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Pau que dá em Chico, dá em Francisco

Decisão do STF abre a saudável discussão sobre o respeito às leis do país. O Conama não tem direito de legislar nem sobre Estudos de Impacto Ambiental.

2 de agosto de 2005 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Para os amigos tudo, para os inimigos a lei. Esta é uma frase muito usada no Brasil e que, não raras vezes, significa que a aplicação da lei neste país é um mecanismo muito mais insondável do que a nossa vã filosofia poderia supor. Mas, afinal de contas, de que lei falamos?

Normalmente, o homem do povo tem a idéia de que qualquer ato que tenha origem em uma autoridade pública é uma lei. Sem querer dar uma de analista de botequim, até porque não consumo bebidas alcoólicas, e portanto não freqüento botequins. Certamente, a origem da concepção que identifica lei com um ato qualquer oriundo do governo tem origem em uma forte tradição autoritária brasileira que alimenta o péssimo hábito de desqualificar o Congresso Nacional.

É bem verdade que muitas figuras que freqüentam o nosso Poder Legislativo fazem o melhor de seus esforços para transformarem o Parlamento em uma espécie de bordel mal gerenciado. Agora os espertinhos vão começar a renunciar para “preservar a honra”. É bom que os nomes e números sejam anotados para que, no ano vindouro, os que “foram para o sacrifício” sejam definitivamente afastados da nossa vida política, amargando o ostracismo e não se reelegendo nunca mais.

Lei, evidentemente, não é todo e qualquer ato emanado de uma autoridade pública. Nós, os advogados e juristas – que estamos sendo chamados do estranho nome de “operadores do direito”, mas isso ainda é melhor do que “operadores do mensalão” – começamos a criar alguns conceitos que servem para confundir a cabeça do homem do povo. Refiro-me, por exemplo, à divisão entre lei formal e lei material. A lei formal seria uma norma originada do Parlamento e que, nem sempre, seria capaz de obrigar, de dispor, sobre situações gerais. Um bom exemplo de lei formal é a lei orçamentária que, por suas características, não obriga o Poder Executivo. O orçamento brasileiro é mais ou menos como Star Wars, uma ficção científica que o governo cumpre se quiser, mediante a realização de efeitos especiais os mais diversos. Daí os freqüentes contingenciamentos e as tratativas para a liberação de emendas. O moderno orçamento é como se fosse um genuflexório no qual após o fiel ter ajoelhado e rezado o “é dando que se recebe”, as graças são concedidas pelo Executivo, mediante a abertura das torneiras dos recursos públicos.

A lei material seria uma lei para valer. Aí, pouco importa a sua origem. Alguns chegam a falar em portarias, resoluções e outros atos normativos “com força de lei”. Nas nossas questões ambientais é muito comum ouvirmos a grande bobagem que, com toda a pompa e circunstância, afirma que “as Resoluções do Conama têm força de lei”.

O leitor já percebeu que, sorrateiramente, o tema vai se tornando esotérico e incompreensível. Quer dizer que existem leis que não são leis e leis que são leis? – indagará o leitor que não tenha completado o rito de iniciação na confraria legal. Ora, se é assim, a Constituição só pode ser compreendida por aqueles que integrem a casta dos bacharéis, guardiões das bramânicas tradições burocráticas da Nação? Não. Nós ainda não chegamos a tal exagero. Na verdade, a Constituição deve ser lida e interpretada à luz do senso comum e do sentido coloquial das palavras que nela se contenham. Isto é óbvio, pois a Constituição é feita para reger a vida de toda a comunidade e não pode se transformar em uma cabala acessível a alguns poucos escolhidos. É verdade que a vocação enciclopédica – e por que não dizer de catálogo telefônico? – de nossa Carta Magna faz com que, muitas vezes, sejam utilizados termos claramente técnicos. Posso dar como exemplos os termos ”competência concorrente” e “competência suplementar”, para citar só dois.

Mas e a lei? Como ela é tratada pela Constituição? A Constituição usa os termos (i) Lei complementar, (ii) Lei ordinária e (iii) Lei delegada (art. 59). Há, ainda, a Medida Provisória, esta sim com “força de lei”. Quando a Constituição se limita a usar o vocábulo lei, está se referindo à lei ordinária. Leis Complementares devem ser expressamente requeridas pela Constituição. Normalmente, a Constituição traz uma determinação que observa a seguinte fórmula: “Lei complementar disporá…”.

O artigo 225 da Constituição Federal (1), em quatro oportunidades, refere-se à lei como requisito necessário para a concretização das normas constitucionais que, claramente, nestes casos, não podem ser aplicadas diretamente. A hipótese prevista no inciso III do § 1º do artigo 225 acabou de ser posta em cheque pelo Sr. Procurador Geral da República, ao ajuizar a ADI 3540, mediante a qual é sustentada a tese que “somente lei” poderia autorizar a supressão de áreas de preservação permanente (APPs), dando uma interpretação bastante direta ao inciso III, do § 1º do artigo 225 da Constituição. Por tais motivos o STF, no entendimento do Procurador Geral da República, deveria declarar inconstitucional o artigo 4º do Código Florestal, visto que tal artigo autorizaria que o Conama estabelecesse mecanismos para a supressão de APPs.

