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A lei é para poucos

Antes mesmo de afetar a natureza, os transgênicos estão conseguindo transformar as leis ambientais brasileiras num exemplo de manipulação e bio-insegurança.

20 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás

O Brasil tem uma legislação ambiental bastante avançada e abrangente. É algo que muito se repete e com que concordo plenamente. Isso, aliás, é mais ou menos ponto pacífico, assim como o fato de o país padecer de uma enorme incapacidade de fazer cumprir as normas que cria, sobre as mais variadas matérias, pelas mais variadas razões. No caso do meio ambiente, um dos mais repetidos chavões utilizados como justificativa pelos infratores das normas é o de que a legislação é confusa, cheia de lacunas e incoerências. Não é bem verdade. No entanto, no caso dos organismos geneticamente modificados – OGM’s – o Legislativo está fazendo uma verdadeira mixórdia legal.

Com uma tramitação que lembra muito o trânsito da cidade de São Paulo na hora do rush, a Lei de Biossegurança vem sendo lentamente retalhada e enxertada durante esse processo, correndo o risco de se tornar um monstrengo normativo antes mesmo da promulgação. Enquanto ela não sai da teoria, os organismos que deveria regulamentar são uma realidade nebulosa com a qual todos somos obrigados a conviver, graças às Medidas Provisórias que o Governo edita sem o menor pudor, safra após safra.

O texto da última Medida Provisória, que regularizou o plantio da soja transgênica no período 2004/2005 e virou lei sancionada pelo Presidente Lula, criou polêmica até mesmo com o Governo dos Estados Unidos. Washington partiu, com razão, em defesa dos interesses comerciais da gigante Monsanto, como noticiou a Folha de S. Paulo, em 15/01/05. A embaixada dos EUA queria que Lula vetasse um artigo do texto que determina que a cobrança pela licença de exploração de patente sobre a tecnologia aplicada à soja transgênica. Senão, a empresa detentora da patente – ou seja, a Monsanto – deverá demonstrar que vendeu os grãos ao agricultor através de notas fiscais. Isso praticamente inviabiliza a cobrança de royalties pela Monsanto. É importante lembrar que a venda de sementes transgênicas no Brasil é ilegal, apesar de ter seu plantio liberado. Se a Monsanto apresentar as notas fiscais exigidas pela norma, a fim de receber os devidos royalties pelo uso do produto que ela desenvolveu e patenteou, estará confessando uma atividade ilegal.

Preso até agora na teia de seus próprios conflitos internos, o que o governo fez até então foi, na verdade, fomentar uma atividade ilícita por parte dos agricultores – especialmente do Rio Grande do Sul, o maior plantador de soja transgênica do país. Aqui, a incoerência é ainda mais evidente. Como venda de sementes geneticamente modificadas ainda não é permitida no Brasil, os agricultores gaúchos, em sua esmagadora maioria, contrabandearam os grãos da Argentina, adiantando-se ao governo e apostando que conseguiriam exercer pressão suficiente para, mais uma vez, de última hora, arrancar do governo uma Medida Provisória espúria, que autorizasse a safra plantada na ilegalidade. Foi o que aconteceu. O governo, por quatro anos consecutivos, passou a mão em suas cabeças e os recompensou por agir fora da lei.

Agora, não. Mostrando-se bem mais protecionista do que se imaginava, o Presidente Lula fincou pé em suas convicções e não cedeu aos argumentos norte-americanos – defendidos inclusive pelos ministérios das Relações Exteriores, do Desenvolvimento e da Agricultura de seu governo. Preferiu acolher sob suas asas os contrabandistas brasileiros a permitir que a Monsanto receba o que lhe é devido, de acordo com as leis que regem a propriedade imaterial – patentes, desenhos industriais, modelos de utilidade e marcas. Preferiu incentivar uma atividade criminosa a atrair os investimentos da maior empresa do mundo no ramo da biotecnologia. Muito patriótico, mas igualmente injustificável. O governo protege aqueles que deveria punir.

Mas nem tudo está perdido. Em mais uma demonstração de que a comunicação não anda nada bem no Legislativo, o deputado Edson Duarte, do PV da Bahia, apresentou um Projeto de Lei – PL nº 4.459/04 – que dispõe sobre a responsabilidade das empresas detentoras de patentes de OGM’s vegetais e de laboratórios que manipulem tais organismos, em caso de contaminação de lavouras tradicionais e pelos danos causados ao meio ambiente e à saúde humana por seus produtos. Na justificação de seu Projeto, o deputado discorre longamente sobre os perigos que representa a abertura do mercado aos organismos transgênicos. Fala do risco de contaminação ambiental e da ainda escassa quantidade de informações de que dispomos sobre seus efeitos a longo prazo.

Tem razão, mas dificilmente convencerá disso o Congresso. Ali, depois de tantos anos discutindo e revisando o texto da Lei de Biossegurança, ninguém se lembrou de incluir no projeto a responsabilidade civil dos que explorem os OGM’s. Tratando-se de uma tecnologia nova e polêmica, que será oferecida abertamente nos mercados aos consumidores, deveria estar previsto um meio eficaz de indenizar os eventuais danos causados e punir os responsáveis e que seja ao menos mais específico do que as normas que temos hoje no Código de Defesa do Consumidor ou na Lei de Crimes Ambientais. Isso é o óbvio e o mínimo necessário para que a lei não se torne de bioinssegurança.

Mas não é o que foi feito. A Lei de Biossegurança quer promover a segurança daqueles que pretendem explorar economicamente os organismos transgênicos e não da população em geral ou do meio ambiente. Mais uma vez, no confronto entre lei e a transgressão, a transgressão saiu vitoriosa. E com a bênção do Presidente da República.

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