a situação geral da espécie, pois existem parques nacionais e outras áreas protegidas que, como seu nome diz, protegem as espécies ameaçadas. Esse é um pensamento otimista demais, pois, por confissão do próprio Governo Federal, tão só um lamentável 0,6% dos pinheirais estavam protegidos por alguma unidade de conservação em 1997, apesar de que 10% do ecossistema são considerados o mínimo necessário para a sua sobrevivência. Hoje, apesar da bem-vinda criação de três microscópicas unidades de conservação com araucária nos anos 2003 e 2004, deve ter menos área total de pinheirais protegidos devido a que algumas das antigas áreas protegidas estão sendo recortadas ou invadidas. Ou, contrariamente, a proporção de pinheirais protegidos talvez esteja até esteja “aumentando” devido a que a sua área total está diminuindo… É a mágica dos números que os governos adoram para simular quão bonzinhos são!
Lages está em Santa Catarina, um estado com grandes belezas naturais, quiçá a maior concentração das mesmas que existe no Brasil. Não há dúvida que o povo catarinense gosta e está justificadamente orgulhoso da sua natureza, mas isso contrasta com a atitude dos seus governantes atuais. Para reduzir o tamanho do seu principal parque estadual, o da Serra do Tabuleiro, devido ao seu abandono pelo mesmo governo, não teve uma só voz de oposição na Assembléia Legislativa. Igual aconteceu quando, com o pretexto de favorecer os pequenos agricultores, se reduziu a área a ser protegida na margem dos rios, sem levar em conta o desastre social e econômico de proporções trágicas acontecido poucas semanas antes, que em grande medida foi ocasionado exatamente pelo descuido das matas ciliares.
Quando o Ministério Público protesta contra decisões nas bacias hidrográficas, que afetam a qualidade da água que serve a população, quem responde, no lugar de agradecer ou ficar calado, é o Presidente da Fundação do Meio Ambiente (FATMA), ou seja, o encarregado de proteger a água. E assim sucessivamente. Dia a dia se observa o mangue e as ladeiras mais empinadas da Ilha de Santa Catarina sendo legal e ilegalmente invadidos, por ricos e pobres. Todo mundo vê, menos, obviamente, as autoridades estaduais. Se elas interviessem, pressionadas pela imprensa, deixariam passar algumas semanas ou alguns meses e, logo, misteriosamente as obras continuariam e já ninguém tem mais forças para protestar.
Oxalá a Festa do Pinhão fosse algo mais que um simples negócio. Oxalá fosse, por exemplo, um palco para protestar contra a atitude dos atuais responsáveis pelo desenvolvimento e pelo futuro do Estado, tomando como símbolo a árvore mais emblemática do Estado. Oxalá que sirva para que o povo catarinense pense melhor em seus votos na próxima campanha eleitoral. Oxalá que cada participante da festa pense no assunto pelo menos no momento em que engula os órgãos reprodutivos da araucária.
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