No último dia 31, após longa viagem com escalas em Joanesburgo, São Paulo e Brasília, o Major Tokore desembarcou no aeroporto de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, onde foi recebido pelo Capitão Cláudio. O queniano Tokore veio ao Brasil aprender mas, apesar de seu uniforme e da sua patente, e malgrado ser hospedado por militares brasileiros, não veio aprender a matar. Pelo contrário, veio aprender a preservar vidas; vidas silvestres.
Samuel Tokore é militar, como militar é o Kenya Wildlife Service (KWS), instituição que em seu país cuida dos Parques Nacionais, Áreas Protegidas e fauna selvagem. Também o Capitão Cláudio pertence a uma instituição militar com longa folha corrida de serviços prestados ao meio ambiente: o Batalhão Ambiental da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul (PMMS).
Com efeito, Tokore veio ao Brasil usufruir de um desses serviços. O Curso Estratégias para Conservação da Natureza, que teve lugar entre 1° e 11 de novembro na Fazenda Rio Negro, no Pantanal. O curso, organizado pela Polícia Militar do Mato Grosso do Sul, em conjunto com a Fundação Homem Pantaneiro e com apoios amplos que incluem a Fundação Boticário, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e o WWF, tem história. Primeiramente organizado em 1993, foi ministrado novamente em 1994, 1995, 1996, 2000 e 2003. Em suas edições anteriores, treinou policiais civis, federais, rodoviários, policiais e bombeiros militares de todos os estados brasileiros e policiais e guardas-parque do Paraguai e da Bolívia.
Tokore é o primeiro africano a beneficiar-se da iniciativa. Graças aos esforços do Coronel Rabelo, coordenador do curso, teve assistência permanente de um oficial mato-grossense fluente em inglês, que traduziu para o queniano o conteúdo das aulas. Assim, Tokore aprendeu como os brasileiros lidam com problemas como a caça, o desmatamento e o tráfico de animais silvestres. Tambem viu em primeira mão como a polícia brasileira é treinada em ações preventivas e de educação ambiental.
Mais do que isso, devido à natureza interativa do Curso de Estratégias para Conservação da Natureza, Tokore fez uma palestra sobre a proteção ambiental no Quênia.
Combinar experiências
Eu não estava lá para ver, mas posso imaginar o que ele disse. Certamente contou que o KWS é uma instituição pára-estatal, nos moldes das agências reguladoras brasileiras. Criado no princípio da década de 1990 para fazer frente à séria crise ambiental queniana, cuja fauna estava sendo dizimada em percentuais alarmantes, o KWS logrou sucesso e, em menos de dez anos, reverteu a espiral descendente provocada pela caça ilegal e pela grilagem de terras. A fauna nativa queniana voltou a crescer significativamente, inclusive animais ameaçados de extinção, como o rinoceronte negro, o elefante, o guepardo e a girafa Rothshield. Organizado em hierarquia paramilitar, o KWS é uma instituição uniformizada com departamentos de manejo, fiscalização e combate à caça ilegal, pesquisa, ensino, turismo, comunicação institucional e relações com a comunidade.
Assim como a PMMS, o KWS também ministra cursos que são referência internacional, atraindo guardas-parque da Tanzânia, Malawi, Moçambique e Uganda, além de oficiais do próprio KWS. Os cursos são oferecidos em seus dois institutos de treinamento, situados em modernos campi situados na cidade de Naivasha e no Parque Nacional de Tsavo.
Seus cursos de curta e longa duração incluem manejo de fauna, manejo de áreas protegidas, turismo em áreas protegidas, manejo de estoques pesqueiros e aqüicultura, manejo de áreas protegidas privadas, certificado para guias de ecoturismo e manejo de áreas alagadas e sítios Ramsar. O Instituto de Treinamento também desenvolve pesquisas em temas afeitos à preservação ambiental, criando no Quênia conhecimentos específicos de manejo referentes à realidade africana.
Talvez as experiências brasileira e africana pudessem ser combinadas para que as doutrinas ensinadas nos cursos da PMMS passassem a constituir um currículo permanente e compulsório para todos os oficiais, policiais civis e federais e guardas-parque desse Brasil afora. O conhecimento e a estrutura curricular já estão aí. Falta, contudo, criar uma academia ambiental com cursos permanentes como os existentes no Quênia. Não é difícil, Parques Nacionais como o de Brasília e o da Tijuca têm conexões aéreas e rodoviárias centrais, estão próximos a extensa rede hoteleira e possuem instalações que poderiam se prestar para tal atividade. Sua localização urbana permitiria fazer uso de professores de diversas universidades, além de pesquisadores da Embrapa e do Jardim Botânico, entre outros instrutores desejáveis.
Não é demais sonhar com um curso obrigatório em manejo de Unidades de Conservação, com duração de um ou dois anos, para todos os funcionarios recém-contratados do Ibama e dos diversos Institutos Eestaduais de Florestas do Brasil. Também não é demais sonhar com cursos de aperfeiçoamento obrigatório para todos os oficiais PMs e Bombeiros transferidos para unidades ambientais. Tampouco é utópico sonhar com um curso de familiarização com as atividades ambientais para os agentes e delegados das polícias civis e federal, lotados em delegacias ambientais. No Quênia isso existe e funciona. No Brasil, se houver vontade política, também pode funcionar. É só chamar o Coronel Rabelo, a Fundação Homem Pantaneiro e seus parceiros. Eles sabem fazer.
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