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Quilombos na Lagoa?

No Brasil tudo é possível. É muito difícil que, do ponto de vista jurídico, se possa caracterizar uma área ocupada na lagoa Rodrigo de Freitas como remanescente de quilombo.

13 de março de 2008 · 17 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Recentemente tem sido noticiado que o INCRA teria reconhecido, ou está em vias de reconhecer, a existência de um remanescente de quilombo na lagoa Rodrigo de Freitas. É uma notícia surpreendente e que mostra que a criatividade humana não tem limites. Talvez no Arpoador fosse mais de acordo com a nossa realidade balneária, o quilombo poderia incorporar o Parque Garota de Ipanema, ou até mesmo o Forte Copacabana. Como não?

A origem remota do quilombo da Sacopã está na Constituição de 1988 que em seu artigo 68 do Ato das disposições constitucionais transitórias afirma que: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. A Constituição apenas declarou o reconhecimento da propriedade definitiva. Ao Estado, na forma do artigo Constitucional cumpre apenas identificar a comunidade remanescente de quilombo, comprovar que ela esteja ocupando “suas terras” e emitir o título. O artigo Constitucional é muito relevante, pois legitima a situação de muitas comunidades espalhadas pelo país e que não contavam com uma titulação válida de suas terras. Contudo, entre o espírito e a letra da Constituição e a sua “regulamentação” existe uma enorme distância cujo exemplo mais grotesco é o quilombo da Sacopã. Curioso é que o quilombo do Leblon, mais ou menos da mesma época do da Sacopã, conta com grande documentação e várias referências, cuja principal é o livro “As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura – Uma Investigação da História Cultural” do historiador Eduardo Silva. Merece notar que o fundador do quilombo do Leblon foi o Português José de Seixas Magalhães, o que demonstra que, em termos raciais, nós temos que ser cuidadosos no Brasil.

Com efeito, o Poder Executivo, indo além das tamancas que lhe são próprias, “regulamentou” o dispositivo constitucional mediante a edição do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003 que, em minha opinião carece de fundamentação jurídica adequada. Comecemos pela sua fundamentação constitucional. Aduz o Decreto que o Presidente da República expediu-o com base na permissão constitucional contida nos incisos IV e VI, alínea a da lei Fundamental da República. Por mais que eu insista na leitura dos dispositivos constitucionais invocados, não consigo chegar à mesma conclusão à qual chegaram os juristas da Casa Civil da Presidência da República. Sem querer cansar os meus poucos e valorosos leitores, parece-me que a norma constitucional somente autoriza o Sr. Presidente da República a “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução” e a “ dispor, mediante decreto, sobre” a “organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos”. Uma leitura superficial do artigo 68 do ADCT demonstra que ele trata de direito de propriedade, logo direitos individuais que somente podem ser regulados por lei. Aqui não se deve argumentar com a idéia de que direitos e garantias individuais são auto-aplicáveis e que, portanto, não haveria a necessidade de lei para dar consistência e aplicabilidade ao texto constitucional. Se não há necessidade de lei, muito menos de decreto. Relembre-se que, qualquer indivíduo ou comunidade que tivesse sendo impedida de usufruir o direito estabelecido no artigo 68 do ADCT poderia se valer do mandado de injunção e obter declaração da mora legislativa.

Entende-se que a pressão sofrida pelo Executivo por diferentes grupos de interesse para concretizar o artigo constitucional é legítima. Contudo, não é legítima a burla da mesma Constituição sob pretexto de “regulamentá-la”. O Decreto é de constitucionalidade discutível. Contudo, se admitirmos a constitucionalidade do mencionado ato do Poder Executivo, para fins de argumentação, dificilmente seria possível o reconhecimento de um remanescente de quilombo na lagoa Rodrigo de Freitas.

O Decreto estabelece os seguintes critérios para que um remanescente de quilombo possa ser reconhecido (a) “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida; (b) as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos devem aquelas a ”utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.” Aqui me parece que dois elementos são essências e devem coexistir para que se reconheça uma comunidade como remanescente de quilombo, quais sejam (a) a comunidade deve poder comprovar, ainda que de forma indiciária, que as suas origens remontam a data anterior a 13 de maio de 1888 e que foi formada por indivíduos perseguidos pelos capitães do mato ou senhores de escravos. Tais registros históricos são fartos.

Este requisito deve ser complementado pelo fato de que a (b) comunidade remanescente do quilombo retire a sua vida da terra, ou nos termos da norma, que ela sirva para a garantia da sua “reprodução física, social, econômica e cultural.” A norma que, evidentemente está inspirada no § 1º do artigo 231 da Constituição Federal (Art. 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.), não se presta para áreas urbanas, haja vista que a reprodução física, cultural e econômica de comunidades urbanas não se relaciona diretamente à terra em si, que é uma característica de comunidades rurais ou agrícolas, o que aliás é comprovado pelo Decreto ao atribuir ao INCRA a tarefa de identificar e demarcar as terras remanescentes dos quilombos. À mesma conclusão se chega com a leitura do artigo 20 que expressamente menciona as políticas agrícola e agrária.

Merece ser observado que, diferentemente das terras indígenas que são bens de propriedade da União, conforme definido pelo artigo 20, XI da Constituição Federal, no caso dos remanescentes de quilombo, a Constituição fala em reconhecimento da “propriedade definitiva”, o que não se confunde com o usufruto indígena ou qualquer outro direito real sobre coisa alheia. Ainda que o ilegal decreto 4.887/03, em seu artigo 17 prescreva que a propriedade será “reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o art. 2o, caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade.”, a Constituição não estabeleceu tal restrição no artigo 68 do ADCT e uma lei não poderia estabelecê-la, muito menos um decreto. Sabendo-se que a propriedade se presume plena e que um dos direitos do proprietário é aliená-la, nada impediria, em tese, a sua alienação pelos quilombolas remanescentes.

Caso o INCRA, efetivamente, reconheça o quilombo da Sacopã, este somente terá o seu título transferido com a aprovação do município, em função do artigo 12 do decreto em questão. De acordo com a legislação acima analisada, sem que se enfrente a questão de sua constitucionalidade, parece-me muito difícil que, do ponto de vista jurídico, se possa caracterizar uma área ocupada na lagoa Rodrigo de Freitas como remanescente de quilombo. Contudo, no Brasil tudo é possível.

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