Embora eu não desconheça as conseqüências práticas da declaração de inconstitucionalidade do artigo, não me filio àqueles que, diante do temor de um possível “caos”, sustentam que ele deveria ser mantido a todo transe. “Pau que dá em Chico, dá em Francisco”, dizia a minha avó materna. Fato é que a situação já poderia ter sido disciplinada, por lei, há muito tempo. Entretanto, isto não entrou na cogitação dos governos brasileiros, que consideraram a matéria fora de suas prioridades, e muito menos do Congresso Nacional. Assim, a inércia dos poderes públicos deve ser suportada mediante a violação da ordem jurídica em nome de uma abstrata “governabilidade” ou algo que se lhe valha.

Em princípio, sou de opinião que o modelo constitucional brasileiro não admite delegação do Legislativo para o Executivo (2) de atos normativos, mormente quando as medidas esvaziam o conteúdo de direitos e garantias individuais. A proteção do meio ambiente é um “direito” que está integrado ao patrimônio jurídico de todos os que neste país se encontram, mesmo de estrangeiros não residentes. Pois o “todos” contemplado no caput do artigo 225 deve ser interpretado de forma coloquial. Veja-se que, em nenhum momento, o artigo 225 fez qualquer delegação para o Executivo, em matéria nenhuma.

Um outro tema sensível e que tem sido evitado, por não ser “bem” tratar dele, é o dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA). De fato, eles têm uma previsão constitucional, inciso IV do § 1º do artigo 225. E mais, a norma constitucional, expressamente, determinou que o EIA deve ser exigido, na forma da lei. Eu mesmo já cheguei a considerar que lei, no caso, deveria ser entendida como “ato normativo”. Hoje considero que a interpretação era inadequada. De fato, para tentar “salvar” a Resolução nº 1/86 do Conama, foi sendo construída uma interpretação completamente fora da realidade jurídica e que, diretamente, afrontava o artigo 25 do ADCT. Ora, o fato é que o tema dos Estudos de Impacto Ambiental deveria ter sido regulado por lei, visto que o caráter normativo da Resolução nº 1/86 é evidente e, portanto, revogado pelo citado artigo 25. No caso, seria de toda conveniência que fosse proposta uma argüição de descumprimento de preceito fundamental em face da Resolução 1/86, de forma que o assunto fosse definitivamente esclarecido e saíssemos do terreno pantanoso sobre o qual nos movimentamos atualmente.

Por uma questão de coerência, no entanto, devemos entender que o vocábulo lei, utilizado em outras passagens do artigo 225, também deve ser interpretado como lei ordinária. Assim deve ser, pois os demais incisos, igualmente, se dirigem a normatizar uma complexa questão jurídica que é a relação entre os direitos e garantias individuais, os direitos de livre iniciativa econômica e os direitos de proteção ao meio ambiente. Entender que questões constitucionais com a envergadura daquelas que estão sendo mencionadas neste artigo possam ser disciplinadas por meros atos burocráticos emanados de conselho que ocupa o segundo escalão da hierarquia administrativa, em meu ponto de vista é reduzir o Estado de Direito à sua expressão mais “rastaquera”.

Enfim, estes são temas que, na minha opinião, merecem ser aprofundados e debatidos à exaustão para que possamos ter uma ordem jurídica ambiental estável e que não sejamos mais pegos de surpresa quando medidas judiciais corretas forem propostas.

(1) Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações: § 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:…………….III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. § 6º – As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.

(2) ADCT – Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a I – ação normativa; II – alocação ou transferência de recursos de qualquer espécie. § 1º – Os decretos-lei em tramitação no Congresso Nacional e por este não apreciados até a promulgação da Constituição terão seus efeitos regulados da seguinte forma: I – se editados até 2 de setembro de 1988, serão apreciados pelo Congresso Nacional no prazo de até cento e oitenta dias a contar da promulgação da Constituição, não computado o recesso parlamentar; II – decorrido o prazo definido no inciso anterior, e não havendo apreciação, os decretos-lei alí mencionados serão considerados rejeitados; III – nas hipóteses definidas nos incisos I e II, terão plena validade os atos praticados na vigência dos respectivos decretos-lei, podendo o Congresso Nacional, se necessário, legislar sobre os efeitos deles remanescentes. § 2º – Os decretos-lei editados entre 3 de setembro de 1988 e a promulgação da Constituição serão convertidos, nesta data, em medidas provisórias, aplicando-se-lhes as regras estabelecidas no art. 62, parágrafo único”.

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